Homo Deus – Resenha crítica de um metafísico

Homo Deus – Uma breve história do amanhã – Yuval Noah Harari – Cia das Letras, 2016, 443 p.

Resenha crítica de um metafísico

A obra se inicia com a consideração de que os três principais flagelos da humanidade – a peste, a fome e as guerras -, estão praticamente superados e que o atual estágio científico inscreve ou potencializa nova agenda humana centrada na superação da morte biológica e na elevação do humano à uma condição supra-humana, similar àquela dos deuses da antiguidade grega. A engenharia genética estaria permitindo que, na sua busca de felicidade e poder, os humanos possam mudar primeiro uma de suas características, depois outra, até virtualmente não serem mais humanos.

Posta a superação da condição humana, como arco geral da obra, Yuval assume perspectiva evolucionista darwiniana e realiza criativa retrospectiva mostrando de que modo o homo sapiens se impôs como forma superior de vida no planeta. Nessa análise, contempla a fase coletora, a fase agrícola, a fase industrial e a fase moderna de informação intensiva, e procura identificar os elementos estruturais, de ordem cultural, que lhes forneceu alicerces. Destaca em particular as crenças gerais, compartilhadas em cada fase – que designa de mitos ficcionais -, aos quais atribui a indispensável coesão social, bem como a viabilidade dos empreendimentos de cada período.

Embora lhes reconheça, importante e inescapável papel social, destaca o caráter fantasioso de tais concepções gerais, e o seu descompromisso com a realidade, o que o leva a um processo de desconstrução dos pilares conceituais das diferentes concepções que cataloga ao longo do tempo, tais como as diferentes religiões, as diferentes ideologias políticas e o próprio humanismo, que considera também tratar-se de mito passível de superação. Para tanto, vale-se de conclusões e resultados que a ciência moderna fornece. Assim, recusa a existência da alma, da consciência e também da individualidade, tendo em vista que os testes científicos que tentaram a sua detecção, não tiveram êxito, e que a mais notável conquista da ciência contemporânea, lhes dispensa a existência.

Essa conquista – que considera o mais importante feito da ciência moderna, e caracteriza o atual estado da arte -, estabelece que todos os processos que compõem o universo podem ser reduzidos a algoritmos logico-matemáticos cientificamente formalizáveis. Essa conclusão, amparada tanto pela Biologia como pela Ciência da Computação, explicaria o funcionamento eletroquímico dos sistemas biológicos da mesma forma que explica o funcionamento dos sistemas eletro-físicos das máquinas. Com isso, o sucesso da ciência pode ser reduzido à descoberta dos algoritmos que respondem pelo funcionamento das coisas e o próprio pensamento pode ser explicado como produto de algoritmos. Apesar disso, Yuval reconhece que: “para ser franco, a ciência sabe surpreendentemente pouco sobre mentes e consciência”, concluindo: “A ortodoxia atual sustenta que a consciência é criada por reações eletroquímicas no cérebro e que as experiências mentais realizam alguma função essencial de processamento de dados. No entanto, ninguém tem a menor ideia de como um amontoado de reações bioquímicas e correntes elétricas no cérebro criam a experiência subjetiva…” (pg. 115)

No plano social, destaca os belos ideais do humanismo e em particular a democracia. Lhe contrapõe o potencial de enfraquecer a espécie humana e causar a sua degradação, pelo cultivo de uma igualdade humana fantasiosa, e o fracasso na efetivação real desses ideais pelos governos, como testemunham os protestos sociais que varreram o mundo em 2011. Coleta os diferentes fracassos do humanismo em extensas regiões do globo, questiona a capacidade do humano conduzir e dar significado ao mundo, e verifica que ao contrário disso, a inteligência artificial avança vertiginosamente e ameaça o humanismo, com uma inteligência organizativa e ordenadora, exponencialmente superior.

Tendo em vista que justificou a supremacia humana no reino animal, pela formação e uso de extensas redes de cooperação humana e não por habilidades individuais, preconiza o advento da nova religião dos dados, e a formação de extensas e poderosas redes de processamento de dados, cujos algoritmos serão capazes de conhecer cada homem melhor que ele mesmo e controlar até mesmo os seus desejos mais íntimos. Nesse quadro, estima que a grande maioria da população estará disposta a entregar-se docilmente ao controle das máquinas, em troca de prazer e bem-estar.

Com isso antevê dois senários possíveis. Ou as máquinas dominarão tudo e virtualmente descartarão os humanos, como se descarta processadores obsoletos, ou então, restará um contingente de super-humanos, geneticamente incrementados, desfrutando as máquinas sem cair sob seu domínio. De todas formas, reconhece dispensáveis amplos contingentes humanos.

Em alguns momentos o autor parece ser prescritivo, mas no final (p. 397), supera o entusiasmo justificativo afirmando que o livro deve ser lido mais como possibilidade do que como profecia, e ao fazê-lo, redime-se de virtuais carências e configura a obra como inteligente e útil análise das alternativas que a ciência atual vislumbra e potencializa como futuro para a humanidade e, nesse sentido, se reveste de capital importância para compreensão da condição humana neste início do século XXI.

Esse caráter especulativo e não profético se confirma nas três questões com as quais encerra sua tese e desafia os leitores:

  1. Será que os organismos são apenas algoritmos e a vida apenas processamento de dados?
  2. O que é mais valioso – a inteligência ou a consciência?
  3. O que vai acontecer à sociedade, aos políticos e à vida cotidiana quando algoritmos não conscientes, mas altamente inteligentes nos conhecerem melhor do que nós mesmos?

Dessas três perguntas, apenas a última permanece aberta, sem contar, por enquanto, com resposta convincente. As demais resultam de limitações próprias do paradigma científico que preside o discurso e que Yuval respeita rigorosamente, e que se restringe às propriedades e funcionalidades da matéria no espaço e no tempo. O próprio autor – sem querer -, exemplifica bem os limites do paradigma científico atual, ao especular que, no caso do domínio completo das máquinas, a rede de processamento resultante, virtualmente estendida à toda a galáxia, acabaria sozinha, calculando eternamente o valor exato de phi, – questão inicial oferecida ao supercomputador “pelo criador”, quando do seu acionamento -, na mais plena reprodução da mediocridade de homens capazes de entregar-se docilmente ao cuidado de uma máquina.

Como metafísico eu sugeriria que em lugar de calcular phi, o supercomputador fosse desafiado a identificar qual seria o primeiro e o mais elementar dos algoritmos. Poderia demorar algum tempo, mas no final das contas ele possivelmente descobriria que os gregos clássicos já sabiam que tudo o que existe no mundo e o próprio universo – para constituir um cosmos -, funcionam e precisam funcionar segundo as matemáticas – concebidas como ciências do movimento, da forma e da quantidade –, e que, um certo Pitágoras, que viveu no sec. VI a.C., já havia formalizado matematicamente o algoritmo da criação, na condição de década sagrada de formato [1 + 2 + 3 + 4 = 10], e que, portanto, teria ocorrido um erro no percurso histórico e que cumpriria recorrer aos bancos de dados genéticos e ressuscitar a espécie humana.

Lirismos a parte, convém reconhecer que, com a ideia de algoritmo, a ciência contemporânea não faz mais do que resgatar o sentido grego clássico de cosmos, e aproximar-se da opção de acolher a Metafísica de Platão: a protologia capaz de, com a figura do ser, fornece a energia requerida para acionar o algoritmo da criação, energia sem a qual, a própria tese do algoritmo não se sustenta. Com tal Metafísica, a ciência poderá confirmar o seu propósito de desvendar a inteligência organizativa que configura o mundo, gerando a correspondente inteligência interpretativa. Poderá também desvendar como é que estados de excitação neuronal no cérebro podem ser convertidos em significados no âmbito da consciência, e talvez descubra se o supercomputador de que nos fala Yuval, está, afinal, localizado no nosso futuro ou no nosso passado.

Com isso, podemos concluir esta despretensiosa resenha, formulando também uma questão: – quando será que os cientistas modernos serão capazes de dar ouvidos à Metafísica que as anomalias quânticas reclamam a quase um século?

Brasília, abr/2017