UMA EXPEDIÇÃO ARQUEOLÓGICA AO FUTURO

IGUALDADE, DIFERENÇA E POTENCIALIDADES PRESENTES NAS PERSPECTIVAS ADOTADAS PELOS PROFESSORES HÉLIO JAGUARIBE E LUIZ SAMPAIO, NO SEMINÁRIO PROMOVIDO EM BRASÍLIA, PELO LABORATÓRIO DE ESTUDOS DO FUTURO DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UnB), NA TARDE DE 16/6/1999.

O desafio comum: Desenvolver abordagem que permita identificar alternativas de futuro para as sociedades humana e brasileira.

O encontro foi extremamente rico em conteúdo conceitual e em argumentos interpretativos. A justaposição de um lógico e de um sociólogo na consideração do mesmo problema criou oportunidade conceitual rara, que recomenda a sensibilidade estratégica dos organizadores.

Como laboratório de conhecimentos, quer parecer-nos que considerar os referenciais adotados pelos dois conferencistas configura-se academicamente mais importante do que focalizar as eventuais leituras de realidade que cada um deles realizou.

O professor Jaguaribe, ao esclarecer os pressupostos adotados na sua abordagem, estabelece alicerce sobre fatores estruturais (reais e ideais) e fatores conjunturais, no caso, o acaso, decorrente da liberdade humana. Com isso, fixa trilogia básica virtualmente suficiente para sustentar o discurso. As imposições gerais da contingência seriam os fatores reais; o modo de pensar predominante na elite, os fatores ideais; e o acaso representaria o terceiro elemento, de caráter conjuntural.

O professor não se contenta, porém, com essa trilogia e vai buscar complemento em mais dois pressupostos: 1. dada a forma aleatória segundo a qual se combinam os fatores conjunturais, somente as tendências estruturais são previsíveis e 2. sendo inevitáveis mudanças paramétricas na evolução dos fatores estruturais, impõem-se limites ao horizonte temporal previsível.

Em vista do caráter problemático das mudanças paramétricas na evolução dos fatores estruturais, esse modelo assenta-se predominantemente no acaso. Consciente disso, o professor esclarece cuidadosamente que o modelo apenas se aplica a grandes números, às chamadas sociedades de massa. Com isso, fica esclarecido que esse modelo lança raízes em um conceito de sistema caótico, no qual uma diversidade vigora aleatoriamente, sem a presença de qualquer determinante universal.

Em última instância, portanto, a perspectiva adotada pelo professor Jaguaribe fundamenta-se no grande número, na quantidade massiva em que a influência da unidade pode ser desprezada – não em virtude de uma opção ou gosto pessoal, diga-se de passagem. Isso, ao menos, é o que se depreende da sua observação de que o caminho da relativização absoluta decorria da ausência de qualquer critério de validade universal. Já que o disponível era um limão, a saída foi fazer uma limonada.

O professor Sampaio, por outro lado, ao propor um esquema de padrões lógicos diferenciados para interpretar a história da humanidade, adota como pressuposto que o discernimento humano resulta de operações lógicas e que o processo evolutivo da humanidade segue de par com o domínio formal de padrões lógicos crescentemente complexos, que possibilitam modos de pensar e de interpretar cada vez mais poderosos.

Nesse modelo, a história humana essencial é a história da evolução do discernimento. Por isso, cada estágio de discernimento traz logo consigo a sombra ameaçadora do estágio seguinte que vai superá-lo. Esse estágio seguinte obviamente não é claramente visível porque pressupõe lógica distinta da vigente, no estágio atual. Dado, porém, que algo já se insinua, a lógica atual cria o que o professor Sampaio chama de fingimento do novo, fato magnificamente demonstrado por Walter Benjamin, nas famosas Passagens de Paris.

Em última instância, porém, a perspectiva do professor Sampaio propõe a lógica como sendo o critério de validade universal cuja carência o professor Jaguaribe denuncia. Ao seguir esse caminho de universalidade, o modelo lógico revela-se simultaneamente orientado para a unidade.

Com isso, compreende-se porque as duas perspectivas são tão distintas: uma baseia-se claramente na diversidade, e a outra, francamente, na unidade, ainda que, no caso, seja apenas uma unidade determinativa. Essa distância ou diferença quantitativa oferece-nos alguma pista? Vejamos.

O professor Jaguaribe caracteriza a sociedade atual como hiper-relativista, condição manifesta, objetivamente, como consumismo intransitivo e, subjetivamente, como fragmentação conceitual. É a vigência da diversidade e da fragmentação ensejando, coerentemente, modelo explicativo do caótico. No âmbito da fragmentação, efetivamente, não vemos alternativa ao modelo de previsão proposto.

A visão de futuro provável, porém, tanto no modo de Pax Americana como no de Pax Universalis, aponta para uma unidade, ainda que, no primeiro caso, seja uma unidade bipolar. A tendência para a unidade é clara e justifica-se plenamente até mesmo porque a unidade representa o contraponto da fragmentação que hoje nos angustia.

Nesse sentido, o modelo lógico do professor Sampaio poderia ser o futuro, no entanto, qual é o futuro que o modelo lógico descortina? Também uma unidade, uma cultura nova, caracterizada por uma lógica quinquitária, que, salvo engano, ele entende como sendo dialética ou hiperdialética da dupla diferença.

Nesse ponto, o modelo lógico apresenta a sua maior dificuldade, porque a possibilidade de prever o que o futuro nos reserva pressupõe o domínio da lógica emergente que vai vigorar nesse futuro[1]. Dado que desconhecemos como essa lógica opera, somente as determinações estruturais do próprio modelo é que podem indicar-nos a sua feição.

[1] Observe-se que a lógica assim compreendida constitui referencial cognitivo.

No seu estágio atual, o modelo apresentado indica como futuro uma lógica quinquitária que parece visar a um tipo de totalidade determinada dicotomicamente, ao se colocar no horizonte cumulativo das lógicas precedentes. Por isso, o futuro do modelo lógico é um futuro dialeticamente determinado. Ora, a hipótese de uma Pax Americana também é construída dialeticamente, ao visar, no longo prazo, uma bipolaridade. Nesse sentido, apesar das diferenças, ambas as perspectivas lançam mão da dialética[2] para construir o futuro.

A questão resultante é: não estaremos confundindo a perspectiva dialética com a qual se vislumbra a temporalidade e se constrói uma história com o padrão lógico que esperamos que, em futuro próximo, presida a razão predominante? O fato de a humanidade já ter conquistado uma perspectiva histórica não indica que o momento dessa lógica já pertence ao passado?

Se a coincidência da dialética[3] leva-nos a essas questões, outra coincidência estrutural – o fato de ambas as perspectivas buscarem a unidade ou possuírem a unidade como horizonte – enseja outro questionamento.

O conceito de unidade envolve certamente o conceito de limite e, também, o conceito de totalidade. Temos, então, unidade, limite e totalidade como características essenciais desses conceitos. Já que, em qualquer das perspectivas, a visão de futuro é turva, será que o percebido como futuro provável, em lugar de unidade, não seria a totalidade e, portanto, o estágio seguinte preconizado pelo modelo lógico não estaria a indicar o momento de hegemonia de uma lógica da totalidade?

Quando o professor Jaguaribe afirma que o processo de globalização foi espontâneo, essa espontaneidade não estaria indicando o mesmo despertar intuitivo do estágio lógico superior de que nos fala Sampaio? Visto de outro modo, a globalização econômica não seria o fingimento da razão científica pressentindo a emergência de uma lógica da totalidade? Quando o professor Jaguaribe, ao especificar a Pax Universalis, fala em “imperativo da racionalidade equitativa” não se estaria aproximando de pensamento ou padrão lógico de caráter complementar e não excludente, portanto, não dicotômico nem dialético, nos moldes da lógica que “intuitivamente” fundamenta o sedutor discurso ecológico? Por falar em intuição, o nosso espírito não clama por uma complementaridade com o outro que tenha superado esse estágio primário da competição?

A globalização que presenciamos certamente aponta para a totalidade planetária. Admitindo-se a razoável tese sampaiana de que a lógica preside o modo de pensar, temos de convir que essa totalidade vai demandar um modo de pensar correspondente, até aqui não exigido. Tal pensamento terá de ter, necessariamente, padrão complementar, isto é, não poderá ser dicotômico pela simples razão de não se poder jogar excluídos para fora do mundo. Com isso, inscrevem-se o desafio e a necessidade de se especificar a lógica dessa complementaridade, sem o concurso da dicotomia “tese-antítese”.

De toda forma, os conceitos expressos ou implícitos nos dois pronunciamentos, tomados na perspectiva de se pensar seriamente o futuro, exigem que concentremos a nossa atenção na questão metodológica. Em última instância, estamos buscando um referencial que nos permita prever e, se possível, projetar um futuro conveniente.

[2] Ainda que a dialética de Proclo, seja a referência de Jaguaribe e a dialética de Platão, a referência de Sampaio.

[3] Ambos estão de acordo em pensar a história usando uma lógica dialética. Estariam também de acordo em admitir a lógica como recurso normativo condicionante de toda intelecção?

Como ninguém espera que seja viável qualquer diálogo à margem da racionalidade e da lógica, parece perfeitamente razoável a hipótese de que a ação humana dependa do discernimento humano e que este seja determinado e condicionado pelo poder normativo da lógica. Com isso, a ideia de formalizar um referencial lógico capaz de tornar metódico o uso da razão insinua-se como hipótese tentadora.

Nesse sentido, o modelo lógico pode estar indicando um caminho que merece ser explorado. O modelo parece indicar, por exemplo, que o salto perceptivo entre dois estágios somente pode dar-se por meio de intuição, nunca por meio de dedução ou de inferência baseada na lógica anterior. Nesse caso, oportunizar a discussão, nos moldes como faz o laboratório de estudos do futuro, configura-se fundamental. Por outro lado, o caráter intuitivo dessa revelação estaria a exigir dos cientistas prestar atenção ao que dizem os poetas e os sensitivos, por mais incômodo que isso possa parecer.

Tecnicamente, muitas questões poderiam ser postas ao modelo. Por exemplo: Cada salto perceptivo significa a presença de descontinuidade? Em que medida cada estágio influencia o seguinte? A lógica de um estágio preserva alguma coisa da lógica anterior? Quais são exatamente os padrões de pensamento potencializados em cada estágio? A que parcela da realidade aplica-se cada lógica? O conjunto de lógicas distintas compõe uma unidade? As lógicas assim tomadas teriam apenas conotação subjetiva ou representariam, também, leis objetivas da natureza? Etc. etc.

Depois da lição kantiana sobre a idealidade dos fenômenos, não resta mais dúvida de que as intelecções humanas são meras interpretações culturais. Dado que toda interpretação depende do referencial cognitivo movimentado, parece que a ideia de compartilhar uma visão de futuro pressupõe um acordo prévio sobre o referencial que a produz.