INTELIGÊNCIA ORGANIZATIVA: UMA DISCUSSÃO SOBRE A PARTE E O TODO
Rubi Rodrigues*
Jônatas Rodrigues*
Se existissem os muitos, estes deveriam ser tais como eu digo que é o Uno (MELISSO apud REALE, 2009).
Vê-se com clareza que do caos atômico e do movimento caótico não era estruturalmente possível nascer um cosmos, se não se admitia também o inteligível e a inteligência (REALE, 2009).
Resumo
Procura-se, neste artigo, defender a tese de que o processo de complexificação da natureza não ocorreu juntando-se partes, mas articulando-se totalidades. Para tanto, impõe-se reparar alguns equívocos conceituais nos quais se incorre ao se considerar confiável apenas o modo científico e analítico de pensar – amparados na convicção de ser esse o procedimento inferencial que, alinhado aos ditames da lógica clássica, possui escopo para fornecer certezas. Apesar de sua inegável eficiência, denunciam-se aqui limites da ciência analítica moderna não por ser analítica, mas por induzir à crença de que, analisando detalhadamente as partes, logra-se compreender o todo, quando, na verdade, o todo transcende a soma das partes. Denuncia-se também a metodologia científica por decompor totalidades em partes e sugerir que existam no mundo partes autônomas e independentes que possam ser reunidas para construir totalidades, quando inexiste no Universo um fenômeno de segunda categoria chamado parte: o mundo somente admite a existência de totalidades. Denunciam-se, finalmente, limites do modo analítico de fazer ciência, porque induz a pensar que complexidade crescente e totalidades são obtidas reunindo e justapondo partes, quando, na verdade, a complexidade crescente somente pode ser obtida pela inteligente articulação de totalidades bem constituídas. Considera-se o tema relevante não pelo que textualmente afirma, mas pelas inferências que pode despertar no leitor atento.
Palavras-chave: Parte; todo; forma; átomo; inteligência organizativa.
ORGANIZATIONAL INTELLIGENCE: A DISCUSSION ABOUT THE PART AND THE WHOLE
Abstract
This paper supports the thesis that nature’s complexation process did not take place by joining parts but by articulating wholes. In order to do so, it is imperative to repair some conceptual errors which are made when only scientific and analytical ways of thinking are considered reliable – based in the belief that these are the only inferential procedures that have the scope to provide certanties, for being aligned with the dictates of classical logic. Despite its undeniable effectiveness, this paper denounces the limits of modern analytical science, not for being analytical, but for inducing the belief that by carefully analyzing its parts, one can manage to understand the whole, when in truth, the whole transcends the sum of its parts. It also denounces the scientific methodology that decompose wholes into parts and therefore suggest that there are in the world independent and autonomous parts that can be gathered to construct wholes, when there is not a second category phenomenon called part: in fact, the world only admits the existence of wholes. Finally, it denounces the limits of the analytical way of doing science, because it induces the conclusion that increasing complexity and wholes are obtained by combining and juxtaposing parts, when in fact, increasing complexity can only be obtained by clever articulation of well-formed wholes. In conclusion, this paper is relevant not because its literal statements, but for the inferences that can be extracted from it by the attentive reader.
Key words: Part; whole; form; atom; organizational intelligence.
Artigo publicado em 2012 na Redes – Revista Capixaba de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória – ES
Introdução
A questão da parte e do todo – das diferenças, semelhanças e relações entre parte e todo – constitui um dos problemas mais antigos inscritos nos anais da Filosofia. Essa problemática, como será visto, encontra-se diretamente relacionada com a capacidade (ou não) da consciência humana (por isso, uma parte do Universo) de pensar a totalidade universal. Foram os gregos clássicos que inauguraram a questão, tendo Platão externado sua perplexidade diante da unidade indivisível do Ser e da também unitária compleição da totalidade dos fenômenos, reconhecidamente composta de partes. No Parmênides, focaliza e discute o assunto elaborando um modo promissor de contemplar o problema, ao indicar que na natureza estão presentes essas duas “unidades”.
Os gregos, ao que tudo indica, não perceberam tudo o que estava em jogo, virtualmente porque não colocavam a questão da criação, uma vez que entendiam o Universo como eterno. Já os homens modernos, conscientes das lições da Astrofísica, são sabedores que o Universo – tal como as estrelas – um dia surgiu e um dia perecerá. Ou seja, para os gregos, a complexidade universal já estava posta, enquanto para os modernos houve um lento processo de complexificação. Dessa forma, entre a unidade da indivisível simplicidade e a unidade da extrema complexidade, situa-se todo o Universo realizado. Justifica-se, assim, a importância da questão: o devido esclarecimento das diferenças que permeiam a parte e o todo equivale a desvendar parte considerável dos mistérios que emolduram a compreensão do mundo.
Evolução criativa
Conjugando o saber científico e o saber metafísico hoje disponíveis, fica facultado um panorama bastante consistente sobre o desdobramento do Universo, entre a menor singularidade quântica detectada e a totalidade universal constituída. A Metafísica, denunciando como absurda a inexistência ou o nada absoluto, defende a existência do Ser como necessária e alicerça o Universo em princípio transcendental, justificando, assim, o advento das energias caóticas inaugurais do Universo. A ciência moderna, operando causa e efeito, parte do Big Bang e explica a formação das gigantescas fornalhas cósmicas onde os átomos pesados são produzidos bem como o processo segundo o qual essas “impurezas” são expelidas das estrelas e se aglutinam orbitantes na forma de planetas. Uma vez criado o mundo mineral, a ciência segue explicando como o hidrogênio e o oxigênio combinaram-se para formar água, oceanos, aminoácidos e finalmente a vida unicelular. Instalada a vida e precisando ela de energia para preservar-se, é ainda a ciência que logra revelar as duas estratégias adotadas por ela para alcançar êxito em sua preservação: o desenvolvimento da capacidade de processar diretamente a energia solar ou o investimento em mobilidade para obtê-la de outras fontes, ficando, assim, configuradas as duas alternativas – vegetal e animal – adotadas pela vida como vias de melhor capacitação para sobreviver.
Esse processo desenha nitidamente uma senda de crescente complexidade, que vai de energias quânticas a partículas atômicas, de átomos a moléculas, de células a organismos. Em cada etapa do processo de crescente complexificação, as posições de estabilidade encontradas recebem o nome, desde a Grécia clássica, de forma. Obviamente, o termo forma não é denotado no sentido ordinário de aparência conferida pelo contorno de objetos, mas no sentido grego de inteligência organizativa ou de organização inteligente, que tipifica e caracteriza partículas, átomos, moléculas e organismos, e lhes confere propriedades singulares e privativas: aqui constata-se pacífico acordo entre a ciência moderna e a Teoria das ideias de Platão.
Assim como no mundo inanimado – nos átomos de hidrogênio e oxigênio, por exemplo, essas inteligências organizativas são codificadas em valências elétricas que virtualmente determinam compulsoriamente sua combinação na proporção de 2 para 1 na contingente formação da molécula de água –, também nos organismos vivos a inteligência organizativa fisicamente impressa determina os comportamentos instintivos, por vezes extremamente complexos, cumpridos por seres vivos de todas as espécies, inclusive por insetos, tanto na busca da energia vital à sua sobrevivência quanto nos processos de acasalamento e reprodução, para citar os aspectos mais estudados.
A ciência nos mostra, ainda, que o reino animal poderia, virtualmente, ter estagnado no plano dos registros físicos e orgânicos da inteligência organizativa que caracteriza o comportamento animal instintivo, dado que este possui a vantagem de ensejar grande precisão. A natureza, no entanto, não parou por aí, seguindo seu caminho de complexificação até o desenvolvimento do homem. Dois fatores foram determinantes para isso. De um lado, o próprio registro físico da inteligência que torna a ação compulsória, confere certa flexibilidade, claramente manifesta no processo de adaptação dos animais ao meio ambiente. Por outro lado, a disputa de espaços de sobrevivência entre as espécies, cada qual constituindo depósito de energia virtualmente expropriável e cada qual imbuída de justo instinto de sobrevivência, requereu flexibilidade e alternativas de ação capazes de diminuir sua previsibilidade comportamental e ampliar suas chances de sobrevivência.
Nesse contexto, a espécie humana logrou superar as determinações compulsórias dos instintos, desenvolvendo um organismo capaz de interpretar e operar essa inteligência organizativa ou forma que define as propriedades e determina os comportamentos nos reinos mineral, animal e vegetal. Com o sistema nervoso central e o despertar da consciência, abriu-se um espaço racional, viabilizando o entendimento e a compreensão que capacita o homem com um novo patamar de inteligência, o qual, sobrepondo-se ao registro físico instintivo inescapável, potencializa alternativas de ação. Com isso, caso o indivíduo consiga desenvolver a razão e seja capaz de criar alternativas de ação melhores que as instintivas, conquista liberdade de escolha e pode adotar em cada caso e para cada circunstância a opção mais conveniente.
Esse percurso do Universo e da vida até o despertar da consciência segue, em linhas gerais, o arrazoado de Bergson em A evolução criativa (BERGSON, 1907) e evidencia que a razão humana é somente parte de toda esta complexidade: uma das infinitas partes que compõem o Universo. As ideias de Bergson parecem corresponder bem à Teoria das ideias de Platão. As formas não existem a priori, mas são geradas gradativamente à medida que o Universo se complexifica, de modo a proporcionar, em seus próprios termos, uma evolução criativa. À luz desse panorama que caracteriza a vida e o Universo como processos evolutivos gerais, cumpre destacar que cada posição intermediária de estabilidade evolutiva constitui parte integrante da complexidade que poderá integrar, justificando, assim, um Universo composto por infinitas partes. Nestes termos, certamente a totalidade universal está contemplada, mas estaria em questão também alguma outra totalidade?
Sim. O Universo em toda sua magnitude e totalidade contempla atualmente um estado de estabilidade e assim pode ser reconhecido. Porém, na hipótese de um observador histórico, também haveria de ser reconhecido como totalidade no passado, mesmo que sujeito a uma complexidade menor e com outro estado de estabilidade. Isso implica afirmar que totalidade não encontra-se diretamente relacionada com o nível de complexidade, mas com o estado de estabilidade. Ser totalidade é então ser uma unidade indivisível (sob pena de perda de suas características), e aqui os dois conceitos se fundem. A totalidade afigura-se como sendo o estado de equilíbrio atingido por um fenômeno em seu curso de evolução, um estado que o torna uma unidade. É justamente a isto que Platão se refere ao discorrer sobre duas “unidades”.
Observe-se que a inteligência organizativa se manifesta presente desde o começo do Universo, e não surge apenas em presença da vida. Como evidenciam os átomos e as moléculas inorgânicas, a forma também está presente no mundo inanimado. Portanto, a forma encontra-se já no primeiro fenômeno quântico que se estabilizou no plano da existência e inaugurou o mundo relativo e está também presente em todas as etapas de complexidade crescente que se sucederam até que o Universo desenvolvesse e adquirisse a compleição atual. Há, sim, diferença entre a forma do átomo de hidrogênio, a forma da molécula de água e a forma da consciência humana ou a forma do Universo, não somente em complexidade, mas também em organização e potencialidades. Ainda assim, em todas as instâncias, os momentos de estabilidade continuam sendo formas organizativas inteligentes, e isso indica que há algo comum a todas elas, em particular pelo fato de todas possuírem potencial para servir de base para formas ainda mais complexas e comungarem da condição de existirem objetivamente.
Ora, se, além disso, considerar-se que o processo evolutivo tal como entendido por Bergson é contínuo e homogêneo – de onde se infere um padrão de evolução –, faz-se necessária uma forma básica originária presente em todas as totalidades, em cuja estrutura estejam contidas as potencialidades capazes de se combinar e gerar formas mais complexas, cuja existência a ciência já comprovou serem constitutivas da complexidade universal. Essa forma básica originária pode ser identificada de três maneiras: por um processo de redução ontológica que elimine as características que surgem à medida que o processo evolutivo vai se acentuando, mediante a contemplação do Logos Normativo (RODRIGUES, 1999), ou ainda diretamente pelo resgate do conceito grego de átomo em sua acepção original:
Aos ouvintes modernos a palavra “átomo” evoca inevitavelmente os significados que o termo adquiriu na moderna ciência, de Galileu à física contemporânea. Pois bem, é preciso despojar a palavra átomo desses significados, se quisermos descobrir o sentido ontológico originário segundo o qual a entenderam os filósofos de Abdera. O átomo dos abderianos traz em si o selo típico do pensar helênico: é átomo-forma, posição, é átomo eideticamente pensado e representado (REALE, 2009).
O átomo ou forma básica originária é então aquilo que torna as combinações do quebra-cabeça evolutivo consistentes e possibilita, em cada nivel de complexificação, serem novamente combinadas para a criação de novas estruturas. Para tanto é indispensável que essa estrutura originária contenha em potência, no mínimo, capacidade de desdobrar os caminhos alternativos que o Universo efetivamente concretizou. Sem entrar em considerações quanto aos espaços alternativos que essa estrutura virtualmente faculta para a manifestação existencial – dado que isso implicaria considerar não apenas a estrutura constitutiva dessa forma originária e os axiomas que a suportam, mas também os compromissos estruturais contidos na Geometria, na Lógica e na Matemática –, tenha-se presente ao menos que esta complexidade crescente resulta também em determinação crescente, o que, em um Universo metafisicamente concebido, implica restrições crescentes à absoluta indeterminação e à liberdade absoluta da origem necessária.
Conclusão
Quando são examinadas as formas puras de Platão e a inteligência organizativa contemplada por Bergson – ou ao se considerar a teoria do Logos normativo –, chega-se à conclusão de que átomo, forma, inteligência organizativa, unidade e totalidade são exata e rigorosamente a mesma coisa e fica claro que não existe parte isolada manifesta no mundo: o Universo admite apenas a presença de totalidades. Totalidades que se distribuem por toda a escala de complexidade que constitui o Universo, tipificando e identificando os fenômenos que podem ser apreendidos pela mente humana, dado que todos os fenômenos do Universo obedecem ao mesmo plano existencial e possuem a mesma estrutura existencial (RODRIGUES, 2011). Diante disso, não há como deixar de concluir que a consciência humana está capacitada a pensar e entender as totalidades do Universo, tanto porque ela também constitui uma totalidade, quanto por ter sido gerada pela natureza justamente para operar subjetivamente essa inteligência organizativa, produzindo, assim, consciência da inteligência com a qual as totalidades foram e são feitas. A complexidade universal não se faz, portanto, juntando partes, mas articulando totalidades.
Referências
BERGSON, Henri. A evolução criativa. Tradução Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: UNESP, 2009. Titulo original: L`évolution créatrice, 1907.
REALE, Giovanni. Pré-socráticos e Orfismo. História da filosofia grega e romana, v. 1. São Paulo: LOYOLA, 2009.
RODRIGUES, Rubi Germano. Filosofia: a arte de pensar. São Paulo: Madras, 2011.
_______. A razão holística: método para o exercício da razão. Brasília: Thesaurus, 1999.
* Filósofo e escritor, pesquisador em Teoria do Conhecimento. MM G.33. Presidente da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal – AMLDF. Idealizador e coordenador do projeto Segundas Filosóficas (segundasfilosoficas.org).
* Bacharel em filosofia e doutorando em Filosofia na Universidade Católica de Santa Fé, na Argentina. Também idealizador do projeto Segundas Filosóficas.
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