Trump e o Ocidente

Ernesto Henrique Fraga Araújo*

Resumo

O presidente Donald Trump propõe uma visão do Ocidente não baseada no capitalismo e na democracia liberal, mas na recuperação do passado simbólico, da história e da cultura das nações ocidentais. A visão de Trump tem lastro em uma longa tradição intelectual e sentimental, que vai de Ésquilo a Oswald Spengler, e mostra o nacionalismo como indissociável da essência do Ocidente. Em seu centro, está não uma doutrina econômica e política, mas o anseio por Deus, o Deus que age na história. Não se trata tampouco de uma proposta de expansionismo ocidental, mas de um pan‑nacionalismo. O Brasil necessita refletir e definir se faz parte desse Ocidente.

Palavraschave: Trump; Ocidente; Nacionalismo; Globalismo; Metapolítica; Teopolítica

* Diplomata de carreira, é diretor do Departamento dos EUA, Canadá e Assuntos Interamericanos do Ministério das Relações Exteriores (MRE).

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Em janeiro de 2017, pouco depois da posse de Donald Trump, ocorreu‑me uma imagem do futebol americano para caracterizar o que esperar do novo presidente dos Estados Unidos: Donald Trump is Western Civilization’s Hail Mary pass. Era a época dos playoffs da NFL, e em poucos dias viria a finalíssima, o Superbowl, que acabou sendo o jogo mais extraordinário nos 51 anos dessa disputa, assim como a eleição de Trump fora, talvez, a mais extraordinária da história americana. Nessa confluência de inesperados, tanto na política quanto no esporte nacional dos norte‑americanos, a metáfora do Hail Mary pass parecia apropriada, mas não tive a quem apresentá‑la na época, e assim peço a vênia daqueles que não apreciam o jogo da bola oval para utilizá‑la agora, pois me parece que continua apropriada para caracterizar alguns elementos centrais da administração Trump. O “passe de Ave Maria” descreve uma situação do seguinte tipo: faltam apenas poucos segundos de partida e seu time está perdendo. Tem a posse de bola, mas está ainda no começo do seu campo, na altura da jarda 20 ou 30, por exemplo. Só há tempo para mais um avanço que permita chegar ao touchdown e à vitória. Um lançamento normal renderia no máximo umas 30 jardas, ainda muito insuficientes. O time então parte para o lance de última esperança. O quarterback pega a bola e a segura enquanto os seus recebedores, praticamente todo o resto do time, correm loucamente até o fim do campo do outro lado. O quarterback então lança o mais longe que puder, rezando para que o improvável aconteça e a bola caia na mão de um dos recebedores, que, mesmo cercado por todos os defensores adversários, lá na end zone, consiga milagrosamente marcar o touchdown. No futebol americano não há nada mais emocionante do que o momento em que a bola começa a voar num Hail Mary pass e não se sabe se a oração vai dar certo, se o recebedor conseguirá o touchdown e o impossível se materializará. Muita gente não sabe que o Ocidente está jogando, muito menos que está perdendo.

Tornou‑se corrente desmerecer qualquer um que enxergue um Ocidente ameaçado, ou mesmo qualquer um que simplesmente tente definir o Ocidente por oposição a algo. Vem logo a crítica: “Isso aí é Clash of Civilizations, isso está ultrapassado, desacreditado, isso é chauvinismo, racismo, xenofobia…”. Passou a ser politicamente incorreto e, portanto, inaceitável, nos círculos de boa conversação, falar de uma Civilização Ocidental, ou utilizar o modelo de relações internacionais baseado na competição entre as diferentes civilizações, proposto por Samuel Huntington, onde uma civilização possa vencer e outra perder. Só se pode falar de Civilização Ocidental se for para denegrir o seu passado ou para negar a sua existência ou relevância no presente. Já quanto à expressão “Ocidente”, acostumamo‑nos a empregá‑la apenas no sentido geopolítico de um grupo de países da Europa e América do Norte que compartilha uma aliança militar e uma adesão (que é proibido questionar) à economia de mercado e à democracia representativa, basicamente um conceito da Guerra Fria e que, nessa definição, faz pouco sentido desde o fim daquela configuração mundial. Entretanto, se abrirmos por um momento a porta, se deixarmos de olhar o mapa e começarmos a estudar o território, principalmente o território do espírito, veremos uma enorme massa de palavras e sentimentos, ideias e crenças formada ao longo de 25 ou 30 séculos (não é tanto, são apenas 100 gerações), à qual podemos chamar Ocidente, Civilização Ocidental, uma entidade orgânica, viva, outrora pujante, mas hoje com sintomas sérios de debilidade e até mesmo demência, dando a impressão de que, deixadas as coisas ao seu curso natural, poderá desaparecer para sempre em poucos anos.

Os países ocidentais gozam até de relativa saúde econômica e política. São militarmente fortes. Não enfrentam maiores riscos ao seu sistema de vida. Nem a Rússia nem a China nem a Coreia do Norte representam uma verdadeira ameaça à democracia ou à liberdade dos europeus ou norte‑americanos. Os cofres e os arsenais estão cheios, a tecnologia permite o incremento contínuo da eficiência. Mas isso não é o Ocidente. O Ocidente é algo mais profundo, e, nessa profundeza da sua alma, o Ocidente sofre, sofre de um mal misterioso como o Rei Pescador na saga do Santo Graal. Alguém precisa procurar o cálice que contém o sangue capaz de curá‑lo.

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Mas voltemos do Santo Graal a algo mais prosaico, ao futebol americano, e perguntemos: e se Donald Trump for, hoje, o único estadista ocidental que entende o jogo e está disposto a jogá‑lo, o único que percebe a urgência destes últimos segundos do último tempo? O certo é que Trump desafia nossa maneira usual de pensar. Aceitemos esse desafio. Não nos satisfaçamos com uma caricatura, com as matérias de 30 segundos que aparecem no Jornal Nacional e tentam sempre mostrar um Trump desconexo, arbitrário, caótico.

Assim como Ronald Reagan – formado por uma universidade insignificante no meio dos milharais de Illinois, narrador esportivo medíocre, ator de pouco talento – conseguiu aquilo em que gerações de políticos sofisticados e aristocratas da Ivy League falharam, isto é, derrotar

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o comunismo, assim também Donald Trump – esse bilionário com ternos um pouco largos demais, incorporador de cassinos e clubes de golfe – parece ter hoje uma visão de mundo que ultrapassa em muitas léguas, em profundidade e extensão, as visões da elite hiperintelectualizada e cosmopolita que o despreza.

Em Varsóvia, no dia 6 de julho de 2017, Trump pronunciou um discurso marcante em defesa do Ocidente. Um discurso que nenhum outro estadista no mundo hoje teria a coragem ou a capacidade de pronunciar. O tema central é a visão de que o Ocidente – concebido como uma comunidade de nações (e não como um amálgama indistinto sem fronteiras) – está mortalmente ameaçado desde o interior, e somente sobreviverá se recuperar o seu espírito. O discurso intitula‑se Remarks by President Trump to the People of Poland, e desde o início coloca claramente a Polônia não somente como uma admirável nação em si mesma, mas como símbolo de resistência e fé, de uma determinação que – espera – possa ser imitada hoje por todo o Ocidente como forma de lutar por sua sobrevivência. “No povo polonês”, diz Trump, “vemos a alma da Europa”. Trump usa a Polônia para procurar ensinar aos europeus o que eles são no fundo. Através da Polônia, faz um apelo aos europeus para, ao lado dos Estados Unidos, arregimentarem‑se em defesa da sua essência comum. De fato, não por acaso Trump escolheu a Polônia para ali pronunciar seu chamado à defesa do Ocidente. Identificou, nos poloneses, o espírito de luta, de resistência e autoafirmação na adversidade, o qual reputa indispensável à sobrevivência do Ocidente em seu conjunto. “Vocês [os poloneses] perderam a sua nação, mas nunca perderam o seu orgulho”. A Polônia aparece no discurso como porta‑estandarte e símbolo do Ocidente: “No povo polonês vemos a alma da Europa”, diz Trump, para em seguida completar: “A nação de vocês é grande porque o seu espírito é grande e o seu espírito é forte.” Essa grandeza e essa força residem na identidade profunda do povo, da nação polonesa: “A história da Polônia é a história de um povo que nunca perdeu a esperança, que nunca se deixou quebrar e que nunca, nunca esqueceu quem ele mesmo é”. Trump enxerga a primazia do espírito sobre o poder material, invocando a figura do bispo católico polonês Michael Kozal, martirizado pelos nazistas em 1943, que dizia, conforme citado

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por Trump: “Mais horrível que a derrota pelas armas é o colapso do espírito humano”. O presidente não menciona em seu discurso, mas talvez tivesse presente também a figura do rei polonês Jan Sobieski, que veio em socorro de Viena cercada, prestes a cair nas mãos do exército otomano, e, na tarde de 12 de setembro de 1683, desceu do Kahlenberg à frente de sua cavalaria, sob a bandeira da virgem negra de Czestochowa, para derrotar as forças

muito superiores de Mustafá Pachá, salvando a Europa da dominação islâmica. Porém a principal figura polonesa a quem Trump faz apelo é o papa João Paulo II. Em um momento central do discurso, Trump relembra a primeira missa do papa polonês em Varsóvia, em 1979, quando um milhão de pessoas entusiasmadas interrompeu o sermão para gritar “Queremos Deus”. O presidente americano interpreta, nesse grito, uma fusão do nacionalismo com a fé, a fé como parte integrante do sentimento nacional e vice‑versa:

naquele momento, segundo ele “os poloneses reafirmaram sua identidade como uma nação devotada a Deus”, pois naquele grito “encontraram as palavras para dizer que a Polônia seria Polônia uma vez mais”. Para Trump, o clamor dos poloneses por Deus, pela volta de Deus ao centro de suas vidas juntamente com a recuperação da nacionalidade, a fé e a pátria renascendo juntas depois de estraçalhadas pela ditadura materialista e “internacionalista” imposta pelos soviéticos, esse clamor volta a ser hoje o clamor do Ocidente: “O povo da Polônia, o povo da América, o povo da Europa ainda gritam: Queremos Deus!”.

O discurso transita então dessa Polônia entendida como modelo em pequena escala de toda a alma ocidental, em seu passado de resistência, para o Ocidente de hoje. O Ocidente, em sua visão, muito longe de viver tranquilo, sentado no topo da cadeia alimentar da globalização como muitos supõem, está sob séria ameaça. As ameaças visíveis, Trump as encontra no “terrorismo islâmico radical” (dito assim com todas as letras), mas também – o que pode surpreender pelo prosaísmo neste contexto de luta existencial – na burocracia, essa força que “drena a vitalidade e a riqueza do povo”. Porém Trump enxerga bem mais do que esses perigos, e neles enxerga mais do que uma simples questão de segurança ou de eficiência econômica. Para ele, o verdadeiro e enorme perigo é a perda da própria identidade ocidental, a perda do espírito, o desaparecimento dos

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“laços de cultura, fé e tradição que nos fazem quem somos”. As forças antiocidentais, “sejam externas ou internas”, se deixadas agir, “minarão nossa coragem, solaparão nosso espírito e enfraquecerão nossa vontade de defender a nós mesmos e nossas sociedades”. O problema, portanto, não está no terrorismo nem muito menos na diminuição da competitividade, mas sim, muito mais fundo, está no desaparecimento da vontade de ser quem se é, como coletividades identificadas com um destino histórico e uma cultura viva.

E o que é isso que o Ocidente é, e que não pode deixar de ser, sob pena de desaparecer como civilização? Trump o explica na parte seguinte do discurso: o Ocidente é “uma comunidade de nações”. O Ocidente é um conjunto, certamente, mas não uma massa disforme, muito menos um agrupamento de estados baseado em algum tratado, e sim um conjunto de nações – entidades definidas cada qual em sua identidade histórica e cultural profunda, e não como entes jurídicos abstratos – concebidas a partir de experiências únicas e não a partir de princípios ou valores frios. Uma comunidade, portanto, onde os particularismos não são um acidente, mas a sua própria essência e conformam um todo orgânico, indispensáveis à saúde e pujança do conjunto. A erradicação das fronteiras, o princípio supranacional, a convergência de valores – nada poderia estar mais longe dessa concepção de Trump do Ocidente como uma comunidade de nações.

E o que caracteriza essa comunidade, a partir das nacionalidades (e não por cima das nacionalidades)? Trump elenca, em primeiro lugar, a arte: “as obras de arte inspiradoras que honram a Deus”, e em seguida a inovação, a celebração dos heróis, das tradições e dos costumes imemoriais (aquilo que, na origem de nossa própria cultura, Camões expressou dizendo “as armas e os barões assinalados”), o estado de direito, a liberdade de expressão, o empoderamento das mulheres, a família no centro da vida e não o governo ou a burocracia, o hábito de debater e questionar e a ânsia de conhecer, e “acima de tudo (…) a dignidade de cada vida humana, (…) a esperança de cada alma de viver em liberdade”. Aí estão “os laços sem preço que nos unem como nações, como aliados e como uma civilização”, aquilo que “herdamos de nossos ancestrais, (…) que nunca existiu desta maneira antes (…) e que, se fracassarmos em preservá‑lo, nunca, jamais voltará a existir”.

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Há muito tempo um líder mundial não falava dessa maneira. Trump aqui se aproxima de Reagan e de Churchill (que se viam como os grandes defensores da liberdade e da civilização diante da barbárie e da opressão). Entre tantas expressões fora do comum, o apelo aos ancestrais é particularmente gritante. A Europa pós‑moderna – junto com os Estados Unidos que, até Obama, cada vez mais se assemelhavam à Europa – viviam ultimamente numa espécie de tanque de isolamento histórico, viviam já fora da história, depois da história, num estado de espírito (ou falta de espírito) onde o passado é um território estranho. Desde o “iluminismo” toda a tradição liberal e revolucionária constituiu‑se numa rejeição do passado – em suas várias facetas de rejeição dos heróis, rejeição do culto religioso e rejeição da família (a família, esse indispensável microcosmo da história, que liga o indivíduo ao tempo assim como a nação liga um povo a um tempo). De repente “os ancestrais” aparecem no discurso do mandatário do país que vinha liderando a “ordem liberal”, essa mesma “ordem” que rejeitava o passado, os heróis, a fé e a família. O homem pós‑moderno não tem ancestrais, as sociedades pos‑modernas não têm heróis. Trump, ao falar de alma, desafia frontalmente o homem pós‑moderno, que não tem alma, que tem apenas processos químicos ocorrendo aleatoriamente entre seus neurônios. Trump fala de Deus, e nada é mais ofensivo para o homem pós‑moderno, que matou Deus há muito tempo e não gosta que lhe recordem o crime.

Essas expressões de Trump parecerão a muitos, no mínimo, manifestações de mau gosto, a outros parecerão laivos de fascismo. Sim, vivemos em um mundo onde falar dos heróis, dos ancestrais, da alma e da nação, da família e de Deus é, para grande parte da ideologia dominante, uma indicação de comportamento fascista. O problema estará com Trump ou estará com essa ideologia contra a qual ele se insurge?

Os capangas de Stálin, os de Mao Tse‑Tung e os de Pol Pot também chamavam tudo de fascista: ter um livro era fascista, amar os pais ou os filhos era fascista, venerar os símbolos tradicionais era fascista, tudo o que pudesse remotamente contestar o poder dominante do estado era fascista e levava o cidadão para o gulag, para o campo de reeducação ou para a fossa comum. Nossa ideologia “liberal” pós‑moderna incorporou esse reflexo. Ela (ainda) não pune as expressões de fascismo com a internação em gulags ou com a execução sumária, mas sim com o ridículo, com o ostracismo,

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com o descrédito público, com a execução sumária de sua persona política senão de sua pessoa física (embora as agressões muito físicas das brigadas de black blocks “antifascistas” nos EUA contra qualquer partidário de Trump já estejam alastrando‑se perigosamente pelo país). Trump nos convida a reexaminar os postulados dessa ideologia que tomamos como moeda corrente, como a única forma decente de pensar.

A forma política desta civilização tal como Trump a concebe é a de uma “forte aliança de nações livres, soberanas e independentes”. A Otan aparece como a expressão militar dessa aliança, mas Trump deixa bem claro que, sem a aliança espiritual, esse braço armado é inútil. “Nossa defesa”, diz ele: não é apenas um comprometimento de dinheiro, é um comprometimento de vontade. (…) A defesa do Ocidente depende não apenas dos meios, mas também da vontade dos seus povos (…). Podemos ter as maiores economias e as armas mais mortíferas da Terra, mas se não tivermos famílias fortes e valores fortes, então seremos fracos e não sobreviveremos.

O clamor pela defesa espiritual, pelo rearmamento espiritual do Ocidente, a partir da identidade nacional, domina a parte final do discurso. Trump enfatiza: “A questão fundamental do nosso tempo é saber se o Ocidente tem a vontade necessária para sobreviver. Temos confiança em nossos valores para defendê‑los a qualquer custo? Temos respeito suficiente por nossos cidadãos para protegermos nossas fronteiras? Temos o desejo e a coragem de preservar nossa civilização diante daqueles que querem subvertê‑la e destruí‑la?”

Trump retoma o exemplo da Polônia e narra a luta desesperada dos patriotas poloneses, durante o levante de Varsóvia contra os nazistas, para manter aberta uma estreita passagem entre as duas partes da cidade, a passagem da Avenida Jerusalém, último alento dos insurgentes. A geração atual é chamada a retomar esse combate dramático contra os novos inimigos, não podendo esquecer‑se jamais de que, como os heróis nos recordam, “o Ocidente foi salvo com o sangue dos patriotas”. Nesse combate, “cada metro de solo, cada centímetro de civilização merece ser defendido com a sua vida”. (Vem à mente aqui um livro recente do filósofo de esquerda francês Michel Onfray, Décadence, que, partindo de uma atmosfera intelectual muito diferente de Trump,

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chega à conclusão, muito semelhante, de que o Ocidente está fadado a desaparecer diante do Islã, pois os muçulmanos estão dispostos a morrer por sua civilização e os ocidentais não).

Trump insiste em lembrar onde se trava essa nova guerra: “Nossa luta pelo Ocidente não começa no campo de batalha, começa no nosso espírito, na nossa vontade e na nossa alma (…).” E, nesse combate, tudo está em jogo: “Nossa liberdade, nossa civilização, nossa sobrevivência dependem dos laços de história, cultura e memória.” O tom em que Trump encerra o discurso é o da peroração de um chefe aos soldados antes da batalha: “Assim como a Polônia não se deixou quebrar, eu declaro hoje, para todo o mundo ouvir, que o Ocidente nunca, jamais será quebrado. (…) Juntos lutemos como os poloneses – pela família, pela liberdade, pelo país e por Deus”.

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Essa visão do Ocidente não implica um conflito com o não Ocidente. O inimigo do Ocidente não é a Rússia nem a China, não é um inimigo estatal, mas é sim principalmente um inimigo interno, o abandono da própria identidade, e um inimigo externo, o islamismo radical – o qual, entretanto, ocupa lugar secundário em relação ao primeiro, pois o islamismo só representa ameaça porque encontra o Ocidente espiritualmente fraco e alheio a si mesmo. Não há nada aqui de uma “lógica de nós contra eles”, como os detratores de Trump gostam de dizer. É uma lógica de “nós buscando a recuperação de nós mesmos”. Trump propõe ao Ocidente uma espécie de trabalho junguiano – realçar a figura do herói, recriar a narrativa da busca e das tribulações desse herói, uma terapia civilizacional cuja chave está em reencontrar o contato com um inconsciente coletivo abandonado, sufocado sob os golpes do liberalismo tecnocrático e do politicamente correto. É uma visão mais geopsíquica ou psicopolítica do que qualquer outra coisa.

Não esqueçamos que, na psicologia junguiana, à diferença da freudiana, Deus existe, real e fundamentalmente. Em Jung, como em Trump, não se trata de desvencilhar‑se das ilusões para tentar manter uma saúde mental medíocre – como para Freud e muitos liberais – mas de aprofundar‑se naquelas pretensas ilusões e descobrir que elas, na verdade,

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constituem o substrato e a realidade básica capaz de dar sentido à vida psíquica e levá‑la a um nível superior. A alma (anima), o Deus que existe na alma (e que, portanto, existe), os arquétipos, o simbolismo do si mesmo, todas essas figuras de Jung estão na visão ocidentalista de Trump. O presidente quer submeter o Ocidente a uma terapia de recuperação da personalidade perdida. O restabelecimento do contato com o próprio inconsciente, que o Ocidente havia abandonado. Não há um verdadeiro inimigo externo, o inimigo é o autoesquecimento.

O Ocidente pós‑moderno é um Ocidente que não quer olhar para si mesmo, que tem um forte impulso de autocontestação e por vezes até mesmo celebra a substituição de sua cultura por aquela dos imigrantes não ocidentais que chegam em número crescente. Não o faz por ser altruísta, por ter compaixão ou tolerância, estas são apenas uma máscara: no fundo o Ocidente escancara as portas para milhões de imigrantes porque se nega a si mesmo, porque está psiquicamente doente. Trump quer deter o avanço desse impulso autodestrutivo.

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A visão de mundo de Trump tomou forma clara também no discurso pronunciado na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 19 de setembro de 2017, de forma totalmente compatível e complementar com o discurso de Varsóvia. Na ONU, Trump advoga por um mundo de nações soberanas e independentes, que se respeitem mutuamente, e cuja cooperação será forte exatamente na medida em que se construa a partir  da soberania e da independência, e não da diluição das fronteiras ou do princípio supranacional.

Podemos dizer que Trump propõe um pan‑nacionalismo – um mundo onde a busca da paz e da prosperidade precisa basear‑se nas nações, e não confrontá‑las. A criação da ONU, segundo ele, “baseou‑se na visão de que diferentes nações podem cooperar para proteger sua soberania, preservar sua segurança e promover sua prosperidade”. Deixa claro que as Nações Unidas são nações unidas, unidas exatamente para melhor defender a unicidade e personalidade de cada uma, e não para diluirem‑se em uma pasta global sem forma. Ademais, o denominador comum que as congrega na ONU constitui‑se de soberania, segurança e prosperidade: Trump não fala de “valores universais” ou algo assim, porque em sua visão

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não existem “valores universais” que se superponham à identidade de cada nação e de cada civilização. Os valores só existem dentro de uma nação, dentro de uma cultura, enraizados em uma nação, e não em uma espécie de éter multilateral abstrato. A defesa desses valores depende justamente da saúde e robustez nas nações, e não da diluição das nacionalidades: a existência de “nações fortes e soberanas [permite] a países diversos, com valores diferentes, diferentes culturas e diferentes sonhos não apenas coexistirem, mas trabalharem lado a lado sobre a base do respeito mútuo”.

Subjaz em todo o discurso a negação frontal à ideia de que as Nações Unidas sejam ou devam ser o embrião de um governo mundial, ou de que deva existir algo chamado “governança global”. Trata‑se de uma concepção que se encaixa perfeitamente com o ocidentalismo expresso em Varsóvia. O Ocidente forma uma comunidade de nações que compartilham algo que as ultrapassa – cultura, história e fé. As nações não ocidentais não compartilham desse mesmo conjunto de cultura, história e fé, portanto, não fazem parte do Ocidente – mas esse Ocidente também não quer fazer parte do resto do mundo, não quer impor seu patrimônio ao restante do mundo, mesmo porque esse patrimônio é impossível de se impor, já que, por definição, é impossível compartilhar sua própria ancestralidade, sua própria identidade.

Temos aqui o oposto do imperialismo ou do intervencionismo. No discurso diante da ONU, Trump afasta‑se de qualquer ideia neocon de imposição da democracia a terceiros países: Não buscamos impor nossa maneira de viver a quem quer que seja. (…) Não esperamos que países diversos compartilhem as mesmas culturas, tradições ou mesmo sistemas de governo. Mas esperamos que todas as nações mantenham estes dois deveres soberanos fundamentais: respeitar os interesses de seu próprio povo e os direitos de qualquer outra nação soberana.

Trump não deseja, portanto, um Ocidente que saia pelo mundo implantando democracias. Deseja respeito mútuo entre as nações e entre civilizações. O respeito deve dar‑se entre nações que tenham sua própria identidade e que se autogovernem, e não numa geleia geral planetária regida por “valores”. Mas Trump prega também o autorrespeito (“respeitar os interesses do seu próprio povo”), o que no fundo é uma maneira de repetir

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a mensagem de Varsóvia: revalorizar a identidade do Ocidente através das nações que o compõem. Assinale‑se que, para Trump, os países, na arena internacional, regem‑se por “deveres”, e não por “valores”. Tanto no dever de respeito mútuo quanto no de autorrespeito está manifesto o princípio da nação como, primordialmente, espaço de preservação da própria identidade.

Nesse arcabouço de pensamento é que se insere o princípio America First. Afirma Trump diante da Assembleia Geral: Como presidente dos Estados Unidos, colocarei sempre a América primeiro, do mesmo modo que vocês, líderes de seus países, vão sempre colocar seus países primeiro. Todos os líderes responsáveis têm a obrigação de servir seus próprios cidadãos, e o estado nação permanece o melhor veículo para elevar a condição humana.

Expressão claríssima do que acima chamamos o pan‑nacionalismo. Um anticosmopolitismo radical. Cada estado tem o dever, e não só o direito, de trabalhar pelo seu povo, o estado só se legitima se for nacional, enraizado numa comunidade, e cada pessoa se desenvolve como membro de uma comunidade nacional, não como “cidadão do mundo”. O estado não é um mal necessário, mas um bem precioso – na medida em que não seja uma estrutura de administração tecnocrática, mas o defensor e propulsor da sua comunidade história, um estado nação no sentido de estado inseparável da nação.

Trump complementa assim, em Nova York, a visão de Varsóvia, onde propugnava por um Ocidente que respeite a si mesmo e recupere sua própria identidade e tradição ameaçadas pelo esvaziamento da nacionalidade e pelo esquecimento dos heróis.

Trump não enxerga o mundo como uma comunidade internacional, certamente não no sentido em que caracteriza o Ocidente como uma “comunidade”. O conceito de comunidade, reserva‑o para aquelas nações que, juntas, sem deixar a identidade de cada qual, compõem uma civilização. Comunidade precisa ter base na história profunda, nos mesmos arquétipos. Comunidade construída só com base em valores abstratos não é comunidade. Nas relações internacionais rege o respeito mútuo, mas não rege o sentimento – este só governa dentro de uma civilização.

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O nacionalismo, a ideia de nação, está muito ligado ao nascimento do Ocidente. Segundo Ésquilo, no calor da batalha de Salamina os gregos cantavam:

Ô paídes hellênon íte,

eleutheroúte patrída, eleutheroúte de

paídas, gynaíkas,

theôn te patrôon édê,

thêkas te progónôn,

nun hypér pántôn agôn!

 

(Avante, ó filhos de helenos,

libertai a pátria, libertai

vossos filhos, vossas mulheres,

os templos de vossos deuses,

os túmulos dos ancestrais,

agora mais que nunca, lutai!)

Claro que Ésquilo apresenta aqui o retrato romantizado da batalha – mas talvez nem tanto. A batalha naval de Salamina, onde a esquadra combinada das cidades gregas derrotou os invasores persas (e salvou o Ocidente em seu nascedouro) ocorreu em 480 a.C., e Ésquilo – que lutou ele mesmo na refrega – compôs a peça conhecida como “Os Persas”, de onde provém a citação, logo em 472 a.C. Salamina deve ter acontecido mais ou menos como ele descreve1. As cidades gregas formam diante dos invasores persas a primeira aliança do Ocidente, esse Ocidente que então se limitava à Grécia, mais ou menos nos moldes descritos por Trump, uma comunidade de nações independentes, ferozmente independentes, mas que ao mesmo tempo se concebiam como um conjunto completamente diferente do invasor ou de todo o resto do mundo, e unidos não por

1 Bem mais tarde, Heródoto chega a listar o número de trirremes fornecidos por cada cidade, e não deixa de ser fascinante que, graças a ele, saibamos até hoje que, aos 180 barcos de Atenas e 40 de Corinto, uniram-se, por exemplo, quatro de Naxos, cinco de Trezena e um de Crotona.

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algum tipo de conveniência geoestratégica, não para preservar as rotas comerciais ou algo assim, mas para defender a liberdade, a família, a sua herança cultural e os seus deuses. Unidos por alguma coisa que decidem chamar de “pátria”. Eleutheroúte patrída, libertai a pátria! Deve ser a primeira vez em que essa palavra aparece nesse sentido na literatura grega ou em qualquer literatura. Pouco importa se aquele grito surgiu exatamente assim na batalha – importa apenas que, logo oito anos depois, Ésquilo o encenava no anfiteatro e esse clamor fazia sentido para o seu público, pois forçosamente o conceito de pátria existia e os gregos pelo menos queriam acreditar que ele existisse. Libertemos a pátria! Libertemos as mulheres, os filhos! Libertemos, preservemos os templos, defendamos nossos deuses e nossos antepassados. Ainda bem que esses gregos – nossos antepassados! – ainda bem que eles não tentaram a via da tolerância e do diálogo, ainda bem que eles não excluíram a opção militar, ainda bem que não desistiram. O Ocidente nasce em Salamina, nasce na luta, o Ocidente não nasce no diálogo nem na tolerância, nasce na defesa de sua própria identidade. Não é só a sobrevivência material nem a liberdade política, é a sobrevivência dos seus próprios deuses, sua própria cultura, sua própria história, é pela sobrevivência espiritual que as 180 trirremes atenienses e as quatro trirremes de Naxos lutaram em Salamina. Os gregos poderiam ter‑se rendido para não correr o risco diante de forças muito superiores (como podiam ter‑se rendido em Maratona, ou nas Termópilas) e ter aceito o papel de tributários de Dario ou de Xerxes, como o haviam feito tantos povos do Oriente submetidos ao Império Persa (o Império Persa era o globalismo da época). Poderiam tornar‑se parte de um belo império multicultural. Perderiam a liberdade política, perderiam sua história e sua cultura, sua crença, mas em troca ganhariam a sobrevivência material.

Perderiam a pátria, com tudo o que ela contém, com tudo o que a conforma (as mulheres, os filhos, os templos e as sepulturas), mas não precisariam se expor às flechas e machados persas. E talvez nem realmente perdessem isso tudo, os persas poderiam poupar suas famílias e deixa‑los cultuar Apolo. Estranhamente, os gregos não se satisfaziam em manter seu culto e sua casa como algo “tolerado” por um imperador distante – queriam seu culto e sua casa, mas também e, sobretudo, sua liberdade, sem a qual nada faria sentido. Entregar a liberdade aos persas não seria mau negócio de um ponto de vista puramente racional. Os gregos em Salamina, entretanto,

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não foram tão racionais. O grito nasceu no seu peito, Patrída!, e até hoje ecoa. Eleutheroúte patrída, a pátria e a liberdade já surgem como conceitos inseparáveis naquele dia no final do verão de 480 a.C. A pátria, essa pátria que nasce em Salamina, não é um conceito, é uma emoção, um sentimento, um conjunto de sentimentos que toma uma forma política, mas que não é em sua essência uma forma política. Trump o sabe, como Ésquilo o sabia.

O Ocidente nasce em Salamina, mas não só na batalha propriamente dita como também e, sobretudo, em sua transposição literária por Ésquilo. Assim, o Ocidente já nasce com uma dimensão autorreflexiva, nasce não só como um fato, mas como um trabalho literário de construção consciente da história – a tragédia grega é onde o mito conflui com a história. “Os Persas” não é uma obra tardia, muito ao contrário, é cronologicamente a primeira tragédia (ou mais precisamente é a segunda parte da primeira trilogia, cujo início, “Fineu”, não chegou até nós) do primeiro grande poeta trágico. Pátria, liberdade, o sentimento da história, o mito – o grito eleutheroúte patrída reúne tudo isso numa nova síntese, numa “poesia” no sentido etimológico de algo criado, uma obra humana. Essa poesia, essa criação, é o Ocidente. Sim, o Ocidente é, de certa forma, uma criação literária – o que não quer dizer que não exista, ou que seja ilusório, pura invenção ou enganação. Muito pelo contrário, significa que o Ocidente é uma realização do espírito tal como este se manifesta em determinadas pessoas que compõem determinadas comunidades.

O patriotismo pertence, portanto, à essência do Ocidente. Não foi pensado pelos filósofos, foi sentido pelos homens diante do perigo da morte – e não esqueçamos que, para os que conhecem a “metafísica da guerra” conforme a expressão de Julius Evola, o grito que nasce no peito de um homem na hora da batalha é sagrado, não provém dele, mas lhe é inspirado pelo deus. Esse grito de “Libertai a pátria!” não surgiu nunca na Babilônia, nem no Egito, não há nada parecido com o conceito de pátria nessas culturas. Os egípcios acreditavam viver numa terra sagrada que reproduzia a forma do céu (o Nilo correspondia à Via Láctea, as pirâmides de Giza à constelação de Órion para onde iam as almas imortais dos faraós, ao menos segundo a interpretação de Robert Bauval), mas não parece haver, na extensa literatura egípcia, nada parecido ao clamor de Salamina. Os soldados dos soberanos orientais lutavam pelo pagamento, pelo butim, no máximo por

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alguma fidelidade ao rei (facilmente reversível), mas jamais pela “pátria”. Alguns povos antigos lutaram certamente pela liberdade, outros pela sobrevivência de sua família, outros pelos seus deuses, ou pela tumba de seus maiores – mas nenhum, senão o grego, lutou pela pátria como a soma disso tudo, pela pátria como união indissociável da liberdade, família, história e crença. Nenhum deles tampouco, senão o grego, celebrou a pátria e sua libertação numa peça de teatro.

Quanto à Índia, à China e ao Japão antigos, seria preciso examinar a questão das origens do nacionalismo nessas culturas também. Mas é certo que, na antiguidade mediterrânea e centro‑asiática, nada se compara a Salamina. Pode‑se formular a hipótese de que Índia, China e Japão dão hoje continuidade a uma longa linha nacionalista que principia nos primórdios dessas culturas. Todos eles praticam um profundo exclusivismo cultural, preservam e defendem sem pudor seus deuses e a tumba de seus ancestrais.

No entanto, segundo os dogmas politicamente corretos de hoje, aquelas culturas nunca são chamadas de “fascistas”. Só se contesta a identidade, só se prega a diversidade no Ocidente. Ninguém reclama de que a China e o Japão preservem seu caráter profundamente sínico e nipônico. Por que só o Ocidente teria a obrigação da diversidade, por que só o Ocidente não teria direito à sua identidade? Por causa das guerras provocadas – diz‑se – pelo nacionalismo, principalmente a I e a II Guerras Mundiais? Mas o Japão também lutou do lado errado na II Guerra e, no entanto, não sofreu o aniquilamento, a invalidação de toda a sua cultura pregressa como a Alemanha, por exemplo, sofreu2.

Roma preservou e aprofundou o nacionalismo tal como originalmente expresso por Ésquilo, principalmente entre os primórdios da Urbe e o início do Império. Dulce et decorum est pro patria mori, dizia Horácio, “doce e honroso é morrer pela pátria”. A Eneida de Virgílio é o primeiro e o maior épico nacionalista de todos os tempos. Já no auge de Roma, o patriotismo como amor ao seu rincão e aos seus deuses domésticos se transformou

 

2 Curiosamente, esse compreensível descrédito e invalidação do nacionalismo alemão após a guerra, em decorrência do nazismo, foi aos poucos se estendendo aos demais nacionalismos europeus e ao patriotismo norte-americano, inclusive e absurdamente aos nacionalismos dos países cujos soldados lutaram, por amor a suas pátrias, contra o nazifascismo. Na memória coletiva que temos hoje, é como se a II Guerra tivesse sido travada, não entre algumas nações de um lado e outras nações de outro, tal qual realmente aconteceu, mas entre o princípio da nação de um lado e a negação desse princípio do outro, com a vitória final da negação, e consequente desmantelamento do nacionalismo enquanto lado perdedor.

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rapidamente em um ufanismo estatal, uma religião cívica, mas ainda estava baseado em algo vivo e pulsante. No Império, o nacionalismo degenera, a nação desaparece e fica só o estado. Mas, nos séculos que forjaram a grandeza romana, a nação era algo sagrado, simbolizada pela águia das legiões, e associada desde o princípio à liberdade republicana. Embaixo da águia vinha a sigla (a primeira sigla da história) SPQR, Senatus Populus que Romanus, o Senado e o povo, ou seja, o estado e a sociedade unidos – ou, numa perspectiva sociológica, a elite e a plebe unidas sob as asas da nação.

Aliás, vem evidentemente do latim a palavra “nação”: natio, nationis da mesma raiz do verbo nascor, nasci, natum, nascer. A ideia de nação está assim profundamente ligada à autopercepção de uma comunidade de pessoas que compartilham uma origem comum. A nação não é uma escolha, mas um fato indelével e fundacional na vida do indivíduo como o seu próprio nascimento. Não por acaso o marxismo cultural globalista dos dias atuais promove ao mesmo tempo a diluição do gênero e a diluição do sentimento nacional: querem um mundo de pessoas “de gênero fluido” e cosmopolitas sem pátria, negando o fato biológico do nascimento de cada pessoa em determinado gênero e em determinada comunidade histórica. Aliás, ainda sou do tempo em que ouvia professores marxistas na universidade conclamando cada jovem de todo o mundo a “lutar pela libertação da sua comunidade histórica”, o que soava falso, mas que pelo menos ainda continha um eco de Ésquilo, uma maneira leninista de dizer eleutheroúte patrída. Já hoje o marxismo conclama a destruir o conceito de comunidade histórica, a nação, e não fala mais de liberdade, hoje quer um mundo de fronteiras abertas onde todos são imigrantes e ninguém pode identificar‑se com a sua terra nem com a sua gente sem ser chamado de fascista. Nos dois casos, a negação do gênero e a negação da nacionalidade, o marxismo cultural busca o mesmo objetivo: enfraquecer o ser humano, torna‑lo uma paçoca maleável incapaz de resistir ao poder do estado, criar pessoas inseguras, desconectadas, incapazes de assumir um papel social próprio ou de ter ideias que não sejam os chavões politicamente corretos veiculados na mídia.

Durante cerca de 1.000 anos, entre o final do principado de Augusto e a explosão de criatividade e autoconfiança europeia no século XI, o Ocidente não teve nação: a massa imperial amorfa, na longa decadência do mundo antigo, transitou depois um caos fragmentado em feudos e

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microrreinos. Coincidentemente, não foi um período muito feliz na história ocidental, essa sequência entre o outono de Roma e o longo inverno da idade das trevas. A Europa começa a renascer como civilização quando as nações começam a germinar, na Alta Idade Média, e quando ao mesmo tempo a cristandade toma consciência de si mesma e parte para a luta, para a reconquista (bem‑sucedida na Península Ibérica, não tanto na Terra Santa). Para usar uma imagem indesculpavelmente piegas, é como se um amontoado desconexo de rochas começasse a condensar‑se e tomar a forma de vários planetas, diferentes uns dos outros, mas compondo todos eles um mesmo sistema e orbitando todos eles em torno do mesmo sol, a fé cristã. O processo evidentemente foi imperfeito, obedeceu a formas e velocidades completamente diferentes. A França começara a formar‑se muito antes, com Clóvis e Carlos Magno, este, aliás, também o pai da Alemanha; a Espanha se condensara inicialmente não em um, mas em dois grandes reinos; Portugal surgiu inexplicavelmente quase que a partir do nada (por que as gentes do pequeno condado portucalense, entre Douro e Minho, de súbito começaram a sentir‑se uma nação, e não um simples feudo como seria de esperar, por que tão cedo, tão longe de tudo?); a Itália voltou a ser a nação que de certa forma nunca deixara de ser desde as guerras púnicas, mesmo que só viesse a ter o seu estado muitos séculos mais tarde; a Inglaterra ganhou o sentido de si mesma ao ser conquistada por um bando de aventureiros normandos, etc.

As figuras e idiossincrasias dessa história são infinitas – algumas nações se formaram pela guerra, outras pela língua ou pela literatura – mas o vetor é em todos os casos o mesmo e tudo aponta num sentido comum, a nação. A nação passa a encarnar o vigor do espírito ocidental.

A Revolução Francesa subitamente contesta a nação. Como em tantas revoluções, o povo que queria pão, respeito e liberdade, mas que amava a monarquia como símbolo nacional, foi rapidamente traído pela elite intelectual que o manobrara para chegar ao poder e que imediatamente começou a dar‑lhe opressão, miséria e discurso ideológico, juntamente com a cabeça de Luís XVI, que ninguém pedira. Os revolucionários mais extremos queriam um mundo sem classes, sem fronteiras, sem Deus, sem família, sem tradições, sem nação. Na escola, todos aprendemos a celebrar esse momento tenebroso da história e aprendemos a desprezar a Revolução Americana, sem saber que ela pode ser vista como um

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verdadeiro triunfo do espírito e da liberdade. Mas não terá sido a Revolução Francesa o laboratório onde se criaram os vírus de todos os despotismos que avassalaram o mundo desde então? O certo é que a França somente se ergueu da fúria homicida e suicida revolucionária quando voltou a ser uma nação, com Bonaparte – o qual depois saiu pela Europa plantando, seja por imitação ou por contrarreação, o desejo de nacionalismo, despertando‑o ou avivando‑o na Itália, nas terras do que viria a ser a Alemanha, na Rússia, até mesmo na Suíça. O movimento romântico – que surge mais ou menos no momento em que Napoleão chega com suas tropas a Milão (como acreditava Stendhal) e afirma‑se rapidamente como uma enorme contrarrevolução cultural, oposta em tudo aos “ideais” da Revolução Francesa – tem como um de seus pilares o nacionalismo. O romantismo relê toda a história pregressa à luz do sentimento nacional, recria e rearranja os mitos para revelar algo profundamente verdadeiro, o fato de que a alma humana é nacionalista, de que a história do Ocidente só tem significado, só corporifica um destino – por oposição a um simples amontoado de fatos – em torno do sentimento nacional3. Na América Latina o enorme impulso romântico inventa nações que não existiam, inclusive a nossa.

Dessa última década do século XVIII e começo do século XIX surgem todas as linhagens espirituais e políticas que disputam o mundo até hoje. Pode‑se argumentar que qualquer corrente política, hoje, descende intelectualmente de Babeuf e Robespierre ou de Goethe e Chateaubriand. O nacionalismo de raiz romântica vigorou até a I Guerra Mundial, quando chegou ao paroxismo e levou a uma crise tão profunda na autoconcepção do Ocidente que não nos recuperamos até hoje. Ressurgiu, ao mesmo tempo, com os bolcheviques, o grande inimigo revolucionário da ideia de nação. No vácuo deixado pelo descrédito do nacionalismo, começou a erguer‑se um novo inimigo, o internacionalismo financeiro (simbolizado por um fato logo anterior à guerra, a criação do Federal Reserve em 1913). E, na crise espiritual dos anos 20, tomou forma um movimento que pioraria ainda mais a situação para o lado nacionalismo: o socialismo se dividiu em duas correntes, uma que permaneceu antinacionalista; e outra que, para chegar ao poder, na Itália e na Alemanha, sequestrou o

3 Aliás, o romantismo também cria a palavra “sentimento” e também relê todo o passado para descobrir o sentimento, para revelar o sentimento onde até então ninguém o tinha visto.

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nacionalismo, deturpou e escravizou o sentimento nacional genuíno para seus fins malévolos, gerando o fascismo e o nazismo (nazismo = nacional‑socialismo, ou seja, o socialismo nacionalista). A partir da experiência nazifascista e dessa contaminação do sentimento nacional autêntico pelo movimento revolucionário socialista, o nacionalismo tornou‑se praticamente inviável no Ocidente, ou pelo menos na Europa, inclusive porque, após a II Guerra, a gigantesca máquina de propaganda marxista conseguiu apagar qualquer traço do caráter essencialmente socialista do fascismo e do nazismo, colocando sobre o nacionalismo toda a culpa pela catástrofe. Para expiar essa culpa, os povos decidiram trancar seu sentimento nacional no calabouço mais profundo, e começaram a substituir o tecido rico e complexo de suas histórias por uma coleção de clichês bem‑comportados.

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Fernando Pessoa, último profeta desta última flor do Lácio, dizia na Mensagem: “As nações todas são mistérios. Cada uma é todo o mundo a sós.” Pessoa compôs a Mensagem na época spengleriana da decadência do Ocidente que coincidiu com o grande desencanto frente ao nacionalismo, mas sua reação é justamente a tentativa genial de recuperar ou reinventar o nacionalismo mítico (criar mitos é o ofício mais alto que um ser humano pode ter, segundo o próprio Pessoa), refundar a unicidade profunda, multidimensional, transpolítica da nacionalidade. Da nacionalidade portuguesa no seu caso, mas num contexto de pan‑nacionalismo, bastante semelhante ao de Trump: “As nações todas são mistérios”: aqui, a palavra “mistérios” pode‑se ler não só no sentido de enigma inescrutável, mas também de celebração e rito iniciático, de culto mistérico, como nos mistérios de Elêusis, e nesse sentido cada nação é também uma religião.

“Cada uma é todo o mundo a sós”: ou seja, cada nação é uma experiência e uma vivência incomunicável, mas preservando e expressando cada uma o sentido da humanidade toda”. No mesmo poema (dirigido a Dona Tareja ou Teresa de Leão, mãe de Afonso Henriques, portanto, mãe de Portugal), mais adiante, o vate lamenta: “O homem que foi o teu menino envelheceu”. Esse menino, nascido naquele século XI de Dona Tareja e chegado à velhice nos anos 1930 da Mensagem, é certamente Portugal, mas ao mesmo tempo é também a ideia da nação europeia, esse grupo de

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mônadas‑irmãs que nascem juntas, vivem suas vidas paralelas e pareciam estar à beira do fim, na esteira da Grande Guerra. Mas não é o fim. Pessoa acredita no renascimento da nação – tanto da sua própria nação quanto do princípio nacionalista, que são a mesma coisa, pois a ideia de nação só existe porque existem as nações específicas, e vice‑versa (se é que entendi bem o meu Platão). Assim, ele implora à mãe de Portugal (que aqui também representa, claramente, a virgem mãe de Deus, pois Portugal, o filho em seus braços, é também o Cristo): “Mas todo vivo é eterno infante. Onde estás e não há o dia, no antigo seio, vigilante, de novo o cria!”.

O historiador Vítor Manuel Adrião vê nas navegações portuguesas um grande ritual iniciático, e, portanto, o Brasil, fruto supremo desse “mistério”, tem uma origem profunda e sagrada, ligada aos mais profundos arcanos da alma ocidental tal qual manifestados na nação portuguesa. Também o Brasil é o filho em que aquele Portugal envelhecido, mas eterno infante, se transforma. Os brasileiros, entretanto, ao longo de décadas, abandonamos a tal ponto a nossa conexão com a velha alma lusa que já não conseguimos perceber‑nos como parte desse drama e, imitando os povos europeus, abandonamos qualquer sentimento do sagrado na leitura de nossa história. Vivemos na Ilha da Vera Cruz, na terra da Santa Cruz, mas não nos interessamos em saber o que esse nome original significa, em conhecer o destino a que esse nome convoca, vemo‑lo como mera curiosidade escolar. Por que o destino nos deu primeiramente esse nome, ilha da cruz verdadeira, terra da cruz sagrada? Por que tão cedo o ocultou e o trocou pelo nome de uma árvore? Mas quiçá não o trocou tanto assim: a árvore, o lenho, a cruz. Em que sentido fomos ou podemos voltar a ser aquela cruz verdadeira? Axis mundi de tantas culturas, Ygdrasil dos nórdicos (a árvore que conecta a terra e o céu), árvore da vida da cabala hebraica, que na cabala cristã se transforma também na cruz de Cristo. E o que dizer da ilha mítica chamada Brasil, que os celtas – pelo menos desde o século XIV tal qual atestado pelos mapas – acreditavam existir a oeste da Irlanda, mas que só emerge das névoas por um dia a cada sete anos?

Terá sido por mera coincidência que ganhamos o mesmo nome? Por que não aprendemos nada disso? Por que nos contentamos com tão pouco em nossa história? Ciclo do açúcar, ciclo do ouro, ciclo do café, império, república, ditadura, democracia e pronto. Nada mais?

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Há exatamente 100 anos, em fins de 1917, Oswald Spengler finalizava a redação do primeiro volume de seu magnífico Das Untergangdes Abendlandes, A Decadência do Ocidente, publicado em 1918, seguido pelo segundo volume em 1922. Das Untergang é o livro de um amador, confuso e surpreendente, caleidoscópico, nada acadêmico, e talvez por isso mesmo tenha influenciado muito mais a cultura em geral e o pensamento político do que a historiografia. Spengler – professor de história no curso secundário – fala de tudo, mas pouco fala da própria decadência do Ocidente, porém bastou o título de sua obra para abrir o debate, que desde então não cessou, sobre a mortalidade de nossa civilização e seu fim iminente.

O pensamento de Spengler e a corrente de pessimismo ocidentalista que ele inaugura, há que dizê‑lo, nada tem de racista como tantas vezes se apregoa. Spengler não despreza ou odeia as outras civilizações ou os povos não ocidentais. Apenas sustenta que a vida de cada ser humano só faz sentido dentro de uma determinada civilização, de uma comunidade cultural ou – poderíamos acrescentar aqui – dentro de uma nação. Para ele não faz sentido falar em “humanidade”, a “humanidade” ou é um conceito zoológico ou então é uma palavra vazia, o caráter da humanidade somente se manifesta através da enorme variedade de suas formas culturais específicas, através dos povos, através das nações. A humanidade sem nações seria algo enormemente seco e pobre. Mas, como a cultura é algo orgânico, e não mecânico, ela tem o seu ciclo de vida e, portanto, nasce, cresce e morre. Assim, o desaparecimento de uma civilização como a ocidental, como qualquer outra, é algo irreparável e inevitável.

Pode‑se inclusive argumentar que, quando Spengler publicou seu livro, o Ocidente acabava de perecer, nas trincheiras da Grande Guerra. De fato, olhando retrospectivamente, vemos que a I Guerra Mundial pôs fim senão ao Ocidente, certamente ao seu apogeu. O mundo em 1913 era inteiramente dominado pela Europa e sua cultura, todo o resto do globo submetido a esse grande império, seja como colônia, seja como tributário. O mundo de 1917/1918 já era um mundo fragmentado, revoltado, o inexpugnável castelo eurocêntrico ruíra (derrubado pela própria guerra fratricida entre os europeus), por toda a parte irrompia o fogo da descolonização (primeiro mental, depois política), surgia na Rússia o grande inimigo comunista, começava a surgir dos cacos do Império

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Otomano o islamismo radical. Assistia‑se, senão ao fim, certamente ao começo do fim de uma estrutura político‑cultural portentosa.  A Europa, como centro civilizacional, desapareceu na I Guerra Mundial, e o Ocidente ter‑se‑ia extinguido ali, não fossem os Estados Unidos empunharem a bandeira desse Ocidente moribundo. O protagonismo e a centralidade dos EUA na civilização ocidental foram ficando claros a partir de então, para tornar‑se indiscutível após a II Guerra, embora os europeus, carregados de esnobismo intelectual, nunca tenham plenamente admitido esse fato. A partir de 1918, e principalmente a partir de 1945, o destino do Ocidente (o Ocidente como destino) esteve nas mãos dos Estados Unidos. Os EUA tiveram as armas, o poder econômico e a vitalidade cultural para dar ao Ocidente uma sobrevida em que os spenglerianos não acreditariam. Nestas últimas sete décadas não foram os europeus, mas os norte‑americanos que preservaram o legado ocidental em seus principais pilares, não só militar e economicamente, não só institucional e politicamente, mas também na vida do espírito: a fé cristã morreu na Europa para todos os efeitos, mas viceja nos EUA (não penso apenas nos protestantes, penso também na Igreja Católica, vigorosa nos EUA, enfraquecida na Europa).

O sentido de nação foi banido do mainstream cultural e social europeu, mas permanece central na vida americana. A própria cultura clássica é celebrada e vivenciada somente nos EUA como parte da própria herança, enquanto na Europa ela hoje se esgota na dimensão acadêmica, por um lado, e turística, por outro.

Os europeus de hoje não sentem mais que façam parte da mesma história que seus antepassados, como sentiam até o começo do século XX. Já não se percebem como atores do mesmo drama que colocou em cena os cretenses e seu minotauro, os aqueus às portas de Troia, Eneias caindo de joelhos ao entender que o Lácio era sua terra prometida (salve fatis mihi debita tellus), Salamina e as Termópilas, Alexandre em busca da imortalidade, Aníbal com seus elefantes às portas de Roma, as legiões chegando à Lusitânia e maravilhando‑se ao contemplar pela primeira vez as ondas majestosas do Atlântico, o logos de Heráclito e o logos de São João, São Paulo pregando o Cristo‑Deus, o sonho de Constantino, a conversão dos germanos e a conversão dos vikings, a cruzada dos barões e a dos eremitas, São Francisco com os passarinhos ao ombro, Percival e o Rei Artur, a partida das caravelas, as teses de Lutero, a Bastilha e a Vendeia,

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Napoleão batido pelo inverno, Lourdes e Fátima, Sédan e Verdun, Omaha Beach. Nada disso significa mais nada para um europeu – é como se ele houvesse deixado o palco e sentado‑se na plateia, “já não é comigo”. A fundação da União Europeia anulou, pasteurizou todo o passado. “Europa” já não significa todo aquele cabedal de experiência humana, mas apenas um conceito burocrático e um espaço culturalmente vazio regido por “valores” abstratos. Os europeus de hoje podem até estudar sua história, mas não a vivem como um destino, muito menos a celebram, nem a entendem como “sua”, não veem nela um sentido nem um chamado. É interessante ler lado a lado os historiadores europeus que escrevem hoje sobre a Grécia e Roma, por exemplo, ou sobre qualquer outro assunto, e aqueles que escreviam no século XIX, antes do grande cataclisma, da grande desnacionalização do Ocidente a partir da I Guerra. Aqueles de então viam‑se claramente dentro da história que contavam, participavam, falavam com a paixão e o empenho de quem sente, de quem conhece as pessoas de que fala, eram íntimos de Péricles e Godofredo de Bulhões. Os de hoje escrevem uma história fria, seus personagens não têm vida, são meras figuras esquemáticas, parece que estão escrevendo história por obrigação, nenhum sentimento do destino ou do mistério os conduz, não têm imaginação, não conseguem ver‑se a si mesmos empunhando uma lança na falange macedônia ou içando as velas na Santa Maria.

Já os historiadores norte‑americanos de hoje – pelo menos alguns deles, os que escrevem para o grande público e não para a academia – parecem‑se àqueles europeus do século XIX, pois ainda contam a história americana como uma história de carne e osso, uma história que consegue comunicar o presente com o passado. Os americanos são o último povo tradicionalista no Ocidente (na expressão do professor Christian Kopff, diretor do “Centro para a Civilização Ocidental” na Universidade do Colorado em Boulder – cabendo perguntar, aliás, até quando a onda politicamente correta que avassala o ensino superior americano deixará esse centro ter esse nome).

Só quem ainda leva a sério a história do Ocidente, só quem continua sendo ator e não mero espectador, são os norte‑americanos, ou pelo menos alguns norte‑americanos. Hoje, é muito mais fácil encontrar um ocidentalista convicto no Kansas ou em Idaho do que em Paris ou Berlim.

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Para tentar entender Trump em Varsóvia convém ler, além de Spengler e Onfray, também o mestre tradicionalista René Guénon (importante influência de Steve Bannon, ex‑estrategista‑chefe da Casa Branca e ainda central no movimento que levou Trump à presidência). Guénon, escrevendo nos anos 1920, acredita que o Ocidente moderno havia‑se distanciado completamente da “tradição” (o núcleo espiritual de todas as civilizações e que se manifesta diferentemente, mas de forma coerente em cada uma delas), tornando‑se um poço de materialismo e ignorância, cujo único princípio é a negação de qualquer espiritualidade.

Francês convertido ao islamismo e vivendo no Egito, Guénon acreditava, entretanto, que somente o cristianismo, e especificamente o catolicismo, poderia talvez recuperar um mínimo de espiritualidade no Ocidente e salvá‑lo da completa aniquilação numa profunda idade das trevas, pois somente a Igreja Católica, segundo ele, preservava – embora latentes e incompreendidos por ela própria – os elementos da grande tradição. Diz Guénon: ser antimoderno não significa de nenhuma forma ser antiocidental, ao contrário, significa fazer um esforço para salvar o Ocidente de sua própria confusão (…) O Ocidente necessita enormemente de defesa, mas somente defesa contra si mesmo e suas próprias tendências que, se levadas à sua conclusão, levarão inevitavelmente à sua ruína e destruição.

É impossível não ouvir ecos guenonianos no Trump de Varsóvia.

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Os EUA defenderam o Ocidente do comunismo e acharam que, quando o comunismo acabou, estava feito o trabalho, fim da história. Mas nada acabou. A partir dos anos 90 foi‑se vendo que o niilismo (alimentado pelo marxismo cultural) tinha‑se substituído ao inimigo comunista. Na verdade, pode‑se argumentar que o comunismo soviético era apenas uma entre tantas máscaras desse niilismo fundamental que precede Lênin e Stálin, precede Marx, precede Nietzsche, que vem dos philosophes ateus anticristãos que prepararam a revolução francesa.

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Esse inimigo, o niilismo, penetrou os próprios EUA. Rapidamente os Estados Unidos vinham substituindo o seu apego à história viva pelo sistema dos “valores” e do relativismo cultural (que, aliás, não é relativismo, é um absolutismo antiocidental). Ora, o Ocidente não está baseado em valores, não está baseado em tolerância nem em democracia, está baseado em Platão e Aristóteles, César e Alexandre, São Paulo e Santo Agostinho, Washington e Jefferson, batalhas e milagres, paixões e guerras, a cruz e a espada. O Ocidente tem cara, nome e sangue. Ideais e valores sim, mas esses ideais e valores não estão nos panfletos da Comissão Europeia nem nas decisões de qualquer corte de direitos humanos, estão nas cicatrizes do passado, seus heróis e mártires (heróis ambíguos, certamente, como qualquer ser humano).

Desde 1945 (até Trump), mesmo nos EUA, cada vez se podia falar menos em “Ocidente”. Na época da Guerra Fria se usava muito a expressão “Mundo Livre” para opor‑se ao bloco socialista, e o conceito de Ocidente, o tesouro das gerações, conseguiu sobreviver, mal e porcamente, dentro dessa caixa de papelão, mas foi perdendo qualquer apelo mítico.

The West era a metonímia que designava apenas uma aliança militar. Em sua base estavam “valores” – democracia, respeito aos direitos humanos, liberdade econômica –, mas não estavam sentimentos nem uma convicção do destino.

Os EUA iam entrando no barco da decadência ocidental, entregando‑se ao niilismo, pela desidentificação de si mesmos, pela desaculturação, pela substituição da história viva pelos valores abstratos, absolutos, inquestionáveis. Iam entrando, até Trump.

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O Ocidente pós‑moderno da desconstrução de todos os significados é também o Ocidente politicamente correto da imposição de significados, da criação de tabus, da petrificação do pensamento. O Ocidente nasceu interrogando o sentido das palavras, mas ultimamente desistiu. Se Sócrates chegasse hoje e, usando seu famoso método, começasse a perguntar: “o que é racismo”, “o que é justiça social”, “o que são direitos humanos”, “o que é um direito”, “o que é humano”, e se pusesse a desmascarar a inanidade intelectual e a superficialidade destes e de outros conceitos, seria novamente condenado a beber cicuta.

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Para dar um exemplo: “diversidade”. Ouve‑se muito que os problemas da África, as guerras civis, os golpes, os massacres e a instabilidade são causados pelo traçado artificial das fronteiras coloniais que os países africanos independentes herdaram e que reúnem, num mesmo estado, populações de etnias diversas e rivais. Essa interpretação, tão comum entre os bem‑pensantes, assume que diversidade étnica dentro de um país ocasiona, portanto, os mais sérios conflitos. O corolário evidente é de que, idealmente, as fronteiras africanas deveriam ser redesenhadas segundo as etnias, evitando‑se a diversidade dentro de um mesmo país. Entretanto, os mesmos bem‑pensantes vão a extremos para promover a diversidade nos países ocidentais, justificando‑a não só como dever moral, mas também pelos seus supostos benefícios, dizendo que a diversidade proporcionada pela imigração estimula o avanço intelectual, a produção cultural e a economia. Interessante. A única maneira de explicar racionalmente essa inversão de sinal da diversidade – ruim na África, boa nos Estados Unidos ou na Europa – seria supor que determinados povos têm capacidade de conviver com a diversidade, outros não – uma explicação que, evidentemente, os praticantes da ideologia dominante rejeitariam escandalizados. Então como explicam? Não explicam. Mantêm o duplo pensamento, a lógica stalinista pela qual 2+2 às vezes é 5, às vezes é 3, conforme a conveniência política. Revela‑se assim que “diversidade” não é um conceito racional, pesquisável, interrogável, mas apenas uma palavra de ordem, um tijolo que se atira na janela que se quer quebrar, e não um tijolo que sirva para construir, junto com outros tijolos, um edifício de pensamento lógico.

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O Ocidente, o nacionalismo ocidental, é um sistema simbólico. Ao homem, animal simbólico, o pos‑modernismo vinha negando esse alimento essencial, o símbolo (“nem só de pão o homem viverá, mas de toda palavra”). O homem vinha perdendo a função simbólica, incapaz de pensar senão a partir de algumas categorias estereotipadas (opressão, justiça, humanidade, etc.) sem jamais se perguntar pela essência desses conceitos, sem jamais interrogar a sua verdade. Perdia o símbolo e ao mesmo tempo perdia o raciocínio intelectual. Só eram permitidas diferentes combinações e recombinações de conceitos fechados, mas não examinar

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por dentro cada um desses conceitos. Quem não tem símbolos não pensa e não sente. Por isso o projeto político‑intelectual da pós‑modernidade e do marxismo cultural dedica‑se a desacreditar e proibir qualquer símbolo. Um dos efeitos dessa campanha está no próprio enfraquecimento semântico do adjetivo “simbólico”, que passou a significar algo pouco expressivo e sem substância (falamos, por exemplo, de uma “contribuição simbólica” para designar uma contribuição irrisória), quando na verdade a geração ou apresentação de um símbolo deveria constituir um ato da mais alta relevância civilizacional. O simbólico é tudo, menos “simbólico”4.

Se olharmos a cultura como algo orgânico, e não mecânico, numa perspectiva simbólica ou mítica em seu mais alto sentido – tal como pedia Spengler, tal como pede Trump – veremos no economicismo e no liberalismo sinais claros de decadência, de declínio da cultura, e não de progresso. O Ocidente que Trump quer reviver e defender não se baseia no capitalismo nem numa democracia liberal desnacionalizada, desencarnada, desvinculada de uma personalidade histórica, mas nos símbolos. A democracia liberal, tal qual praticada atualmente na Europa e nos EUA até o governo Obama, não se mostrava capaz de nutrir essa dimensão simbólica. O Ocidente de Trump, portanto, difere completamente daquilo que se chamava West na época da Guerra Fria: o West era o capitalismo democrático liberal, o Ocidente de Trump é o patrimônio simbólico mais profundo das nações que o compõem. Nesse quadro, Deus mesmo não deixa de ser um símbolo, o supersímbolo – ao mesmo tempo em que é real e super‑real.

Evidentemente esse Deus por quem os ocidentais anseiam ou deveriam ansiar, o Deus de Trump (quem imaginou que alguma vez leria estas palavras, “o Deus de Trump”?) não é o Deus‑consciência cósmica, ainda vagamente admitido em alguns rincões da cultura dominante. Nada disso. É o Deus que age na história, transcendente e imanente ao mesmo tempo (mine eyes have seen the glory of the coming of the Lord, diz o início do “Hino de Batalha da República”, aquele do famoso refrão Glory Hallelujah, que precisa ser escutado com atenção para começar‑se a entender a alma americana). Nossa cultura, hoje, ignora esse Deus. Nossa cultura não

4 A mesma degradação atingiu a palavra “mito”, mythos, que originalmente significava uma narrativa fundacional criadora de sentido para a vida e de comunicação com os planos mais altos da existência, e hoje significa simplesmente uma invencionice, uma mentira.

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 tem nenhum contato autêntico com toda a imensa riqueza e desafio da cultura e da religião ocidentais desde Homero e Virgílio, desde Heráclito e Parmênides (assumindo, aqui, que o mundo antigo prefigurava de muitas maneiras o cristianismo e, mais do que isso, “ansiava pelo Filho”, como sustenta o escritor russo Dimitri Merejkovsky). Como pode ser que nos tenhamos deixado empobrecer e cegar dessa maneira? O pensamento e a história ocidental, com a fé deles inextricável, formam um enorme palácio do espírito, que nos pertence, mas optamos por viver num galpão ao lado, cercados apenas por duas ou três ideias feitas, unindo o materialismo mais primário ao humanismo mais superficial.

Ao chamar por Deus, na praça de Varsóvia, Trump ataca o cerne da pos‑modernidade. Não se deve ler Trump pela chave das relações internacionais ou da ciência política, mas sim da luta titânica entre a fé e sua ausência, entre o mundo construído pela fé e o mundo que vai sendo destruído pelos “valores”. Podemos não querer estar do mesmo lado de Trump nessa luta, mas precisamos reconhecer que ele a postula, que ele é um líder nesse combate, que não é um “bilionário governando para bilionários” como algum detrator o chamou. Bilionário não diz we want God.

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Trump e sua proposta de reconexão com o patrimônio mítico do passado ocidental não seria possível, paradoxalmente, sem a internet. A internet, se por um lado constituiu o paroxismo da globalização e do desenraizamento do indivíduo, por outro pode tornar‑se o instrumento que produz o fim da globalização, pois permite a volta do indivíduo à esfera política e o retorno de ideias e maneiras de pensar que já não tinham nenhum lugar na mídia oficial controlada pelo programa politicamente correto, inclusive o sentimento nacional, o princípio nacional de organização espontânea da sociedade. O mundo do discurso vinha‑se transformando em um enorme dictionnaire des idées reçues como chamava Flaubert, em um Newspeak como imaginou Orwell. A internet veio para rasgar esse dicionário, recuperar a língua e reabrir o espaço simbólico não controlado pelo estado ou pelas forças políticas oficiais.

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Não seria absurdo sustentar que Trump defende o multipolarismo – só que a partir de uma multipolaridade civilizacional e não política, tendo como um de seus polos o Ocidente. Trump quer reviver o Ocidente, e não estender o seu domínio. Tampouco é necessariamente um adepto do excepcionalismo americano, nem muito menos um isolacionista, pois coloca os EUA como parte da civilização ocidental, um projeto comum ao qual convida os europeus a retornarem. A base do transatlanticismo para ele não deve ser o comércio nem a defesa, a Otan será apenas a expressão militar de uma aliança que só faz sentido se for uma comunhão espiritual e sentimental muito mais profunda. Podemos dizer que a política externa de Trump é uma política externa romântica, ao tentar recuperar os heróis e o sentido do destino. Ele pode até estar pronto, como está, a usar os instrumentos tradicionais da persuasão e dissuasão, mas o cerne de sua política não pode ser entendido pelas regras do jogo geoestratégico tradicional. O excepcionalismo americano se vê subsumido no excepcionalismo Ocidental, que não é um supremacismo, mas sim uma autoafirmação e não envolve a negação do outro. Antes, está implícito no seu discurso de Varsóvia e explícito no discurso diante da AGNU o princípio do respeito mútuo.

Trump não quer ocidentalizar as outras civilizações, quer apenas que deixem a civilização ocidental em paz para que ela possa recuperar‑se e reencontrar o seu vigor. A batalha contra o Islã, assumida no discurso de Varsóvia, é uma luta defensiva pela preservação do espaço espiritual do Ocidente, não um projeto imperialista. Não há nada de isolacionismo nem de renúncia à liderança americana na política externa de Trump. Em Varsóvia, deixa claro que pretende ter um papel transformador no mundo. O que confunde muitas pessoas é que Trump leva a política externa para outro plano, o de uma luta cultural, civilizacional, e já não mais o jogo da geopolítica. Se ficar preso ao plano da geopolítica, o Ocidente está fadado a perder, pois não vai ser pela geopolítica que recuperará a sua alma. Os EUA de Trump querem Evidentemente liderar o Ocidente nessa direção da recuperação de si mesmo (o si mesmo segundo Jung, esse Selbst cujo símbolo supremo é o Cristo). Não se os EUA estão se desengajando da OMC, ou da Convenção do Clima, pois o jogo já não está nesse tabuleiro.

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A questão do posicionamento da Rússia no novo tabuleiro proposto por Trump, o da luta geocultural, é mais complexo, de uma complexidade que provém da secular ambiguidade da alma russa, dividida entre ser ou não ser ocidental, entre deixar‑se ou não fazer parte da mesma cristandade. Alguns até enxergam uma rivalidade e disputa entre Estados Unidos e Rússia para saber qual dos dois resgatará a Europa de seu cativeiro pos‑moderno e ateu. Essa visão assume a Rússia de Putin como uma força fundamentalmente cristã, um retorno do mito histórico de “Moscou terceira Roma”, da Rússia como centro da cristandade após a queda da Roma latina e de Constantinopla. A aliança dos Estados Unidos e da Rússia como as duas grandes potências cristãs será talvez o sonho de Trump e de Putin. Esbarra, entretanto, em muitos obstáculos: a desconfiança russa sobre o futuro dos EUA, mesmo que no presente Trump lhe seja simpático; a atávica insegurança geoestratégica russa, que a leva a instintivamente sempre tentar ampliar seu perímetro de segurança terrestre; os interesses antirrussos do estamento de política externa de Washington; a visão de algumas correntes adeptas de Trump que veem na Rússia de hoje um estado neocomunista expansionista e em Putin um líder que nunca abandonou a mentalidade de agente da KGB. De todo modo, o relacionamento EUA‑Rússia sob Trump e Putin é uma equação que ainda não fecha.

Para tentar uma espécie de aproximação diferencial dessa equação (pois certamente ela não é linear), conviria estudar os livros e pronunciamentos do escritor russo Alexander Dugin, criador da escola eurasianista e que, após criticar severamente durante duas décadas o propósito norte‑americano e europeu de impor à Rússia um liberalismo desenraizado, enxerga grande potencial de convergência com os EUA de Trump, e mesmo de cooperação, diante de um inimigo comum, o globalismo – entendido como os padrões liberais antinacionais e antitradicionais na vida social e do mercado globalizado sem fronteiras na vida econômica.

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E o Brasil? Faz parte do Ocidente? No Itamaraty aprendemos ao longo das décadas a evitar, a todo custo, qualquer submissão do Brasil a um bloco, de modo a preservarmos a capacidade de desenvolver uma política externa autônoma. Queremos relacionar‑nos com todos os blocos, mas sem fazer exclusivamente parte de nenhum deles. Vemos então com grande desconfiança a ideia de integrarmos um Ocidente que necessariamente exclui outras civilizações e que nos deixaria presos a um determinado bloco. Mas esse não alinhamento absoluto não deveria impedir o Brasil de alinhar‑se consigo mesmo e com a própria essência de sua nacionalidade, se chegarmos à conclusão de que essa essência é ocidental.

O povo brasileiro parece ser autêntica e profundamente nacionalista e, desse modo, o Brasil não teria por que sentir‑se desconfortável diante de um projeto de recuperação da alma do Ocidente a partir do sentimento nacional. Tenhamos presente que, hoje, o Brasil pleiteia o ingresso na OCDE, ou seja, na instituição central que caracteriza o Ocidente econômico. Sentir‑se o Brasil também parte do Ocidente espiritual, por dize‑lo assim, não seria talvez absurdo.

Nesta hipótese, o Brasil – mesmo que o não queira – faz parte do Ocidente, e esse Ocidente está – mesmo que não o veja – em um conflito de gigantescas proporções por sua própria sobrevivência. Mas para posicionar‑se em tal cenário é preciso não enxergar a realidade apenas pelas lentes da política. De fato, ao lado da política, no sentido normal de processo decisório estatal e tudo o que o cerca, percebe‑se cada vez mais a existência e importância de uma metapolítica, ou seja, o conjunto de ideias, cultura, filosofia, história e símbolos que agem tanto no nível racional quanto no nível emotivo da consciência. Assim também, ao lado de uma política externa, o Brasil necessita de uma metapolítica externa, para que possamos situar‑nos e atuar naquele plano cultural‑espiritual em que, muito mais do que no plano do comércio ou da estratégia diplomático‑militar, estão‑se definindo os destinos do mundo. Destinos que precisaríamos estudar, não só do ponto de vista da geopolítica, mas também de uma “teopolítica”.

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Trump: We want God. Isso lembra a célebre afirmação de Heidegger no fim da vida: Nur noch ein Gott kann uns retten. Esse “nós” que precisa desesperadamente de Deus, esse “nós” que apenas um Deus pode salvar, não é senão o Ocidente.

A despeito da prosperidade europeia no pos‑guerra, da paz, da integração, Heidegger via o Ocidente dos anos 60 (quando deu a entrevista ao Der Spiegel na qual se encontra aquela frase) como uma civilização caindo aos pedaços. Heidegger, aliás, sempre foi um nacionalista e nos anos 30, achou que com o nazismo a nação estava renascendo, mas logo se desencantou. Entretanto, ao repudiar o nazismo, nunca abjurou do nacionalismo, e por isso tornou‑se um pária social, pois o poder dominante instalado no pos‑guerra não admitia essa dissociação. Heidegger fez sempre um enorme esforço em abrir a metafísica para a história e vice‑versa.

O absoluto é indissociável do relativo e do tempo: SeinundZeit. Para ele a salvação existe na história e o espírito só frutifica na cultura histórica de uma nação. Porém, desde 1945, na ideologia liberal dominante, qualquer nacionalismo (ocidental) é associado em última instância ao nazismo. Nesse mundo ocidental desnacionalizado, nenhuma agência humana, mas somente sobre‑humana, somente um Deus poderia vir em socorro. Trump parece bem mais otimista do que Heidegger, mas, em última instância, está em sua mensagem também o mesmo grito: agora só Deus. Nur noch ein Gott. Não será o desenvolvimento nem a tecnologia nem a justiça social nem a cooperação nem a sustentabilidade nem os direitos humanos que nos salvarão. Somente um Deus poderá salvar‑nos, dar‑nos sentido – se Ele o quiser, se nós O quisermos, se reencontrarmos a nossa Wille zum Gott por trás de uma Wille zur Macht que também abandonamos na beira da estrada. (Aliás, quem sabe se a “vontade de poder” de Nietzsche não foi a maneira que ele encontrou para dizer we want God sem dar o braço a torcer? Se, no fundo, aquela Wille zur Macht não é apenas uma face visível da inconfessável, secreta e sempre presente Wille zum Gott, sendo o poder uma das faces de Deus?). Se os ocidentais entenderem (entendermos?) que precisam de salvação, se pelo menos olharem com atenção o jogo, perceberão que seu time está perdendo e faltam poucos segundos.

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Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação – inclusive e talvez principalmente a nação americana. Heidegger jamais acreditou na América como portadora do facho do Ocidente, considerava os EUA um país tão materialista quanto a União Soviética e incapaz da autopercepção metafísica indispensável à geração de um “novo começo”, como ele dizia, essa refundação do Ocidente que repetiria em outros termos o primeiro começo gerado pelos antigos gregos. Talvez Heidegger mudasse de opinião após ouvir o discurso de Trump em Varsóvia, e observasse: Nur noch Trump kann das Abendland retten, somente Trump pode ainda salvar o Ocidente.

 

Sugestões Bibligráficas

ADRIÃO, V. Ml. Mistérios Iniciáticos do Rei do Mundo. São Paulo: Madras, 2014.

AESCHYLUS Persae. Oxford: Oxford University Press, 2009.

EVOLA, J. Metaphysics of War. London: Arktos, 2001.

GUÉNON, R. The Crisis of the Modern World. New York: Sophia Perennis, 2001.

HEIDEGGER, M. Ormai solo un dio ci può salvare. Intervista com lo “Spiegel”. Parma: Ugo Guanda, 2000.

HEIDEGGER, M. Nietzsche: Der europäischeNihilismus. (Gesamtausgabe, V. 48). Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1986.

JUNG, C.G. Aion – Researches into the Phenomenology of Self. New York: Bollingen Foundation, 1959.

MÉREJKOVSKY, D. AtlantideEurope – Le mystère de l’Occident. Lausanne: L’Âge d’Homme, 1995.

NIETZSCHE, F. The Will to Power. New York: Vintage, 1968.

ONFRAY, M. Décadence – Vie et Mort du judeochristianisme. Paris: Flammarion, 2017.__