O ATOLEIRO BRASILEIRO
A natureza concedeu aos humanos a faculdade de pensar, possivelmente para compensar a fragilidade orgânica da espécie, na luta pela sobrevivência. O hominídeo ancestral deve ter sido, por séculos, a caça predileta dos carnívoros, fato que nos legou terríveis instintos. Do despertar da consciência até a Pós-Modernidade, hoje vivenciada, o discernimento humano dominou lógicas e habilitou-se a interpretações crescentemente complexas e correspondentes à realidade. Esse processo evolutivo avançou naturalmente, até que a dialética estabeleceu a sua hegemonia e fundou a Pós-Modernidade. A intelectualidade dialética concluiu que a evolução universal estava sendo malconduzida e, por isso, impunha-se fazer correções, a começar por assentar a dialética como limite evolutivo da razão, e que, portanto, cabia-lhe o direito de indicar à humanidade o futuro conveniente. Havia, porém, um problema: a evolução factual tinha consagrado alguns princípios – tais como: um princípio criador, laços de sangue, respeito ao pai, à mãe e à família, respeito aos ancestrais, identidade cultural e outros valores consagrados pela experiência, que constituíam a base conceitual sobre a qual os humanos elaboravam as suas interpretações. A própria dialética indicou a solução: sendo impossível revogar a experiência, era preciso destruir os conceitos que suportavam tais valores (Gramsci). Com a distorção dos conceitos e a confusão mental resultante, esperava-se que, paulatinamente, novos valores pudessem ser implantados, de sorte a viabilizar um sonhado mundo de plena igualdade, no qual, eliminadas as diferenças, elas deixassem de perturbar o convívio social. Na segunda metade do século XX, esse programa foi implementado com entusiasmo no Brasil, explorando diferenças que distinguem minorias e o seu natural desejo de integrar a normalidade dominante. Incautos e ignaros, muitos deixaram seduzir-se, e, atualmente, a polarização ideológica e a desorientação pandêmica materializam o atoleiro epistêmico que inviabiliza o diálogo e o entendimento entre os membros de uma espécie condenada a viver em sociedade, em que as melhores ferramentas de convívio resultam ser justamente a razão e o discernimento. Em mundo delimitado pela dialética, esta estratégia justifica-se: quando os argumentos se tornam inúteis, a solução que resta é a força, apesar de o custo óbvio ser a liberdade. Naturalmente, a intelectualidade dialética calcula que o poder estará aos cuidados da sua sabedoria. Uma aposta temerária contra natureza que, sem o concurso de intelectuais, foi capaz de converter ameba em ser munido de consciência. Apesar disso, irracionalmente, continua-se a distorcer significados e a corromper palavras, em nome de modernidade, evolução, inclusão e civilidade. Cultivam-se instintos e barbárie, virtualmente para justificar o uso futuro da força, ao colocar tudo nos eixos: em resumo, esta é a bufa ópera pós-moderna. Há, porém, quem pense que civilização signifique superar instintos e cultivar racionalidade. Há quem pense que, para uma espécie dotada de consciência, a evolução verdadeira consiste em evolução do discernimento e que isso implica domínio das lógicas e dos diferentes modos de pensar facultados à espécie. Há quem pense que o desafio superior da espécie seja o domínio pleno e metódico da razão. Para esses, a solução já está prescrita desde Platão: é preciso apreender a pensar o todo, distinguindo-o das partes que o integram. Parece um raciocínio trivial, mas não é. A tragédia humana de todos os tempos pode ser resumida à imposição ao todo de conveniências privativas das partes. Uma imposição que contraria elementares leis da natureza que organizam a existência em camadas sucessivas de crescente complexidade, tal como testemunha a tabela periódica de elementos. O exemplo da molécula de água elimina dúvidas remanescentes: a molécula de água é composta de átomos de hidrogênio e de oxigênio e configura uma totalidade e um mundo completamente distinto do mundo dos átomos. O mundo da água viabiliza oceanos, produz nuvens e chuvas, potencializa rios e florestas, é o solvente da vida e conforma o nosso planeta. O hidrogênio viabiliza realidade distinta: na forma de plasma, produz as fornalhas cósmicas chamadas estrelas. Imagine-se, agora, que o hidrogênio, uma das partes, resolva impor a sua verdade de plasma ao mundo da água: destruiria o mundo e transformaria a Terra em orbe estéril como Marte. O que a natureza nos ensina, aqui, é que o que vale para as partes não se aplica ao todo e, ao contrário, tende a destruí-lo. Uma lição que não aprendemos na escola, em razão de a nossa ciência ser analítica e imaginar que o conhecimento se obtém subestimando o todo e centrando atenção nas partes, quando nem sequer existe, na natureza, algo que corresponda ao conceito analítico de parte. Tudo o que existe no mundo existe na forma de totalidade complexa feita de partes.
Quando se desconsidera esse princípio organizativo fundamental e se constrói totalidades destinadas a viabilizar e a ordenar o convívio social – instituições e governos –, permitindo que a sua gestão se realize segundo interesses privados de grupos ou de pessoas, gera-se solução esquizofrênica, em flagrante contradição com os propósitos que justificam a existência delas. Ao instituir Estado, objetiva-se a governança eficiente de interesses que são comuns a todo o grupo que suporta os custos. Quando o gestor do Estado, valendo-se da posição, usa recursos públicos em benefício seu ou de algum grupo específico, trai a Nação e torna-se predador do Estado e destruidor da organização social. O cúmulo acontece quando a justiça instituída impõe ao todo interesses privativos de partes, em flagrante contradição com as razões existenciais do Estado. Nessas condições, não adianta reclamar do fracasso de governos, o projeto do Estado precisa ser completamente refeito. A não ser que se assuma que Estado e Governo existam para concentrar renda e viabilizar que predadores sociais se locupletem com os recursos assim acumulados. Mas, se esse for o caso, sejamos minimamente honestos e paremos de designar essa coisa de democracia.