Cap. 4 – As advertências do Mito da Caverna

Uso do Mito da Caverna de Platão para tipificar a mentalidade predominante no mundo ocidental e identificar as condições gerais de contorno que terão de ser consideradas em virtual projeto de intervenção social.

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PRIMEIRA PARTE

4.1 – Contextualização

 O Mito da Caverna representa um momento de esplendor da inteligência humana e explica em boa medida por que Platão ocupa posição proeminente no panteão da Filosofia e por que a lembrança dele se apresenta sempre que a sério falamos de Filosofia. Na alegoria da caverna, Platão não apenas indica sua concepção filosófica básica, como também mapeia e circunscreve o núcleo central de problemas que têm catalisado e tipificado a Filosofia como desafio intelectual superior da espécie. Daí a recorrência constante a Platão desde o Iluminismo, menos em razão de uma virtual genialidade literária, mais pelo fato de explicitar o âmago das questões filosóficas, as quais até hoje angustiam o homem e ainda esperam solução. O que Platão nos lega, como veremos, é a indicação clara da imperiosa necessidade de conquistar competência mental e autonomia perceptiva, caso almejemos levar o projeto humano à maturidade.

Para compreender o Mito da Caverna temos de considerar que essa alegoria consta do capítulo VII da sua obra principal – A República – dedicada a especificar, em forma de diálogo, como deveria ser a cidade ideal, capaz de propiciar aos homens existência plena e vida segura. A linha geral da obra contempla, portanto, a organização do Estado e da Sociedade, embora se tratasse de cidades-estados, e não do Estado como hoje o conhecemos. Platão entendia que esse Estado ideal devesse ser gerido por filósofos, ou que seus gestores tivessem sólida formação filosófica, usando, em boa medida, a alegoria da caverna para justificar isso.

Além do mais, é preciso considerar que Platão, à semelhança de boa parte dos gregos clássicos, adota perspectiva filosófica específica, que hoje geralmente designamos de Metafísica. Isso leva Platão a entender que tudo o que existe possui uma essência que é determinante e condicionante daquela forma específica de ser. Segundo ele, para além daquilo que se oferece à nossa visão, há uma essência em cada coisa e é ela que determina o que a coisa é. Para caracterizar bem essa indispensável distinção entre essência e aparência, Platão usa a seguinte expressão: “as coisas que são vistas não são pensadas, enquanto as essências são pensadas, mas não podem ser vistas”. Muitas correntes de pensamento de todos os tempos, em particular as religiões, adotam a mesma perspectiva quando afirmam a precedência do espírito sobre a matéria. A Metafísica busca encontrar nos alicerces da matéria e do mundo visível as leis invariantes responsáveis pelo advento e pela compleição do Universo. Um projeto semelhante ao próprio projeto das ciências modernas, em busca das leis que regem a compleição e o funcionamento da natureza.

4.2 – Descrição da caverna alegórica

Na alegoria da caverna, os homens estão acorrentados dentro dela, de modo que somente podem olhar para a parede situada no fundo. Próximo à entrada, há uma fogueira, e entre ela e os homens existe uma passarela ladeada por muro. Nessa passarela, pessoas carregam sobre a cabeça esculturas de todas as coisas do mundo, em silêncio ou conversando. Como o muro cobre as pessoas que passam, a luz da fogueira projeta apenas a sombra das esculturas na parede do fundo da caverna, formando as únicas imagens vistas pelas pessoas acorrentadas. Dado que as pessoas nascem, crescem e morrem nessa situação, essas sombras são as únicas coisas que elas enxergam, por isso acreditam que se trata da única realidade existente. Em consequência, a sua vida se limita a identificar e a comentar as diferentes imagens que se oferecem.

Posto isso, Platão passa a explorar o que aconteceria se uma das pessoas, de índole mais inquieta, olhando para trás, pudesse libertar-se das correntes, percebesse o clarão vermelho da fogueira e, apesar das dificuldades, conseguisse arrastar-se até a parte superior. Veria primeiro um grupo de pessoas não totalmente imobilizadas, responsáveis pela manutenção da fogueira, pela programação do trabalho dos carregadores, e entenderia que as imagens projetadas na parede do fundo não são a realidade, mas a projeção das peças carregadas. De repente se daria conta de como funcionavam as coisas na caverna, mas não de que se tratava de uma caverna. Então, diz Platão, após acostumar-se com a claridade da fogueira, ele percebe um clarão ainda mais forte, de uma luz amarelada. Apesar do desconforto e da dor nos olhos que aquela luz provoca, decide para lá encaminhar-se e, ao ultrapassar o umbral, vê-se diante da luminosidade intensa e ofuscante do Sol, sendo forçado a fechar os olhos. Mas logo descobre que pode abri-los lentamente e aos poucos vai descortinando: primeiro, vultos envoltos em névoa; depois, paulatinamente, o contorno e a forma de todas as coisas; finalmente, as cores – a profusão e a beleza das cores. Descobre toda a magnitude da natureza planetária e à noite vê as estrelas no firmamento. Finalmente, com os olhos ajustados à luz matinal, consegue fitar o próprio Sol e percebe que é ele, o Sol, o responsável pela vida e pela natureza exuberante que o cerca.

Ele se dá conta de que vivera numa caverna escura, sem cor, e, ao lembrar-se dos amigos ainda presos lá dentro, volta para libertá-los. Ao entrar na caverna enfrenta a transição: precisa acostumar novamente seus olhos à escuridão, mas só o consegue em parte; nunca mais terá a mesma eficiência de antes no escuro. Conta aos amigos o que descobriu e convida-os a sair, garantindo conhecer o caminho. Qual a reação deles?- pergunta Platão. Criticam-no porque perdeu visão e habilidades, porque quer acabar com a felicidade que desfrutam e, ainda por cima, por lhes fazer proposta de passar por sofrimentos. Não demora a ser tachado de louco ou a ser morto para que deixe de importunar.

Esse, em resumo, o relato que Platão faz do mito da caverna.

4.3 – Interpretação

Para entender por que Platão afirma que os homens estão acorrentados, é preciso esclarecer que para ele o conhecimento admite graus distintos de efetividade. Ele identifica quatro níveis diferentes do conhecer, que vão da mais completa ignorância até a plena sabedoria. No nível inferior situa os homens que não sabem nada, não querem saber e têm raiva de quem sabe. É o plano dos maria vai com as outras. Não duvidam nem questionam nada, apenas imitam e repetem o que ouvem. No segundo nível estão as pessoas que sabem um pouquinho, mas pensam que sabem muito. São pessoas que externam opinião sobre tudo. Se alguém está com dor de cabeça, receitam logo analgésico sem qualquer preocupação com as causas da dor. São viciadas na expressão: eu acho… São capazes de escalar o time muito melhor do que o técnico. Possuem idéias infalíveis para resolver os problemas econômicos ou para conduzir melhor as relações exteriores do país, sem nunca ter estudado medicina, cursado economia ou estudado relações internacionais. Platão chama esses dois níveis inferiores de plano da opinião, que reúne a maioria da população. Nesse plano não predomina a razão, predomina a opinião!

O terceiro plano do conhecimento é ocupado pelos buscadores do conhecimento. Estes, antes de falar sobre algo, vão atrás e se apropriam do conhecimento da tradição sobre o assunto. Depois de dominar tal conhecimento, passam a tratar das questões, como engenheiros, médicos, biólogos, etc.

No quarto nível do conhecimento, Platão situa aqueles buscadores do saber que, depois de recolher todo o conhecimento da tradição, com auxílio de longa prática e aplicação das teorias em casos concretos, adquirem a capacidade de ler diretamente na natureza, quando ampliam o próprio acervo de conhecimentos da humanidade. Assim caracteriza esse quarto nível como o nível dos que, sem intermediários, conseguem ler diretamente na natureza. Isso somente é possível para quem tenha saído da caverna, porque é ali que a natureza se situa. (*)

Embora de forma indireta, Platão ainda fala no que seria um quinto nível superior do conhecimento, correspondente àqueles que verdadeiramente alcançam a condição de filósofos. O filósofo para Platão é aquele que aprecia o espetáculo da verdade, é aquele que capta a essência e por isso conquista um conhecimento verdadeiro. Para tanto, a educação do filósofo deve ser programada e começar na infância com o trato do corpo e da sensibilidade, com a percepção da beleza e com a superação dos instintos a fim de estabelecer a precedência da razão, do bem e da justiça. Depois deve se estender até a maturidade com o domínio do conhecimento da tradição das ciências gerais: da Retórica, da Matemática, da Geometria, da Música, das Artes Marciais e da Astronomia. Finalmente, para ser um verdadeiro filósofo, precisa ainda, tornar-se um dialético e esse é um detalhe fundamental, particularmente importante.

A palavra dialética não possui para Platão o mesmo significado que modernamente damos a ela, de contraposição de tese e antítese sobre a linha do tempo, descortinando o processo histórico. Dialético para Platão é aquele que deixou de ser sectário porque logrou visualizar a totalidade. O termo sectário, por sua vez, não tem a conotação fundamentalista moderna, mas indica qualquer privilégio indevido da parte sobre o todo. Um médico pode ter reunido todo o conhecimento médico da tradição. Mesmo assim esse conhecimento é parcial, constitui recorte bem limitado, que não representa o todo universal. Caso esse médico pretenda ler a natureza diretamente, apenas baseado nesse recorte, produzirá  conhecimento distorcido. Nos termos de Platão, sectário. Para ler com competência a natureza, precisa estar munido de visão totalizante da natureza e do mundo; essa conquista de uma visão que contemple a totalidade Platão designa dialética. Duas citações extraídas do nosso texto básico de referência (Perine, 2002) testemunham isso.

1. “Ninguém pode ser chamado de dialético se não consegue captar a essência das coisas.” (pág. 91)

2. “…quem sabe ver o todo é dialético, quem não sabe, não é.” (pág. 92)

Ou seja, é sectário quem toma a parte como referência nos seus julgamentos; é dialético quem toma o todo como referência. Amparado na tese de que somente a visão do todo possibilita a verdadeira justiça, Platão entende que somente filósofos podem, legitimamente, estar à frente do mais perfeito modelo de governo possível. Modelo que chama de aristocracia. Nele, a missão essencial do governante é retirar a população  da caverna. Como? Pela educação verdadeira, afirma ele. Pela educação que conduz ao uso consciente, autônomo e competente da razão.

Ora, isso nos coloca diante de um impasse. Antes foi dito que quando o sujeito que conseguiu sair da caverna volta e conta aos amigos o que viu, é desacreditado, chamado de chato, de estraga-prazeres, até mesmo de louco. Como educar gente assim? Principalmente porque não se trata de colocar simplesmente conhecimentos dentro da cabeça, não se trata de educação distorcida, que informa sem educar, mas de fazer o aluno elaborar a própria independência intelectual. Algo que só pode ocorrer de dentro para fora, nunca de fora para dentro. A maioria das pessoas de dentro da caverna sequer prioriza o conhecimento. Como fazê-las pensar?

É em razão desse impasse estrutural que o outro texto de referência que adotamos – a palestra do professor Luis Carlos Marques da Associação Cultural Nova Acrópole de Brasília – cuida de destacar a crítica de Platão à democracia.

Platão diz que existem cinco formas possíveis de governo: a aristocracia, quando a cidade é governada pelos melhores e mais bem preparados dos seus cidadãos; a timocracia, em que predomina o gosto por honrarias; a oligarquia, em que mandam os mais ricos; a democracia, quando o governo é dirigido pela maioria da população; e a tirania, que costuma ser o governo de um só.

Segundo Platão, pior que a democracia somente a tirania, o que ele justifica com a alegoria da caverna. Nesse caso o governo está representado pelos que cuidam da fogueira e planejam a geração das imagens refletidas no fundo da caverna: os formadores de opinião. Qual é o objetivo desses governantes? Naturalmente serem benquistos pela população que vota e decide quem deve ocupar o poder. O objetivo principal de tal governante é manter-se no poder. Como consegue isso? Gerando imagens que agradem à população. Pois, quando as imagens lhe desagradam, ela costuma, pelo voto, democraticamente, trocar os mandatários.

Naturalmente tais governantes não estão interessados em educar a população, nem mesmo possuem habilidades para tanto. Como a maioria da população não considera o conhecimento importante, mas apenas cultiva seus instintos, o que lhe agrada mesmo é o jogo das paixões, as novelas, o futebol, as páginas policiais. Por isso, tais imagens são geradas em profusão, e a situação geral da caverna nunca se altera. Pode, entretanto, ficar pior, quando a corrupção e a necessidade de preservar força política ensejam a criação incessante de cargos públicos para atender aos novos e aos velhos aliados. Na sequência do crescimento da máquina pública, crescem também os impostos, e a situação geral da população se deteriora. Finalmente, como canalha não consegue confiar em canalha, a população se vê cada vez mais explorada, começa a desejar a vinda de um salvador da pátria, que finalmente aparece e se estabelece com truculência. Oficialmente, para eliminar os corruptos, mas, de fato, para eliminar os adversários. Procede a uma limpa no governo, eliminando todos os possíveis concorrentes e os que não se submetem à sua vontade. Assim, concentra poder inusitado: eis claramente formulada a figura plena do tirano.

Para a população ele posa de bonzinho, porém nos bastidores exerce truculência com mão de ferro, pois pretende ficar no poder o resto da vida. Um dia poderá ser assassinado, e provavelmente será substituído por outro pior. Essa, segundo Platão, é a ordem e o destino da democracia. Essa também é a razão pela qual Platão entende que o governo precise ser exercido por filósofos, por dialéticos, que conheçam a natureza em sua totalidade, que em razão disso tenham superado seus instintos e que sejam conhecedores do bem, da beleza e da justiça, porque isso os fará dedicar-se, não a interesses pessoais mesquinhos ou a agrados à população – que despreza o conhecimento e desconhece a razão -, mas ao resgate dos homens do interior da caverna, ainda que isso tenha que ser feito contra a “opinião” da maioria.

4.4 – Existe saída ao impasse platônico?

Este estudo objetiva justamente responder à questão. Quando examinamos os habitantes da caverna, constatamos que a maioria da população não usava a razão. Tinha, entretanto, opinião sobre tudo. Afinal de contas, a cultura predominante na caverna entendia que a realidade eram as sombras projetadas no fundo. Ora, a mente humana, por mais ingênua e despreparada que seja, por compleição estrutural, exige, no mínimo, coerência entre o que a pessoa sabe e suas interpretações. Mesmo se tratando de mera opinião, sem fundamento, resulta de experiência de vida, que representa a bagagem a partir da qual ela opina. Essa experiência, como a alegoria esclarece, é limitada, estreita; nos termos de Platão, sectária: as sombras projetadas são aceitas como se fossem a realidade. O sujeito passou a vida toda a ver aquelas sombras e somente a elas, portanto nada mais natural do que pensar que aquelas sombras sejam a única realidade existente. Trazendo essa alegoria para a nossa situação atual, temos de convir que também somos sectários, uma vez que também somos desprovidos de compreensão da totalidade universal.

Olhamos para o mundo, vemos sua materialidade e acreditamos que ele se reduza à materialidade observada. Por que isso nos parece coerente? Porque a bagagem que usamos para julgar e entender o mundo nos diz que essa compreensão é adequada. Conforme já discutimos nos capítulos anteriores, o nosso modo de pensar está sempre confinado e condicionado por paradigma e por seus dispositivos, de sorte que a única maneira de fazer uma verdadeira revolução no modo de pensar é mudar de referencial.

 O paradigma que sustenta o mundo moderno ocidental, como também já vimos, pode ser chamado de cartesiano, porque é baseado nas formulações essenciais de René Descartes, as quais constituíram elementos cruciais de superação da mentalidade medieval e de estabelecimento da mentalidade científica, tipificadora da modernidade ocidental. Naturalmente a superação da mentalidade medieval não se deveu exclusivamente a Descartes, e estender o mérito a Copérnico, Galileu, Newton, Bacon e Espinosa, os mais citados, não nos livra de cometer injustiças e esquecimentos. Trata-se, entretanto, de contemplar as contribuições, destacando aquelas que mais profundamente moldaram o protótipo que preside a civilização ocidental como alicerce condicionante de toda a percepção cognitiva do homem de nosso tempo. A palavra paradigma, como aqui a empregamos, indica pressupostos culturais que geralmente não são citados nos discursos, embora estejam sempre presentes, condicionando e determinando-os de forma velada. Expressões como inconsciente coletivo, espírito do tempo ou espírito de uma época, constituem tentativas de indicar aproximadamente o que designamos por paradigma civilizatório.

Nesse sentido, de ser formadora do espírito de uma época, a obra de Descartes se destaca. Ele descobriu principalmente que o espaço comporta três dimensões: altura, largura e profundidade. Como essas três dimensões viabilizam o espaço, com amplitude para comportá-lo – e é essa realidade do espaço que se oferece a todos os nossos sentidos orgânicos -, acreditamos que o mundo todo esteja contido no espaço. Só acreditamos no que manifestamente se mostre presente no espaço, isto é, aquilo que também possua três dimensões: a matéria.

Tanto é verdade que a ciência não se pergunta mais sobre o que os fenômenos são, como no tempo de Platão, mas apenas se interessa pela constituição e pelo funcionamento da matéria, na única intenção de descobrir que utilidade ela pode ter para atender aos nossos interesses possessivos e de bem-estar. Coisificamos todos os fenômenos e olvidamos o ser que os constitui; atemo-nos a sua utilidade para satisfazer os nossos desejos. Daí o consumismo, a superficialidade, o egoísmo, a competição, a pouca ética, enfim, o modelo ocidental de civilização. Em resumo podemos afirmar que nós, ocidentais, vivemos dentro de uma caverna: a caverna do mundo ocidental.

 Podemos sair disso? Podemos sair da caverna? O advento do conceito de paradigma civilizatório indica que talvez seja possível, porque, ainda que a maioria da população apenas tenha opinião e não conhecimento embasado, sendo maria-vai-com-as-outras, basta ensinar-lhe a pensar segundo outro modelo. Um paradigma que mostre não o interior da caverna ocidental, mas a natureza existente fora de todas as cavernas. Um paradigma que exponha claramente a presença da totalidade, da interdependência universal, que nos vincula, e a prevalência do ser, viabilizando naturalmente uma justiça de validade universal/cósmica. Com isso, em lugar de tentar retirar da caverna as pessoas, que lá estão desde criancinhas, a estratégia mais promissora se afigura em as novas gerações nascerem já do lado de fora, à plena luz do Sol.

 Usamos o mito da caverna para contextualizar o problema prático que se oferece em face da índole predominante de populações que tomam as decisões em ambientes democráticos e para sustentar a conclusão de que é a educação das novas gerações, a partir de outro paradigma, que se afigura como opção mais promissora e eficaz de superação de um modelo de civilização estruturalmente destinado à catástrofe. Não significa entender que a instrução e o esclarecimento dos adultos da caverna sejam desnecessários ou inúteis. Apesar da previsível pouca efetividade no resgate dos já deformados para o novo paradigma, a disseminação das idéias também para os adultos revela-se indispensável tanto para tornar o processo consciente, e em alguma medida consentido, como para a amenização do conflito de gerações, que inexoravelmente advirá com a transferência facilitada do poder à nova cultura, quando chegar a hora.

Em termos de implementação, considerando a hipótese de que um novo modelo suficientemente convincente esteja disponível, parece, em principio, indispensável o papel do Estado, pelo fato de o paradigma da totalidade requerer ação de abrangência planetária. Mas os grandes agentes seriam os professores, desafiados a dominar o novo paradigma, apesar da sua formação cartesiana. Então, pensamos indicar os dois pontos críticos do processo. De um lado o Estado e os governantes admitem a urgência e serem capazes de deflagrar um movimento planetário de propósito cultural, sem se aproveitar da oportunidade para tentar engendrar novas formas de concentração de poder. De outro, os educadores, serem capazes de mudar suas estruturas perceptivas e conquistar o domínio da nova ferramenta, de sorte a se tornarem aptos a realizar sua disseminação. Ambos os desafios, radicalmente dependentes do poder de convencimento do novo paradigma e das esperanças que for capaz de despertar.

Trataremos de especificar esse paradigma no próximo capítulo, mas desde já o espírito nos impõe como essencial a pergunta sobre como saber se ele resolve o problema. Se o processo interpretativo exige sempre referencial, a troca de referencial não nos colocaria dentro de outra caverna? Como saber se esse novo paradigma nos situaria fora de todas as cavernas, isto é, nos colocaria realmente em presença da natureza.

A resposta é simples: avaliando se ele efetivamente atende aos requisitos estruturais pretendidos. Ainda, segundo o que Platão nos ensina na República, uma das características do verdadeiro filósofo é ser dialético, não sectário, isto é, ser dotado de visão de totalidade da natureza. Como nenhum homem jamais conseguirá conhecer extensivamente toda a natureza, reunir todo o conhecimento da tradição sobre a natureza, a saída consiste em conhecer as leis básicas comuns a tudo o que existe. Ou seja, conhecer a essência ontológica do existente, o Logos ou Verbo, segundo o qual tudo se dá: as leis constitutivas do Universo, bem nos moldes do que já pensava Pitágoras, que foi referência tanto de Sócrates como de Platão.

Pitágoras já conhecia o modelo capaz de resolver a questão, assim como os sacerdotes do antigo Egito. Aquelas eram, respectivamente, versões matemática e geométrica do paradigma, que hoje, tal como moedas antigas, já não possuem mais valor de curso. Agora, como se verá, a nova versão do Logos acrescenta a lógica à geometria e à matemática, gerando um modelo adaptado às exigências e condições da cultura científica moderna, afinal trata-se de convencer mentes científicas. Portanto, sem mais delongas, tratemos de especificar esse modelo lógico e de verificar as suas potencialidades.

AS ADVERTÊNCIAS DO MITO DA CAVERNA

SEGUNDA PARTE

 ADVERTÊNCIA

Três anos depois de publicada a primeira parte das advertências do Mito da Caverna, em razão do interesse despertado pelo texto – acessado por internautas de diversas partes do mundo -, estamos oferecendo aos leitores esta segunda parte, que pretende focalizar o ponto mais elevado da doutrina platônica, cujo teor estende suas considerações até a primeira instância da existência. Cumpre, porém, advertir que esta segunda parte, para aqueles que lograrem entendê-la, significará tomar a pílula vermelha, que, no filme Matrix, Morpheus oferece a Neo para sair do mundo da ilusão e entrar no mundo real. Também aqui, trata-se de um caminho sem volta. Recomenda-se seguir adiante apenas a quem estiver disposto a pagar o preço – em responsabilidade -, implícito no conhecimento da verdade.

Ver As advertências do Mito da Caverna – Parte II

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