A CONCEPÇÃO PITAGÓRICO-PLATÔNICA DA NATUREZA ou A CONSTITUIÇÃO ONTOLÓGICA DA NATUREZA

Rubi Rodrigues[1]

 RESUMO

 Este trabalho começa com a constatação de que uma intuição moderna, propondo um modelo de logos normativo como referência para interpretar o mundo, reproduz fielmente o modelo da dédaca sagrada idealizada por Pitágoras, com o mesmo propósito, vinte e cinco séculos atrás. Isso dá-se sem qualquer vínculo documental entre essas duas concepções, ou seja, ambas são frutos de intuições originárias independentes. Na busca de explicações, examinam-se as potencialidades explicativas do modelo, descrevendo sequencialmente a ontologia do ser, a ontologia do ente e a ontologia da consciência, na expectativa de, assim procedendo, compreender a organização ontológica de mundo potencializada. O percurso cumprido deixa transparecer a consistência interna do modelo, e um exemplo de aplicação, olhando para o passado – a interpretação dos gêneros supremos que Platão nos lega no Sofista –, proporciona uma primeira ideia do seu poder heurístico. Na conclusão, desafia-se o leitor a usar o modelo para interpretar o futuro.

 Palavras-chave: Metafísica. Paradigma. Platão. Pitágoras. Princípios universais. Logos.
1 INTRODUÇÃO

No artigo anterior, dedicado à Carta VII de Platão e suas doutrinas não escritas (RODRIGUES, 2013a), constatamos que os cinco numerais mencionados por Platão, na digressão filosófica que consta daquele documento, correspondem, de modo fiel e preciso, aos cinco números que compõem a dédaca sagrada de Pitágoras: [1 + 2 + 3 + 4 = 10]. Constatamos, igualmente, que os princípios supremos de Pitágoras correspondem aos princípios primeiros de Platão e que, portanto, ambos utilizavam-se do mesmo referencial para leitura e interpretação do mundo. Do mesmo modo, verificamos que a dédaca sagrada constitui detalhamento do segundo dos princípios supremos que, segundo Pitágoras, alicerçam a existência do mundo, a saber: o ilimitado e o limitante.  Verificamos, ainda, que ilimitado e limitante constituem, de igual maneira, a base sobre a qual se assenta toda concepção metafísica que tenha, no ser, a manifestação primeira da existência e tenha, na existência, a manifestação primeira do ser. E constatamos, finalmente, que o logos normativo que patrocina uma visão dimensionalmente organizada de mundo (RODRIGUES, 1999) constitui uma versão moderna do mesmo referencial que instrumentalizava Pitágoras e Platão, em vista do que nos faculta uma compreensão moderna do pensamento desses dois vultos históricos, a quem devemos boa parte dos fundamentos filosóficos da civilização ocidental.

Esse conjunto de conclusões recebeu nesse nosso trabalho (RODRIGUES, 2013a) uma representação analógica que vale a pena reconstruir aqui, de sorte que sirva de referência para a análise que nos propomos a realizar

 Esquema 1 Onto01

O fato manifesto que não pode ser ignorado é que, depois de vinte e cinco séculos, uma mente moderna, procurando alternativas paradigmáticas capazes de dar respostas a incômodas questões levantadas pela ciência, em particular pela mecânica quântica, que desafiam tanto o modelo cartesiano de um universo contido no espaço como o modelo einsteiniano de um universo contido em um complexo de espaço-tempo vai, surpreendentemente, encontrar resposta justamente em referente ou paradigma que já estava presente nos primórdios da nossa civilização. Observe-se que isso se dá não por recuperação de registros documentais antigos que estivessem perdidos e, casualmente, tenham sido encontrados, mas por uma nova e originária intuição humana que somente depois vai encontrar antecedentes em registros antigos. Tampouco, dá-se em mente particularmente privilegiada pela natureza, como se costuma atribuir a esses vultos históricos, mas em uma mente comum que, aliás, teve sempre de estudar muito para compreender as coisas e que apenas teve o mérito de questionar com determinação e persistência. Por mais distraídos que o mundo moderno nos tenha tornado, não podemos deixar de perceber, aqui, que algo de muito curioso aconteceu. Como se dá uma inferência de padrão intuitivo? Ela reconstrói condições estruturais que potencializam uma dada percepção? Ou ela recupera um registro preservado de algum modo, isto é, relembra algo que ocorreu no passado? Pode esse fato ser tomado como uma evidência do Campo Akáshico de que nos fala Ervin Laszlo (2008) e segundo o qual o Universo guarda registro de todas as experiências da matéria, em instância que, por vezes, a mente humana consegue acessar?

Sabemos de outras experiências que a intuição pode ser provocada pelo adensamento de saberes relativos a um dado assunto. Lendo e estudando sobre uma questão, acumulam-se saberes e conhecimentos que, de repente, pela proximidade e copresença, interagem, combinam-se, revelam lacunas ou, então, provocam “sinapses” que resultam em percepções novas. No caso de se tratar de uma repetição, esse fato tanto pode ser explicado como recuperação de algum registro preexistente, como por casual ou não casual reconstituição das condições estruturais geradoras daquela intuição. De qualquer modo, a busca de resposta para essas e outras questões aconselha que nos dediquemos a uma análise mais detida do modelo metafísico intuído que, ao inscrever-se como modelo normativo da existência, deve ser capaz de oferecer algumas respostas, embora inevitavelmente também suscite outras questões.

Entrar em detalhes do funcionamento do modelo gerador dos entes e dos fenômenos relativos implica considerar os componentes estruturais do modelo que a versão do logos normativo esclarece envolver Geometria, Lógica e Matemática, em harmônica e estrutural combinação e, ao mesmo tempo, levar em consideração a natureza própria do absoluto e a natureza própria do relativo, dado que ser implica comprometimento radical com a natureza segundo a qual se é, condição da qual nem mesmo o ser absoluto escapa. Assim, tratando-se de um olhar metafísico, temos presentes um ser que é fonte e origem necessária, comprometido com uma natureza absoluta, e um ser criado, destinatário, que é limitado e comprometido com a natureza relativa. Nessa justaposição de absoluto e relativo, fica posto e composto o palco no qual a criação se dá e a nossa análise precisa desenvolver-se. Neste início de trabalho, não vislumbramos metas, de sorte que apenas nos pomos a caminho, esperando para ver aonde esse caminho nos leva.

2 DESENVOLVIMENTO

No esquema analógico anteriormente reconstruído, colocamos a Metafísica na posição superior, visando a ressaltar, antes de tudo, que se trata de Metafísica e de uma metafísica que objetiva o ser e a existência em sua realização factual, isto é, o ser em sua objetiva manifestação existencial. Com isso, pretendemos afastar, definitivamente, os equívocos interpretativos que tentaram reduzir a Metafísica à Gnosiologia ou à Teoria do Conhecimento, de vez que tais concepções perdem de vista tanto o ser como a existência e vão tratar das possibilidades do conhecimento humano, pressupondo, sem apresentar justificativas, que a existência do conhecimento humano obedeça a leis distintas das que regem a existência em geral. Essa pressuposição implica compreender que ser e pensar sejam coisas distintas, o que contraria, frontalmente, o espírito helênico do século V a.C. que acreditava que ser e pensar eram a mesma coisa. Portanto, não há como pretender interpretar Platão e Pitágoras munido de um referencial liminarmente divergente. Assim, a colocação da Metafísica no topo do esquema visa a indicar analogicamente que as concepções que se seguem, ao obedecerem à mesma estrutura, inscrevem-se como concepções, legítima e precipuamente, metafísicas.

Isso não significa desconhecer que o âmbito existencial compreendido horizontalmente pelo esquema 1 comporta, na verdade, duas ciências distintas e complementares, já que, partindo-se do ser absoluto, estende-se até a completa constituição dos entes na instância de totalidade. Nesse sentido, entendemos ser útil, vantajoso e, até mesmo, necessário distinguir a discussão que visa a estabelecer a necessária existência de um ser absoluto, como fonte justificadora da origem do ser relativo, daquela discussão voltada à descrição da constituição ontológica do ente. Essa discussão já a realizamos mais detidamente ao apresentar a tese de uma Filosofia Olímpica (RODRIGUES, 2013b), na qual a palavra Metafísica foi reservada para indicar o conhecimento meramente noético que se restringe ao estudo do ser em sua natureza original absoluta e, também, em sua natureza derivada relativa. Nessa ocasião, designou-se por Ontologia o conhecimento de caráter eidético, destinado ao estudo do ente em sua constituição ontológica, e verificou-se que isso é salutar, posto que evita confusões. Aqui, estamos partindo dos princípios supremos de Pitágoras que abrangem tudo, de sorte que essa distinção terá de ser feita, analiticamente, no decurso da análise. Veja-se, porém, que tanto Pitágoras como Platão já distinguem e separam essas duas instâncias, quando ora se referem aos dois princípios supremos – ilimitado e limitante e uno e díada do grande e do pequeno, respectivamente –, âmbito que somente admite uma ciência noética, e ora visam à constituição ontológica da existência, referindo-se à díada sagrada ou aos cinco ordinais, respectivamente, âmbito que exige uma ciência eidética. Em suma, em Metafísica tanto quanto na filosofia de Platão, devemos acompanhar o olhar objetivo da ciência e evitar o erro de tentar fazer uma ontologia idealista da natureza.

2.1 A Ontologia do ser

Contemplando o esquema 1, em seu aspecto mais abrangente, verificamos que, na primeira linha da tabela, a Metafísica define seu território de atuação, justapondo ou contrapondo absoluto e relativo. Tratando-se de uma Metafísica legítima, essas duas palavras indicam as duas naturezas segundo as quais o ser manifesta-se na existência: ora como ser absoluto ora como ser relativo. O território da Metafísica, analogicamente definido, indica que essa ciência tem como objeto tanto o ser, em todas as suas manifestações, como a existência em toda a sua extensão. Daí, a sua definição como ciência que tem, no ser, a manifestação primeira da existência e que tem, na existência, a manifestação primeira do ser.

Perfeitamente ajustado a essa definição de Metafísica, está indicado, na segunda linha do esquema, que Pitágoras caracteriza os princípios supremos da natureza como ilimitado e limitante. Pitágoras, nitidamente, vislumbra o mesmo campo de atuação da Metafísica. Apenas se expressa, aliás, de forma adequada, destacando o caráter normativo próprio de princípios, enquanto a Metafísica, de outro modo, aponta diretamente os seus objetos de conhecimento: o ser ilimitado e o ser limitado.

Em face disso, Rodrigues (2013a), focando os princípios supremos de Pitágoras, propõe que “o limitado seja a síntese de ilimitado e limitante”, e Platão, dialético, embora concorde, diria que o limitado é a síntese dialética de ilimitado e limitante. De fato, Platão expressou-se afirmando que o limitado resultava da mistura de ilimitado (apeíron) e limite (peràs), pois, iniciado que era, tinha interesse em destacar a parcela “divina” presente no ente. Platão, como se sabe, universalizava o uso da dialética, possivelmente em boa medida, dado ser essa a forma por meio da qual se obtém o conhecimento. Esse procedimento monológico, por vezes dialético e por vezes – modernamente – sistêmico, ainda se constata entre pensadores hodiernos e deverá persistir enquanto a pluralidade lógica não for universalizada. Para se compreender que, no caso indicado, a dialética não cabe, ao menos se a entendermos segundo o esquema que lhe conferiu Proclo – tese-antítese-síntese –, precisamos entender como se dá a geração do relativo a partir do absoluto, o que implica considerar as características “estruturais” dessas duas naturezas.

Sobre a natureza do absoluto, encontramos e podemos nos valer de uma definição válida, ainda que incompleta, de feitio grego, presente na Metafísica de Aristóteles:

O primeiro princípio e ser primordial é imóvel tanto essencial quanto acidentalmente, mas produz a forma primária de movimento, a qual é singular e eterna. Ora, como aquilo que é movido é necessariamente movido por alguma coisa, e o primeiro tem que ser, em si, imóvel, e o movimento eterno tem que ser produzido por alguma coisa eterna, e um único movimento por uma única coisa, […]. (ARISTÓTELES, 2006).

Aristóteles estende-se, nesse texto, por considerações sobre movimentos de segunda ordem presentes nos astros – que considerava eternos –, defendendo teses que, hoje, a Astronomia já superou, no entanto, as suas considerações sobre o primeiro princípio revelam-se adequadas à luz do que nos ensina o logos normativo. Observe-se que o esquema referencial que estamos usando, em sentido vertical, parte de um estágio meramente lógico e conceitual, ao caracterizar a Metafísica – primeira linha –, passa pelo estágio matematizado de Pitágoras e Platão e culmina, em plena e completa geometrização, com o logos normativo – última linha. Essa geometrização atende a um dos mais caros anseios do espírito científico de todos os tempos, na sua busca de um alicerce seguro para o seu labor. Retomando o sentido horizontal do esquema 1, essa estrutura geométrica do logos normativo organiza o âmbito da existência em instâncias diferenciadas umas das outras em amplitude lógica. O desdobramento de dimensões possui a propriedade estrutural de expandir amplitude, e o desdobramento reiterado de dimensões disponibiliza uma amplitude crescente que se expande conforme se dão os desdobramentos. Organizado o âmbito da existência dessa forma dimensional, constata-se que, em razão da sua natureza absoluta, a instância capaz de recepcionar o primeiro princípio ou o ser primordial de Aristóteles resulta ser a instância sem amplitude, ou seja, a instância adimensional, posto ser a única capaz de recepcionar atributos absolutos. Essa é uma constatação decisiva. Constatada ser adimensional a amplitude do ser primordial, a sua natureza revela-se naturalmente, assim como as mobílias de um quarto escuro revelam-se ao se acender a luz. Primeiramente, fica evidente que se trata de um ser absolutamente imóvel, dado que qualquer movimento implica determinação e porque movimento, qualquer que seja ele, demanda amplitude para ocorrer. No verso, fica, também, constatado que o ser primordial constitui um ser da mais absoluta indeterminação. Em segundo lugar, compreende-se que, sendo o ser primordial imóvel, qualquer emanação sua representa uma alteridade e constitui-se, necessariamente, em movimento. Em terceiro lugar, fica evidente que o ato de criação constitui uma emanação e não uma ação, de vez que agir implica movimento, e o ser primordial revelou-se imóvel. Em quarto lugar, mostra-se evidente que esse ser é ilimitado e, portanto, absoluto, dado que nada existe que lhe imponha limites. Em quinto lugar, fica claro que esse ser é unitário e indivisível, posto que, sendo plena simplicidade, não comporta partes. Em sexto lugar, descobre-se que suas emanações são unitárias, dado ser ele próprio também unitário e só poder emanar segundo a sua própria natureza. Em sétimo, compreende-se que o ser gerado preserva, por herança, grande parte da natureza do ser primordial, exceto quanto à indeterminação, dado que a primeira dimensão o limita nesse aspecto, impondo-lhe determinação. Em oitavo, entende-se que o ser gerado comporta um ímpeto de ser expresso em movimento existencial. Em nono lugar, compreende-se que esse movimento revela-se um inesgotável impulso para a complexidade, em face da natureza de origem e dado que o ser gerado não preserva a simplicidade absoluta do ser primordial e, assim, aponta para a complexidade. Além disso, esse ser gerado, ao se manifestar, instaura, simultaneamente, um local geométrico unidimensional que lhe serve de receptáculo, cuja amplitude, reflexivamente, impõe-lhe o limite de uma precisa determinação, sem lhe impor qualquer outro limite adicional. Em décimo lugar, constata-se que o mundo relativo inaugura-se, ontologicamente, em unidimensionalidade, dado que um adimensional colocado em movimento demanda ou lavra um âmbito unidimensional com seu movimento, e, por último, constata-se que o ser absoluto transcende o mundo relativo no qual apenas cabem fenômenos dotados de amplitude positiva, isto é, fenômenos dimensionais.

Ora, isso implica, igualmente, que o ato criativo implícito no surgimento do ser gerado a partir do ser ingênito compreende um “movimento” que realiza uma transcendência entre instâncias que possuem naturezas distintas: entre a natureza estática do ser absoluto e a natureza dinâmica do ser relativo; entre a natureza ilimitada do ser absoluto e a natureza limitada do ser relativo. Essa transcendência e todas as demais transcendências presentes no mundo obedecem a condicionantes ou leis próprias que tornam o “movimento transcendental” uma ocorrência específica e precisamente determinada, tanto quanto é bem determinada a relação estável entre causa e efeito que, também, obedece a condicionantes próprios. Nesse sentido, transcendência é um “movimento” que ocorre no âmbito da existência, cuja extensão, como já vimos, abarca o âmbito absoluto e o âmbito relativo. Com isso, afirma-se, também, que não pode haver transcendência onde um dos polos seja uma virtual inexistência absoluta, em face das mesmas razões que fundamentam o ser necessário, isto é, um nada absoluto não pode ser fonte e, agora, tampouco, destino de alguma coisa. Toda transcendência faz surgir o que, até então, não existia na instância onde o surgimento se dá. Em toda transcendência, ocorre uma mudança de natureza, e todo movimento transcendental institui sempre uma unidade que vem a ser um novo ser. Temos, então, aí, quatro condicionantes, envolvendo a transcendência, que podem ser não exaustivos, mas parecem ser suficientes para caracterizar, com precisão, o movimento. Observe-se que, no caso em questão, a transcendência dá-se entre um âmbito estático e um âmbito caracterizado pelo movimento. Dessa forma, está presente uma descontinuidade, de vez que não há passagem contínua entre estático e movimento: ou algo está parado ou em movimento, de sorte que, ao usarmos a palavra movimento entre colchetes, estamos prevenindo para que não se pense a transcendência como um movimento que começa no absoluto e culmina no relativo. Para quem assiste um fenômeno emergir ou materializar-se à sua frente, na realidade, pode parecer misteriosa magia, mas, de fato, não há magia nem mistério algum e o mundo está cheio de transcendência, sem a qual o universo ainda seria um oceano caótico de partículas quânticas. O que separa as partículas atômicas do átomo por elas gerado é, justamente, uma passagem transcendental, da mesma forma que átomos e certo movimento transcendental são os antecedentes capazes de explicar o advento de uma molécula. Toda a complexidade universal é montada em camadas, sucessivamente mais complexas, começando por um plano de puras energias quânticas, passando por um plano de partículas atômicas, depois por um plano de átomos, um plano de moléculas, de organismos etc. Observe-se que, sempre, em todos os casos, os quatro condicionantes do movimento transcendental estão presentes. O que surge é sempre unitário, trata-se de uma ocorrência que, antes, não estava presente no plano em que emerge, sua natureza é completamente distinta da natureza da instância antecedente, e tudo ocorre no plano da existência. Em qualquer desses planos que fixemos o olhar, veremos fenômenos surgirem e, também, fenômenos desaparecerem e interpretamos isso equivocadamente, afirmando que eles passaram a existir ou deixaram de existir, algo, como se vê, realmente impossível de acontecer.

Da mesma maneira que o movimento transcendental obedece a condicionantes ou leis determinadas, isto é, não consiste em um movimento aleatório, caótico ou imponderável, assim também as duas naturezas justapostas pela Metafísica constituem naturezas bem determinadas e sujeitas a leis e condicionantes inescapáveis. Isso significa que a criação e a constituição do universo representam um processo completamente normatizado e regulado por leis universais, exatamente como acreditava o espírito helênico do século V a.C., forjado ao influxo da mitologia grega. Isso não significa entender que tudo, no universo, seja determinado ou, menos ainda, predeterminado e tampouco que não se reconheça a presença do aleatório e do imponderável, mas, sim, entender que os espaços de aleatoriedade são limitados e que o desenrolar da história cósmica se dará dentro de certo espaço de possibilidades delimitado por leis universais. Leis que, aliás, convém que o homem compreenda e domine, caso almeje desempenhar papel de alguma relevância no cosmo.

2.2 A Ontologia do ente

Assim como a contemplação da amplitude adimensional permitiu-nos compreender, em boa medida, a natureza do ser absoluto, também a consideração das diferentes amplitudes que integram e estão presentes no âmbito relativo proporciona-nos nova e mais apurada compreensão da natureza limitada. Daí, o logos normativo organizar o âmbito da existência relativa em instâncias dimensionais que, justamente, têm a propriedade de distinguir e organizar as diferentes amplitudes necessárias para viabilizar a crescente complexidade fenomênica constatada no mundo. É evidente que uma amplitude de duas dimensões admite complexidade superior àquela possível em uma amplitude de uma dimensão. Da mesma forma, ocorre com a 3a, com a 4a e com a instância de totalidade, cada qual sempre possibilitando uma complexidade superior àquela do estágio precedente. Em cada instância, a amplitude disponível permite certo padrão de manifestação existencial, determinado pelo padrão de movimento correspondente àquela amplitude. A tese do logos normativo estabelece que cada instância dimensional determina um padrão de movimento próprio e inconfundível, em razão da amplitude que lhe é privativa. Por essa razão, a tese do logos normativo entende que esse padrão de movimento é exclusivo e constitui a lei que normatiza a manifestação existencial na instância.

Obviamente, os conteúdos existenciais de cada instância, além de obedecerem à lei que vigora na instância, contemplam, também, a amplitude ali presente. Por isso, o modelo estabelece que a matéria constitui componente da 3a dimensão, dado que a organização das energias constituintes na compleição que reconhecemos como matéria demanda três dimensões para viabilizar-se. Podemos generalizar a composição objetiva da natureza relativa em um esquema correspondente àquele que construímos na introdução e estamos usando como referência dessa análise.

 Esquema 2 Onto02

Como vimos, ao analisar a instância absoluta, o que emerge, a partir dela, no plano relativo, é um ser determinado, em constante movimento e imbuído de um impulso inesgotável para a complexidade. Isso dá-se mediante um ato transcendental, e o ser determinado emerge, instaurando um âmbito de amplitude unidimensional. Esse ser emergente e determinado, em razão do impulso que o energiza, desdobra a 2a, a 3a e a 4a dimensões, mas apenas ganha assento estável no plano relativo, caso consiga atingir a quinta instância, dita de totalidade. Essa instância de totalidade não constitui uma quinta instância obtida por reiterado desdobramento dimensional, tal como as quatro precedentes. Ao contrário, entre a 4a dimensão e a totalidade apresenta-se nova descontinuidade e, para superá-la, é indispensável outro salto transcendental semelhante àquele que, a partir do absoluto, gerou o ser determinado. Isso significa que, caso o primeiro estágio da complexidade universal seja constituído pelas chamadas energias quânticas, somente no estágio seguinte de complexidade – o estágio das partículas atômicas –, é que o ente mais elementar consegue estabilizar-se no universo, na forma de partícula atômica elementar. A prova mais evidente de que a existência exige o alcance da instância de totalidade é o fato de não se constatar, no universo, qualquer ente ou fenômeno que não constitua uma totalidade. Como já tivemos oportunidade de demonstrar (RODRIGUES, 2012), não existe no mundo um fenômeno de segunda classe chamado parte, todos os fenômenos são totalidades irredutíveis e a complexidade constitui-se não reunindo partes, mas articulando, inteligentemente, totalidades. Isso significa, igualmente, que, embora o modelo do logos normativo distinga cinco instâncias de complexidade, na constituição ontológica dos entes, essas instâncias apenas indicam uma precedência ontológica e não temporal, de sorte que a emersão, na existência relativa, dá-se como ato pleno que atinge a totalidade ou não se dá. Na pior das hipóteses, a energia que emerge vai incorporar um elétron preexistente e fazê-lo mudar de órbita no átomo, como a ciência bem o demonstra.

Os precedentes que possibilitam a transcendência do ser determinado estão fora do nosso alcance, uma vez que não temos acesso objetivo ao plano absoluto; no entanto, os precedentes que potencializam a transcendência entre a 4a dimensão e a totalidade estão, sim, ao nosso alcance e possuem certas particularidades constantes. O mundo quântico, por exemplo, afigura-se caótico, com presenças efêmeras, e a busca do bóson de Higgs tenta desvendar como tais energias adquirem massa. Aqui, a ciência ainda não sabe, exatamente, o que acontece, mas é evidente que algumas condições precisam-se fazer presentes para que uma partícula estável surja. No plano das partículas atômicas, a condição caótica repete-se, caso imaginemos um oceano de partículas atômicas livres, com cargas elétricas antagônicas permeadas de partículas eletricamente neutras. Aqui, o conhecimento disponível já é maior e, embora hidrogênio e hélio possam surgir em condições menos drásticas, quando se trata de átomos pesados, somente as condições extremas de temperatura e pressão, no interior das estrelas, conseguem superar o estado caótico das partículas e lhes conferir organização atômica, isto é, a forma de átomo. Nesse caso, fica evidente que, somente diante de condições extremadas, a transcendência e a evolução viabilizam-se. Quando olhamos um organismo animal, a mesma perplexidade nos assalta: o que faz com que bilhões de células trabalhem juntas, sincronizada e complementarmente, viabilizando um organismo? De todas as formas, fica evidente que, em razão de a sua configuração comportar, na base e no topo, duas instâncias de transcendência, a estrutura do logos normativo possui a propriedade de replicar-se, indefinidamente, e, assim, representa um modelo que nos pode conduzir, racionalmente, pelos estágios segundo os quais a complexidade universal foi edificada ou se edifica. Partícula, átomo, molécula, organismo, ente e fenômenos, todos obedecem ao mesmo modelo existencial definido pelo logos normativo, apenas se diferenciando em complexidade.

Não sendo o nosso propósito aqui esclarecer como se dá a evolução do universo, mas apenas mostrar a constituição ontológica dos entes e dos fenômenos, voltemos, então, a considerar a estrutura constitutiva do modelo, uma vez que a evolução cósmica objetiva explica-se, virtualmente, apenas pela capacidade autorreplicante do modelo[2].

Conforme indica o esquema 2, o ser gerado por um ato transcendental a partir do absoluto constitui um ser determinado que, na 1a dimensão, apresenta-se como um ponto de energia adimensional, em permanente movimento retilíneo. Essa presença do ser, em razão do caráter autorreplicante da estrutura, repete-se em todas as transcendências que edificam a complexidade objetiva e, no caso do ente humano, a sua presença pode ser facilmente constatada, bastando, para isso, que nos concentremos na raiz de nossos pensamentos para, ali, perceber a presença do ser que nos constitui. O movimento privativo da 1a dimensão é designado de movimento transcendental, de vez que, em uma amplitude unitária, o movimento possível apenas admite três momentos distintos: um momento em que o movimento surge, um momento em que o movimento persiste como tal e um momento em que o movimento cessa. Esse padrão de movimento justifica o surgimento do ser em dada instância, a sua permanência ali por algum tempo e, também, a sua saída da instância. Esse ser presente na 1a dimensão pode ter a sua presença percebida por uma capacidade perceptiva, como no exemplo dado; pode, também, ser identificado, o que significa ter uma identidade privativa; e pode, ainda, ser indicado com um nome. Portanto, nós, humanos, temos a capacidade de executar uma inferência de 1a dimensão, já que somos capazes de perceber a presença do ser e atribuir-lhe uma identidade e um nome. Para tanto, essa inferência precisa obedecer e executar, logicamente, o mesmo movimento presente na instância, o que significa que o padrão de movimento determinado pela amplitude dimensional determina e normatiza não apenas a ocorrência objetiva da instância, mas também normatiza a inferência que concede acesso ao conteúdo local, ou seja, normatiza, também, o plano subjetivo correspondente. Dado que isso se repete nas demais instâncias, o padrão de movimento de cada uma delas normatiza não apenas o conteúdo objetivo da instância, mas também, no plano subjetivo, as inferências com as quais cada conteúdo pode ser acessado. Logo, considerando esse sentido do padrão de movimento, os gregos tinham toda a razão: ser e pensar são a mesma coisa.

Na 2a dimensão, a amplitude do plano passa a ser infinita, uma vez que o plano admite infinitas retas. Na verdade, infinito é apenas um limite, mas a amplitude disponibilizada permite o advento da inteligência organizativa potencial que instrumentaliza o ser determinado e lhe estipula o espaço de possibilidades de realização do ente em formação. O plano cuja característica mais forte é a simetria disponibiliza amplitude capaz de viabilizar relações, proporções, hierarquias, estruturas e, enfim, a inteligência organizativa determinante da compleição dos entes. No caso humano, temos o código genético como um exemplo típico de inteligência organizativa potencial, exemplo que nos ensina que essa disponibilidade não garante que todas as potencialidades se realizarão no caso concreto. Pensamos que, aqui, situam-se as formas de Platão correspondentes às espécies, tais como a humana, e temos de admitir que a ideia de um Campo Akáshico, como Laszlo apregoa, encaixa-se perfeitamente bem. A simetria estruturalmente presente na 2a dimensão potencializa a diferença, a alteridade, o advento do outro, as tensões, relações, estruturas, um movimento típico de padrão diversificador etc., o que, em conjunto, possibilita tanto a inteligência organizativa como as inferências correspondentes.

Na 3a dimensão, disponibiliza-se amplitude suficiente para o advento da organização energética que designamos por matéria. Essa compleição organizativa tridimensional revela-se de grande estabilidade, e a estrutura material resultante configura a âncora capaz de sustentar a presença do ente, na existência relativa, enquanto ente pleno, firmemente instalado no plano relativo. A persistência dessa organização tridimensional exige a presença da 4a dimensão que disponibiliza o tempo que, por sua vez, pode ser caracterizado como atributo da matéria, decorrente da persistência da organização material engendrada. Essa persistência é limitada no tempo, em face da ação da entropia, mas permite o desenvolvimento da ontogênese e da história. Assim, objetivamente, temos, na 3a dimensão, a matéria organizada, no caso animal, em organismos funcionais e, na 4a dimensão, temos o tempo em que essa organização persiste.

2.3 A Ontologia da consciência

Na instância de totalidade, temos o ente em sua totalidade, a qual transcende as suas partes componentes e que, no caso humano, disponibiliza consciência capaz de operar a inteligência organizativa que, ao articular energias cósmicas, constitui os entes existentes em sua infinita diversidade. Na 2a dimensão, identificamos uma inteligência organizativa potencial e, na instância de totalidade, constata-se a inteligência organizativa realmente realizada. Esta, no caso humano, disponibiliza, por transcendência de suas partes constitutivas, uma consciência. Por isso, surpreendemo-nos ao constatar que a consciência possui uma natureza distinta do organismo que nos sustenta. O logos normativo mostra-nos que isso é natural em face da constituição total do ente que somos e da transcendência que permeia a nossa 4a instância da nossa instância de totalidade. Toda existência de padrão relativo manifesta ou combina cinco modos distintos e complementares de ser. Dado que, como vimos, ser e pensar são a mesma coisa, em termos de movimento existencial, ficam também definidas as cinco lógicas segundo as quais podemos ter acesso lógico e racional a essas cinco instâncias, conforme demonstra o esquema 3, a seguir:

 Esquema 3 Onto03

Na primeira linha do esquema 3, temos a geometria definindo as diferentes amplitudes que constituem a existência relativa. Na segunda linha, temos as lógicas, determinadas pela amplitude e pelo padrão de movimento local, que determinam cinco padrões de inferência exatamente correspondentes. Na terceira linha, temos os componentes constituintes dos entes, componentes que podem ser alcançados e contemplados adequadamente por meio de cada tipo de inferência. Finalmente, na quarta linha, fazemos indicação dos cinco modos de pensar, os cinco tipos de conhecimento e os cinco tipos de inferência correspondentes às cinco instâncias existenciais do mundo relativo e de tudo que o integra. Essa equivalência de cada uma das lógicas com o padrão de movimento local diz-nos que a lógica desempenha papel ontológico fundamental na constituição do ente e, com isso, a Ontologia pode ser entendida como ciência definidora da lógica constitutiva da existência ou, simplesmente, lógica de manifestação do ser. Com a codificação do plano subjetivo, visamos a facilitar doravante nossas referências aos respectivos conteúdos.

A presença e a necessidade de cinco lógicas já tinham sido constatadas por Sampaio (2001) que, também, identificou-as e ordenou-as em instâncias de complexidade lógica crescente e, ainda, utilizou-se, tal como os neoplatônicos, de figuras da geometria euclidiana como referência para indicar essa crescente complexidade. Por essa razão, não percebeu, claramente, a transcendência presente entre a 4a e a 5a instância e acabou caracterizando a quinta lógica como um desdobramento semelhante aos anteriores. A Sampaio devemos a ideia de pluralidade lógica, a plena caracterização da lógica da diferença bem como a orientação básica de nossos estudos.

Como se percebe, as instâncias geométricas são cumulativas, o que significa que a 2a dimensão contempla uma amplitude bidimensional própria, porém edificada sobre a amplitude antes disponibilizada na 1a dimensão. Da mesma forma, a 3a edifica-se sobre a 2a, a 4a, sobre a 3a e a totalidade, sobre a 4a. No plano objetivo, temos o mesmo processo cumulativo, e o ente determinado contempla uma totalidade que se edificou com um ser determinado, uma inteligência organizativa potencial também determinada, certa porção de matéria convenientemente organizada e um tempo existencial também determinado, além da inteligência organizativa que o viabiliza e institui como ente determinado. Em razão desse comportamento no plano normativo e no plano objetivo, para que o conhecimento seja correspondente a cada uma das instâncias, impõe-se que esse conhecimento também seja cumulativo, de sorte que S4, por exemplo, além de contemplar o que é próprio da 4a instância, subsume, também, os três conhecimentos anteriores, sendo isso válido para todos, inclusive para S5.

Com respeito às lógicas, Sampaio já tinha feito um esforço de formalização e sugerido que os princípios capazes de formalizar as operações lógicas também sejam cumulativos. Nós concordamos que eles sejam cumulativos até a 4a instância, dado que todas as quatro primeiras lógicas são dicotômicas, no entanto, pensamos que a lógica holística instaura realidade que transcende as dicotomias e deve obedecer a princípios de outra espécie. Dado ser esse um tema muito técnico, remetemos o leitor para Sampaio (2001) e Rodrigues (2004).

Esse caráter cumulativo das instâncias, no plano objetivo, potencializa manifestações crescentemente complexas que se manifestam segundo o padrão local de movimento. Esse padrão de movimento pode ser percebido subjetivamente – pensado –, usando-se a lógica correspondente que nos proporciona inferências que operam o mesmo padrão de movimento, sendo, em razão disso, que podemos interpretar corretamente o que se passa na realidade. Portanto, é incabível aplicar a lógica da instância “a”, para contemplar conteúdos da instância “b”. Por esse motivo, no início deste estudo, dissemos que Platão se enganaria caso afirmasse que o limitado é a síntese dialética de ilimitado e limitante, dado que o que ali ocorre é uma transcendência que tem um padrão de movimento distinto daquele contemplado pela dialética, tendo em vista, inclusive, que, para que a dialética fosse cabível, tese e antítese deveriam estar presentes e anteceder a síntese, o que implicaria dois absolutos primeiros, o ilimitado e o limitante. Dado que o movimento é de padrão transcendental, basta um princípio primeiro – o ilimitado –, posto que o surgimento do limitado dá-se por emanação que, simultaneamente, instaura tanto o limitado como o limitante. Este deve ser entendido como condição geométrica, lógica e matemática, estrutural da natureza do plano relativo. Assim, toda a construção ontológica da realidade até a totalidade do ente deve ser entendida como desdobramento do ser, e toda a realidade universal não passa de ser organizado em infinitas distintas formas, todas elas admitidas pela natureza relativa, isto é, todas obedientes aos ditames da Lógica, da Geometria e da Matemática.

Curiosamente, tanto o ser da 1a dimensão quanto o limitante ou o logos que atua como princípio normativo, embora presentes no plano relativo,compartilham ou preservam a propriedade de serem eternos, atributo normalmente conferido privativamente ao ser absoluto. O logos normativo revela-se eterno porque se trata de um limitante que estará, invariavelmente, presente em todo universo derivado de um absoluto. O ser da 1a dimensão revela-se eterno porque se situa fora do espaço e do tempo, que são componentes da 3a e da 4a dimensões. Nesse sentido, também a consciência integrante da totalidade humana e a inteligência organizativa potencial, integrante da 2a dimensão, situam-se fora do espaço e do tempo. Em todos esses casos, estamos diante de curiosa ou de curiosas formas de eternidade, pois seus objetos tiveram começo e surgiram com o ato de criação do Universo. Mais curioso, ainda, é o fato de a inteligência organizativa potencial da 2a dimensão que instrumentaliza o ser na constituição do ente afigurar-se claramente evolutiva, capaz de aprender, pois, somente assim, pode-se justificar a evolução cósmica. Virtualmente, isso torna essa inteligência organizativa potencial um registro cósmico situado para além dos fenômenos e entes individuais, embora cada ser se aproprie da parcela de inteligência organizativa potencial necessária à viabilização do ente particular que lhe cabe realizar. Daí, a coerência e sedução das ideias de Ervin Laszlo, segundo as quais esse seria um registro universalmente compartilhado pelo ser, todavia desconhecido de consciências cujo saber resulte apenas de experiências desfrutadas, no âmbito do espaço e do tempo. Aqui, estamos diante da diferença entre os conhecimentos S4 e S5 que levou Platão a deixar parte da sua doutrina em forma não escrita. Como descrever para outro uma transcendência mental que é uma experiência pessoal de feição intuitiva?

E, neste momento, chegamos a um dos resultados mais expressivos deste trabalho: perceber a totalidade e executar uma inferência genuinamente S5 implica assumir, completamente, a racionalidade própria de uma consciência plenamente humana, isto é, que transcendeu, totalmente, a condição animal que se baseia ainda muito nos instintos, ou seja, que raciocina apenas interpretando suas experiências S1, S2, S3 e S4, e, por isso, comporta-se, na vida, ainda, como animal racional, em seus quatro estágios de lucidez. Nessas condições, o membro da espécie que pensar, predominantemente, S1 tende ou pode ser um fundamentalista fanático; o que pensa, predominantemente, S2 pode ser um maniqueísta de qualquer tendência; o que pensa, predominantemente, S3 tende a ser, ideologicamente, capitalista ou materialista; e o que pensa, predominantemente, S4 pode ser socialista ou comunista. Em comum a todos esses, há o propósito de fazer os outros pensarem da mesma forma. Para além de S4, pensar S5 é o desafio da espécie para se tornar completamente humana ou para realizar, plenamente, as potencialidades da condição humana. A consciência humana, sendo instrumentalizada e operando um logos normativo situado para além do organismo biológico, configura-se como nova etapa da evolução do ser nos caminhos da complexidade. Um pensamento de padrão S5 percebe que, no mundo, é o ser que se encontra a caminho e não ocasionais personalidades moldadas exclusivamente por estímulos espaço-temporais. Essas personalidades configuram tristes guerreiros digladiando-se no devir, sem qualquer esperança de que a paz possa ser alcançada. Pensar S5 implica o advento, o resgate ou o despertar do ser que inaugura essa nova instância evolutiva e promete situar o homem para além das mesquinhas disputas próprias da animalidade e iniciá-lo nos caminhos da serenidade.

2.4 Olhando para o passado

A consistente estrutura interna do modelo do logos normativo traduzida na perfeita sintonia verificada entre os planos normativo, objetivo e gnosiológico sugere estarmos diante de um paradigma capaz de ampliar a nossa compreensão da natureza do mundo. O advento desse referencial no século XX revela-se algo perfeitamente compreensível em razão dos recursos de entendimento, atualmente, disponíveis e das conquistas técnicas e conceituais que estão à nossa disposição. Assombra, porém, que algum referencial, no mínimo equivalente, já estivesse disponível na Grécia Clássica e tenha constituído o alicerce sobre o qual Pitágoras e Platão edificaram obras ontológicas que nos encantam até hoje. A contemplação do esquema 1 não deixa dúvidas: a estrutura fundamental da dédaca sagrada de Pitágoras, dos cinco numerais de Platão citados na Carta VII e do logos normativo é uma e mesma estrutura, e as três concepções de mundo, se é que são três, equivalem-se. Dessa forma, fica disponível uma via de acesso virtualmente capaz de revelar o sentido conferido por Platão naquelas passagens dos diálogos que têm suscitado maiores controvérsias entre os estudiosos.

Proceder à releitura de Platão, tendo como referência os esquemas aqui apresentados, insinua-se como exercício acadêmico gratificante que os especialistas em estudos platônicos poderão realizar de forma mais eficiente que nós. Apenas, como exemplo, tomemos e analisemos, rapidamente, as categorias apresentadas no Sofista, a saber: ser, repouso, movimento, mesmidade e alteridade. Com bastante frequência, essas categorias são interpretadas como gêneros do mundo noético. Uma interpretação que pode estar comprometida com o nosso moderno viés idealista herdado de Kant. Quando é que surgiu mesmo essa distinção entre subjetivo e objetivo? Algo a pesquisar. Se Szlezák tem razão quando afirma que a semelhança entre Platão e Pitágoras não é apenas estrutural, esses gêneros referem-se ao plano objetivo e, nesse caso, qual é a sua correspondência com as cinco instâncias do logos normativo? Levando-se em conta que Platão pensava dialeticamente, podemos inferir que isso o levava a requisitar sempre a dualidade estrutural demandada pelo pensar dialético. Daí, mesmidade e alteridade, ser e não ser, repouso e movimento. Mesmidade remete-nos ao próprio, que não é outro, isto é, à identidade. A identidade possibilita a identificação e admite um nome indicativo. Nesses termos, enquadraríamos mesmidade como indicativa do conteúdo objetivo da 1a dimensão ou como um dos atributos do ser determinado. Alteridade remete-nos ao outro do ser ou ao não ser relativo admitido por Platão. Alteridade inaugura a multiplicidade e, nesse sentido, corresponde à 2a dimensão do logos normativo. Repouso e movimento poderiam, inicialmente, suscitar dúvida, dado que o logos normativo identifica repouso com o âmbito absoluto e movimento com todo o âmbito relativo. Dado, porém, que se trata de gêneros do mundo, repouso está indicando a estabilidade da matéria, cuja forma estaria em repouso, em virtude da persistência da sua organização, e, assim, corresponde aos conteúdos da 3a dimensão do logos normativo. Consequentemente, movimento indica o devir que não cessa nem conhece qualquer momento de repouso, o que corresponde à temporalidade presente na 4a dimensão do logos. Finalmente, temos o ser, palavra que o logos normativo utiliza para indicar o conteúdo da 1a dimensão e que, provavelmente, Platão usava para se referir ao ente em sua totalidade indicada pelo ordinal 5o. Platão desenvolve extensa discussão que contempla o um enquanto unidade indivisível bem como o um enquanto multiplicidade composta de partes. Esse duplo sentido da unidade corresponde, claramente, às duas unidades presentes no logos normativo: 1a dimensão e totalidade. Na totalidade, está presente a consciência e, na base da consciência, o ser que fundamenta o ente e a própria consciência. Nesses termos, parece razoável entender que o gênero ser de Platão refere-se ao ser que abarca todo o ente e, no caso humano, o ser humano em sua totalidade. Observe-se que nessa interpretação, os gêneros indicam justamente a característica predominante em cada uma das cinco instâncias. O ser da 1a dimensão é ele mesmo – mesmidade –; a diferenciação do ser dá-se na 2a dimensão, viabilizando o outro – alteridade –; a materialidade da 3a dimensão requer estabilidade da sua forma organizativa – repouso –; a temporalidade da 4a dimensão faz tudo fluir, constantemente, em devir – movimento –; e a consciência unifica o ente em uma totalidade que é, também, unidade de consciência e consciência unitária, manifestas prerrogativas do ser.

3 CONCLUSÃO

O modelo do logos normativo proporciona-nos um instrumento prático e racional para interpretar Platão, exatamente correspondente à dédaca sagrada, que era o modelo referencial usado pelos pitagóricos para ler e interpretar o mundo. O logos normativo corresponde à dédaca sagrada nos detalhes. A suposição, aqui, é que Platão tenha sido, realmente, um pitagórico, tese que vem sendo reforçada por estudos do neoplatonismo e por pesquisas das doutrinas não escritas de Platão, na linha de estudos delineada pelas escolas de Tübingen e de Milão. Essa tese pode ser, também, reforçada por estudos que demonstrem que Platão era um iniciado das chamadas escolas de mistério, na época, de orientação pitagórica.

O percurso cumprido demonstrou que o modelo permite e faculta uma descrição ontológica coerente da natureza, dado que essa coerência mantém-se tanto quando se examina a ontologia do ser como a ontologia do ente ou a ontologia da consciência. Esse trânsito e essa adequação simultânea ao plano objetivo e ao plano subjetivo decorrem do alicerce geométrico sobre o qual o modelo do logos normativo assenta-se. Um alicerce geométrico que confere ao modelo rigor científico, apesar da sua orientação básica ser metafísica. Virtualmente, temos, aí, uma indicação de que Ciência e Metafísica podem ser perfeitamente compatíveis e complementares.

Quanto à leitura de Platão que o modelo potencializa, o exemplo explorado, tomando como objeto os gêneros supremos do Sofista, revela uma concepção platônica coerente, efetivamente representativa das cinco instâncias distintas que compõem a existência relativa. Esses cinco gêneros, vistos sob a ótica do logos normativo, mostram inclusive que eles correspondem aos cinco números da dédaca de Pitágoas que, segundo Jacob Klein, Platão concebe como números ideais “os ‘arithmoi eidêtikoi’, que não podem entrar em qualquer ‘comunidade’ uns com os outros. Suas ‘mônadas’ são todas de tipo diferente e podem ser postas ‘juntas’ apenas ‘parcialmente’, a saber, apenas quando acontece de pertencerem a uma única e mesma combinação”[3]. Ora, o logos normativo mostra, justamente, que as cinco instâncias dimensionais são distintas e com conteúdos que não se mesclam, embora estejam presentes e participem da constituição de cada um dos entes. Essa caracterização dos números ideais feita por Klein torna evidente que Platão também compreendia do mesmo modo e se soma às evidências de que se trata, enfim, de uma e mesma concepção.

Por último, intitulamos esse exercício interpretativo de Platão baseado no modelo do logos normativo como um olhar voltado para o passado, já com a intenção de invocar a necessidade de um olhar voltado para o futuro. Thomas S. Kuhn no seu ontológico “A estrutura das revoluções científicas” (1997) alerta-nos sobre as consequências que decorrem de uma mudança de paradigma e, também, das dificuldades enfrentadas por um novo paradigma até seu pleno estabelecimento e aceitação no seio da comunidade científica. O logos normativo, ao assentar os axiomas da existência, emerge não apenas como proposta de um novo paradigma científico, mas também como proposta de um novo paradigma civilizatório. O “Projeto” em desenvolvimento no site das Segundas Filosóficas[4] tenta auscultar, justamente, que tipo de futuro fica potencializado com essa conquista conceitual. Um projeto de longo prazo para o qual todos estão convidados. De nossa parte, à medida que os estudos avançam e as propriedades do modelo revelam-se, sentimos crescer a impressão de que vivemos em um universo muito mais fantástico do que já foi imaginado por todas as ficções científicas publicadas. Ainda não conseguimos uma visão integrada de tudo, mas uma coisa está clara: subestimamos muito o universo em que vivemos e, também, subestimamo-nos muito enquanto frutos da natureza universal. Não há nada de trivial no universo e tampouco existe limite para a evolução além daqueles impostos pela Geometria, pela Lógica e pela Matemática. Intui-se que há promissoras possibilidades para a espécie humana, e estas estão logo ali, quase ao alcance da mão.

 Brasília, agosto/2013.

 

 4 REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2006, 363 p.

FERNANDES, Edrisi. Movimento e existência desde o Uno em Plotino: contribuições pitagóricas, 2010. Disponível em: <http://segundasfilosoficas.org/movimento-e-existencia-desde-o-uno-em-plotino-contribuicoes-pitagoricas/>. Acesso em: 15 ago 2013.

KUHN, S. Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 1997. 257 p.

LASZLO, Ervin. A ciência e o campo Akáshico: uma teoria integral de tudo. Tradução de Aleph Teruya Eichemberg e Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2008, 191 p.

RODRIGUES, Rubi Germano. A Carta VII de Platão: as doutrinas não escritas, 2013a. Disponível em: <http://segundasfilosoficas.org/sem-categoria/carta-vii-de-platao-as-doutrinas-nao-escritas/>. Acesso em: 15 ago. 2013.

______. A razão holística: método para o exercício da razão. Brasília: Thesaurus, 1999.

______. Estudos de lógica, 2004. Disponível em: <http://segundasfilosoficas.org/sem-categoria/estudos-de-logica/>. Acesso em: 20 jul. 2013.

______. Metafísica com status científico, 2013b. Disponível em: <http://segundasfilosoficas.org/sem-categoria/metafisica-com-status-cientifico/>. Acesso em: 20 jul. 2013.

______. Não localidade quântica e localidade metafísica, 2013c. Disponível em: <http://segundasfilosoficas.org/nao-localidade-quantica-e-localidade-metafisica/>. Acesso em: 15 ago. 2013.

______. Notas sobre inteligência organizativa, 2012. Disponível em: <http://segundasfilosoficas.org/notas-sobre-inteligencia-organizativa/>. Acesso em: 20 jul. 2013.

______. RODRIGUES, Jonatas Gustavo de Godoi. Inteligência organizativa: uma discussão sobre a parte e o todo, 2012. Disponível em: <http://segundasfilosoficas.org/sem-categoria/inteligencia-organizativa-uma-discussao-sobre-a-parte-e-o-todo/>. Acesso em: 20 jul. 2013.

SAMPAIO, Luiz Sérgio Coelho de. A lógica da diferença. Rio de Janeiro: UERJ, 2001.

SZLEZÁK, Thomas Alexander. Platão e os pitagóricos, in Platon et lês Pythagoriciens de Jean-Luc Périllié (dir). Bruxelas: Ousia, 2008, p. 93-116. Tradução do alemão de Fernando Augusto da Rocha Rodrigues. Revista Archai, Brasília: Universidade de Brasília (UnB), n. 6, janeiro, 2011. Disponível em: <http://seer.bce.unb.br/index.php/archai/article/view/3757/3261>. Acesso em:         15 ago 2013.

[1] Filósofo e escritor, pesquisador em Teoria do Conhecimento. MM G.33. Presidente da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal (AMLDF). Idealizador e coordenador do projeto Segundas Filosóficas (www.segundasfilosoficas.org).

[2] Uma discussão mais detida da propriedade autorreplicante da estrutura do logos normativo pode ser encontrada no artigo Não localidade quântica e localidade metafísica (RODRIGUES, 2013c).

[3] Citação incluída por Edrisi Fernandes em seu trabalho Movimento e existência desde o Uno em Plotino: contribuições pitagóricas.

[4] Disponível em: http://segundasfilosoficas.org/o-projeto-v-1/.

 

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