METAFÍSICA COM STATUS CIENTÍFICO

Rubi Rodrigues[1]

RESUMO-METÁFORA: À beira do caldeirão, o bruxo, compenetrado, vai mexendo pausadamente o caldo. Recorda o primeiro ingrediente: o ilimitado e o limitante de Pitágoras. Faz muito tempo – pensou. Lembra que, depois, misturou o ser de Parmênides e a inteligência organizativa de Anaxágoras… E foi mexendo. Platão tinha uma horta grande e forneceu-lhe o um e o todo e, depois, ainda, a primeira e a segunda navegação. E viu que a porção no caldeirão tomava consistência… E foi mexendo. Aristóteles trouxe-lhe a filosofia primeira e uma lógica que prometia e que fez o bruxo procurar novamente Platão para buscar a sua dialética. Colocou tudo junto no caldeirão… E foi mexendo. Euclides não pôde vir pessoalmente, mas lhe mandou a geometria por um emissário. Certo dia, apareceu Descartes, trazendo dois ingredientes: o método e a medida tridimensional do espaço. Depois, chegou Einstein, dizendo que Deus não jogava dados e lhe ofereceu as leis do tempo e do espaço e a segunda lei da termodinâmica que um amigo havia descoberto. O bruxo acrescentou tudo porque lhe parecia pertinente… E foi mexendo. Recentemente, apareceu Sampaio, trazendo cinco lógicas distintas que, ao serem acrescentadas, tornaram o preparado luminescente. Depois de algumas mexidas a mais, o bruxo percebeu que a porção, finalmente, estava pronta. Parou de mexer, retirou a pá e viu a assinatura do artesão na madeira: estava escrito Enoc. Lembrou-se de Hermes Trismegisto, que havia fundido o caldeirão, mas não perdeu tempo e foi apanhar a caneca para se servir. O líquido cintilava quando ele, sem titubear, entornou a caneca. A porção desceu suavemente como água fresca, na garganta seca por cinco mil anos de espera. De pronto, nada aconteceu, mas, aos poucos, ele percebeu sua testa iluminar-se, cada vez mais, até que, de repente, brilhou feito estrela nova, e ele, finalmente, VIU… Estava, assim, imóvel ao lado do caldeirão, com o olhar fixo e extasiado no horizonte, a caneca pendurada no dedo, quando você, leitor, chegou à porta da caverna. Ele virou a cabeça, olhou-o nos olhos e, com um sorriso matreiro, quase imperceptível nos lábios, perguntou: – Quer uma porção?

Termos para indexação: Filosofia. Metafísica. Ciência metafísica. Filosofia primeira. Filosofia olímpica. Ontologia. Segunda navegação.

1 INTRODUÇÃO

Constitui propósito deste trabalho apresentar uma concepção de filosofia primeira que, modelando os axiomas da existência, instrumentalize o homem com um paradigma científico realmente universal e potencialize uma cosmovisão capaz de situá-lo, harmônica e racionalmente, no contexto do Universo.

A superação da crença de que o Universo e a matéria sejam eternos, propiciada pela Física e pela Astrofísica moderna, faculta e recomenda retomar a questão da origem do Universo e revigorar o questionamento sobre os princípios de todas as coisas. Esse questionamento, na Grécia Clássica, deu origem ao que chamamos de Filosofia. Essa necessidade ressurge agora, curiosamente, em decorrência dos avanços e das conquistas de uma ciência que denunciou a Metafísica e se desenvolveu amparada em perspectiva relativamente oposta, baseada em um conceito de imanência, que reduz o mundo à materialidade e toda origem à simples atualização de potencialidades presentes na matéria. Essa solução que funcionou muito bem na Física de Newton enfrenta constrangimentos crescentes na Física Quântica, âmbito no qual resulta cada vez mais impotente para fazer frente aos novos desafios que vão surgindo. Em particular, a descoberta de que o vácuo cósmico constitui fonte inesgotável de energia, tanto quanto a necessária presença de um universo não local, ainda incompreensível, para fechar as contas, abre, virtualmente, no espírito de muitos cientistas, espaço para a desconfiança de que talvez seja, enfim, necessária uma contribuição da Metafísica para seguir adiante.

Essa menção aos problemas da Física não implica subordinação da Filosofia aos interesses das ciências. A solução que se apresenta neste artigo foi desenvolvida a partir de meditação legitimamente filosófica, em busca da verdade e do discernimento. Apesar disso, é indispensável ter sintonia com a realidade circundante e, reconhecendo que o mundo subjetivo atual encontra-se capturado e fascinado pelo modo científico de pensar, reconhecer também que a situação incômoda da ciência representa oportunidade histórica perfeita para o encaminhamento de um resgate da Metafísica, caso esse resgate ofereça solução consistente para os problemas enfrentados pela ciência. Além disso, cumpre também reconhecer que é a ciência, em particular, a Física, que desfruta, atualmente, de credibilidade pública suficiente para colocar e requerer uma mudança de perspectiva, com esperança de que isso tenha um mínimo de consequência. Daí, embora a meditação filosófica possa ter feito descobertas importantes e encontrado explicações  consistentes, esse resultado somente adquire relevância caso atenda aos requisitos de rigor que presidem o labor científico e ofereça boas respostas aos problemas que acometem a ciência. Em outras palavras, caso seja possível uma Metafísica que atenda a requisitos científicos mínimos. Afinal, todas as esperanças envolvidas baseiam-se na expectativa de que seja possível perfeita sintonia e compatibilidade entre ciência e Filosofia. Assim, podemos também expressar o propósito deste artigo em termos de apresentar uma concepção de ciência filosófica, capaz de suprir as ciências regionais com a base referencial adequada que demandam não apenas para orientar o seu labor científico particular, mas também para permitir que o conhecimento produzido no âmbito de sua competência inscreva-se, harmonicamente, no edifício do conhecimento humano. Em termos filosóficos, isso significa retomar o projeto de uma filosofia primeira com pretensão fundacional.

2 DESENVOLVIMENTO

Entende-se necessário cumprir, neste item, cinco etapas para atingir os propósitos declarados. Primeiramente, traçar um breve panorama histórico da Metafísica que seja suficiente para mostrar que a crítica que Kant lhe oferece afigura-se pertinente, tanto no principal ponto do seu diagnóstico – de que essa disciplina não conquistou ainda compleição científica – quanto na prescrição de que a pretensão de uma Metafísica futura dotada de consistência científica exige respostas prévias a duas questões: se é possível tal ciência e como ou de que forma torna-se possível. Na segunda etapa, esclarecer o posicionamento mental e conceitual implícito na perspectiva metafísica, de sorte que o leitor possa assumir esse ponto de vista e vislumbrar, pessoalmente, o tipo de solução demandada. No terceiro momento, proceder a uma reconceituação das ciências envolvidas – Filosofia, Metafísica, Teologia, Ontologia e Cosmologia –, de modo a organizar, estruturalmente, esse âmbito do conhecimento, indicando o que compete a cada uma delas, indicando como essas ciências se articulam e se complementam e, ainda, esclarecendo em que medida o labor filosófico se distingue e pode atender aos requisitos da ciência ou em que medida os requisitos da ciência se aplicam ao labor filosófico. Na quarta parte, anunciar a solução exigida e especificar os requisitos de cientificidade que ela precisa atender. Por último, apresentar a tese do logos normativo como solução disponível, indicando as condições de verificação de sua validade e de sua aplicação como paradigma comum para a Filosofia e para a ciência e indicando onde o leitor pode encontrar a fundamentação completa do modelo. Com esse percurso, espera-se atingir o propósito estabelecido para o artigo e possibilitar, na conclusão, descortinar, em linhas gerais, as possibilidades que a solução potencializa.

2.1 A confusão conceitual em torno da Metafísica e a pertinência da crítica de Kant

Neste subitem, ao invés de desenvolver mais uma visão particular sobre a história da Metafísica, vamos simplesmente transcrever o verbete METAFÍSICA que consta da versão sintética do Dicionário de Filosofia de José Ferrater Mora. Com isso, associamos um parecer abalizado de um enciclopedista na justificação da tese que vamos apresentar e podemos limitar nossa intervenção ao destaque das conclusões relevantes, o que será feito ao final da transcrição. Vejamos, então, o que Mora nos informa sobre a Metafísica.

A palavra metafísica deve a sua origem a uma denominação especial usada na classificação das obras de Aristóteles feita primeiro por Andrónico de Rodes. Como os livros que tratam da filosofia primeira foram colocados na edição das obras do Estagirita a seguir aos livros da física, chamou-se aos primeiros metafísica, isto é “os que estão detrás da física”[2]. Esta designação, cujo sentido primitivo parece ser puramente classificador, teve posteriormente um significado mais profundo, pois, com os estudos que são objetos da filosofia primeira, se constitui um saber que pretende penetrar no que está situado para além ou detrás do ser físico enquanto tal. Segundo o próprio Aristóteles, há uma ciência que estuda o ser enquanto ser. Essa ciência investiga os primeiros princípios e as principais causas. Merece, por isso, ser chamada filosofia primeira, diferente de qualquer filosofia segunda. Aquilo que é enquanto é, tem certos princípios, que são os axiomas, e estes aplicam-se a qualquer substância como substância e não a este ou àquele tipo de substância. Aquilo a que chama filosofia primeira, ao ocupar-se do ser como ser, das suas determinações, princípios etc., ocupa-se de algo que é, na ordem do que é e na ordem também do seu conhecimento. Mas pode entender-se este ser superior ou supremo de dois modos: ou como estudo formal daquilo que depois se irá chamar formalidades, e, nesse caso, a metafísica será aquilo que depois se irá chamar ontologia, ou então como estudo da substância separada e imóvel – o primeiro motor, Deus – e nesse caso será, como Aristóteles lhe chama, “filosofia teológica”, isto é, teologia. Os escolásticos medievais ocupar-se-ão muitas vezes da questão do objeto próprio da metafísica. E como o conteúdo da teologia estava determinado pela revelação, ocuparam-se também das relações entre metafísica e teologia. Foram muitas as opiniões sobre estes dois problemas. Quase todos os autores concordaram em que a metafísica é uma ciência primeira e uma filosofia primeira. Mas, atrás disto, vêm as divergências. S. Tomás pensou que a metafísica tem por objeto o estudo das causas primeiras. Mas a causa real e radicalmente primeira é Deus. A metafísica trata do ser, o qual é “convertível com a verdade”. Mas a fonte de toda a verdade é Deus. Nestes sentidos, pois, Deus é o objeto da metafísica. Por outro lado, a metafísica é a ciência do ser como ser e da substância, ocupa-se do ente comum e do primeiro ente, separado da matéria. Parece, assim, que a metafísica é duas ciências ou que tem dois objetos. Contudo, isso não acontece, pois trata-se antes de dois modos de considerar a metafísica. Em um desses modos, a metafísica tem um conteúdo teológico, mas este conteúdo não é dado pela própria metafísica, mas pela revelação: a metafísica está, pois, subordinada à teologia. No outro destes modos, a metafísica é o estudo daquilo que aparece primeiro no entendimento; continua a estar subordinada à teologia, mas sem se pôr formalmente o problema dessa subordinação.

Para Duns Escoto, a metafísica é primeira e formalmente ciência do ente. Para Duns Escoto, tal como antes para Avicena, a metafísica é anterior à teologia, não pelo fato de o objeto desta estar realmente subordinado ao objeto da primeira, mas pelo fato de, sendo a metafísica ciência do ser, o conhecimento deste último ser fundamento do conhecimento do ser infinito. Suárez resumiu e analisou quase todas as opiniões acerca da metafísica propostas pelos escolásticos e sustentou que essas opiniões têm todas alguma justificação, embora sejam parciais. Tanto os que defendem que o objeto da metafísica é o ente considerado na sua maior abstração, como os que afirmam que é o ente real em toda a sua extensão, ou os que dizem que o único objeto é Deus, ou os que declaram que este único objeto é a substância enquanto tal, descobriram verdades parciais. Para Suárez, a noção de metafísica não é tão ampla como alguns supõem, nem tão restrita como outros admitem. A metafísica é a ciência do ser enquanto ser, concebido como transcendente. O princípio “o ser é transcendente” é, para Suárez, a forma capital da metafísica.

Durante a época moderna, defenderam-se opiniões muito diferentes acerca da metafísica, incluindo a opinião de que não é uma ciência nem nunca o poderá ser. Francis Bacon considerava que a metafísica é a ciência das causas formais e finais, ao contrário da física, que é a ciência das causas materiais e eficientes. Para Descartes, a metafísica é uma filosofia primeira que trata de questões como a existência de Deus e a distinção real entre a alma e o corpo do homem. Característico de muitas das meditações ou reflexões ditas metafísicas, na época moderna, é que tentam explicar problemas transfísicos e que, nesta explicação, se começa com a questão da certeza e das primeiras verdades. A metafísica só é possível como ciência quando se apoia numa verdade indubitável e absolutamente certa, por meio da qual podem alcançar-se as verdades eternas. A metafísica continua a ser, em grande parte, ciência do transcendente, mas esta transcendência apoia-se, em muitos casos, na absoluta imediatez e imanência do eu pensante.

Outros autores rejeitaram a possibilidade do conhecimento metafísico e, em geral, de qualquer realidade considerada transcendente. O caso mais conhecido, na época moderna, é o de Hume. A divisão de qualquer conhecimento em conhecimento de fatos ou relações de ideia deixa sem base o conhecimento de qualquer objeto metafísico; não há metafísica porque não há objeto de que essa pertença ciência possa ocupar-se. Outros estabeleceram uma distinção entre metafísica e ontologia. Na ontologia, recolhe-se o aspecto mais formal da metafísica. Concebe-se a ontologia como uma filosofia primeira que se ocupa do ente em geral. Por isso, pode equiparar-se a ontologia a uma metafísica geral. As dificuldades oferecidas por muitas das definições anteriores de metafísica pareciam desvanecer-se em parte: a metafísica como ontologia não era ciência de nenhum ente determinado, mas podia dividir-se em certos ramos (como a teologia, a cosmologia e a psicologia racional) que se ocupavam de entes determinados, embora em sentido muito geral e como princípio de estudo desses entes.

A persistente tendência das ciências positivas ou ciências particulares relativamente à filosofia agudizou as questões fundamentais que se tinham levantado acerca da metafísica, e em particular as duas questões seguintes: 1) se a metafísica é possível como ciência; 2) de que se ocupa.

A filosofia de Kant é central na discussão destes dois problemas. Este autor tomou a sério os ataques de Hume contra a pretensão de alcançar um saber racional e completo da realidade, mas, ao mesmo tempo, tomou a sério o problema da possibilidade de uma metafísica. A metafísica foi, até agora, a arena das discussões sem fim, edificada no ar, não produziu senão castelos de cartas. Não pode, pois, continuar-se pelo mesmo caminho e continuar a dar rédea solta às especulações sem fundamento. Por outro lado, não é possível simplesmente cair no cepticismo: é mister fundar a metafísica para que venha a converter-se em ciência e para isso há que proceder a uma crítica das limitações da razão. Em suma, a metafísica deve sujeitar-se ao tribunal da crítica, à qual nada escapa nem deve escapar. Kant nega, pois, a metafísica, mas com o fim de a fundar. Tal como na idade média, a metafísica constituiu, durante a idade moderna e depois ao longo da idade contemporânea, um dos grandes temas de debate filosófico, e isso a tal ponto que a maior parte das posições filosóficas, desde Kant até à data, se podem compreender em função da sua atitude perante a filosofia primeira. As tendências adstritas àquilo que poderíamos chamar a filosofia tradicional não negaram em nenhum momento a possibilidade da metafísica. O mesmo aconteceu com o idealismo alemão, embora o próprio termo metafísica não tenha recebido com frequência grandes honras. Em contrapartida, a partir do momento em que se acentuou a necessidade de se ater a um saber positivo, a metafísica foi submetida a uma crítica constante. Na filosofia de Comte, isto é evidente: a metafísica é um modo de conhecer próprio de uma época da humanidade, destinada a ser superada pela época positivista. Esta negação da metafísica implicava, por vezes, a negação do próprio saber filosófico. Por isso, surgiram, nos fins do século dezenove e começos do século vinte, várias tendências antipositivistas que, embora hostis em princípio à metafísica, acabaram por aceitá-la. Existencialismo e bergsonismo e muitas outras correntes do nosso século são ou de caráter declaradamente metafísico ou reconhecem que o que se faz em filosofia é propriamente um pensar de certo modo metafísico. Em contrapartida, outras correntes contemporâneas opuseram-se decididamente à metafísica, considerando-a uma pseudociência. É o que acontece com alguns pragmatistas, com os marxistas e em particular com os positivistas lógicos (neopositivistas) e com muitos dos chamados analistas. Comum aos positivistas é terem adotado uma posição sensivelmente análoga à de Hume. Acrescentaram à posição de Hume considerações de caráter linguístico. Assim, sustentou-se que a metafísica surge unicamente como consequência das ilusões em que a linguagem nos envolve. As proposições metafísicas não são nem verdadeiras nem falsas: carecem simplesmente de sentido. A metafísica não é, pois, possível, porque não há linguagem metafísica. A metafísica é, pois, um abuso da linguagem. Nos últimos anos, foi dado verificar que, inclusive dentro das correntes positivistas e analistas, se levantaram questões que podem considerar-se como metafísicas, ou então atenuou-se o rigor contra a possibilidade de qualquer metafísica. (MORA, 1978, p. 182).

Esse verbete foi concebido, naturalmente, com a intenção de definir metafísica e não com a intenção de contar a história da disciplina, razão pela qual não menciona Parmênides, que propôs o ser como princípio; nem Platão, que levou a perspectiva ao seu apogeu; nem Plotino, que nos ajuda com as lições não escritas de Platão; e nem Heidegger, que pretendia uma metafísica à margem da racionalidade. Todos esses elementos históricos são relevantes na consideração completa da disciplina. Apesar disso, há, nessa descrição, elementos históricos suficientes para mostrar a pertinência da crítica de Kant quando defende que ela ainda não alcançou a condição de conhecimento estabilizado, bem definido e passível de crítica racional, e, portanto, não possui ainda status científico. Conforme Mora (1978) esclarece, historicamente, os esforços metafísicos, em boa parte, perdem-se em disputas e contradições não resolvidas ou precariamente resolvidas. O texto também revela-se suficiente para abonar a prescrição de Kant, à medida que sustenta que uma metafísica futura que pretenda apresentar-se como ciência precisa, antes de tudo, responder a duas perguntas: se é possível, em geral, tal ciência e como é possível.

2.2 O posicionamento mental e conceitual requerido pela Metafísica

Embora a história registre diferentes concepções metafísicas, a retomada do conceito de filosofia primeira, de caráter fundacional, remete-nos à concepção clássica proposta por Parmênides e amadurecida por Platão. Segundo essa concepção, Metafísica é a ciência do ser que constitui o fundamento do ente e explica o seu advento. A escolha do ser como princípio, efetuada por Parmênides, decorre da radical universalidade e da radical irredutibilidade do ser. Todo fenômeno manifesto no mundo relativo possui um ser e, consoante isso, cabe-lhe uma identidade privativa. O ser contempla, também, uma unidade indivisível e irredutível como, logicamente, percebe-se, embora a Metafísica distinga ser absoluto de ser relativo. Ambos, porém, continuando a ser simplesmente ser, mantêm e preservam a sua irredutibilidade. Também compete à Metafísica esclarecer, devidamente, essa diferença.

A justificação da escolha do ser como princípio constitui conteúdo central da disciplina, estende-se por muitos aspectos e admite ser considerada tanto em termos objetivos como subjetivos. Aqui, em razão dos propósitos deste subitem, interessa, sobretudo, contemplar o ser enquanto fundamento da consciência. Nesse sentido, a escolha revela-se evidente, na medida em que não se pode deixar de reconhecer a presença de um ser inteligente, na base de nossos pensamentos, e, tampouco, pode-se deixar de se identificar com esse ser pensante e, menos ainda, deixar de perceber que esse ser abarca todo o ente que somos. Assim, na perspectiva da mente que se contempla a si mesma, adotar o ser como fundamento configura-se como hipótese perfeitamente justificada.

Precisamos reconhecer que as questões colocadas por Kant sobre a possibilidade da metafísica como ciência e sobre as condições nas quais tal ciência seja possível são também pertinentes e aplicáveis à Metafísica Clássica de Parmênides e de Platão, tanto quanto são aplicáveis a qualquer ciência. Por outro lado, como testemunha a tradição filosófica, o trabalho pessoal e criativo em Metafísica implica e resulta de um mergulho racional introspectivo no sentido do ser, dado que a Metafísica parte da hipótese de que é o ser que fundamenta o ente. Esse mergulho em busca do ser coloca-nos em ambiente de amplitude oceânica e profundidade abismal, e a história do pensamento filosófico indica que muitos pensadores mergulharam fundo nessa busca, vislumbraram diferentes aspectos e se preocuparam em registrar para a posteridade o que viram. Enfrentaram dificuldades para fazer esse registro, tanto em razão do inusitado das coisas que encontraram como da pobreza da linguagem em oferecer termos apropriados para expressar, adequadamente, o vislumbrado. Tentaram superar essas dificuldades, refazendo definições, esmiuçando conceitos e usando metáforas quando a linguagem formal revelava-se impotente. Apesar de todo esse esforço, continua sendo difícil, ainda hoje, acompanhar certos raciocínios desenvolvidos; não há acordo nem entendimento comum sobre o que os clássicos escreveram e, continuamente, surgem novas interpretações, até mesmo sobre as ideias centrais dos grandes pensadores. Esse é o estado de coisas que Kant denuncia e que cumpre ser superado. Para tanto, será necessário mapear esse oceano do ser e definir coordenadas que possibilitem a verificação, por terceiros, das visões e das constatações realizadas, de sorte que elas possam ser confirmadas ou refutadas, conforme exige o padrão científico de construção de conhecimento. O labor filosófico, a análise filosófica e a crítica ou verificação das proposições precisam ocorrer em ambiente organizado e mediante procedimentos suficientemente sistematizados que estejam ao alcance de mentes normais e não apenas de genialidades ocasionais que se contam nos dedos em toda a história da humanidade.

Contribuição relevante no sentido de organizar o espaço da Filosofia constitui legado de Platão, ao tratar da questão do uno e do múltiplo. Platão, no Parmênides, externa sua perplexidade diante da unidade indivisível do ser e da também unitária compleição da totalidade dos fenômenos, esta sabidamente constituída de partes. Platão percebe que o ser-fundamento constitui uma unidade irredutível e indivisível, representando, portanto, a unidade da mais extrema simplicidade. Por outro lado, percebe que todos os fenômenos comportam uma instância de totalidade que lhes confere, também, caráter de unidade, com a particularidade de ser composta de partes. Nós podemos acrescentar que essas partes são constituintes e determinantes da complexidade dos fenômenos, de sorte que essas duas “unidades” de Platão, referindo-se a primeira ao ser e a segunda, à totalidade do ente, configuram, entre si, um vetor e delimitam, também, um espaço de possibilidades dentro do qual tudo está, lógica e necessariamente, contido (RODRIGUES, 2012a).

Levando esse vetor para a metáfora do mergulho no oceano do ser, fica estabelecida uma primeira ordenada balizadora do labor filosófico: em um extremo do vetor, temos a totalidade da consciência – assimilável à ideia de superfície esférica, porquanto essa é a forma geométrica restituidora da unidade – que é o nosso ponto de partida; e, no outro extremo, temos o ser que é o fundamento da consciência e a meta ou o objeto do mergulho metafísico. Ora, esse vetor determina não apenas o sentido do mergulho em direção ao ser, balizando o mergulho no sentido da profundidade, mas também indica um percurso cujos diferentes pontos caracterizam diferentes graus de complexidade. Assim, partindo-se da totalidade, o percurso configura uma rota no sentido da simplicidade, cuja meta última é o ser, e, partindo-se do ser, o percurso configura uma rota da complexidade crescente que culmina na totalidade. Portanto, grau de complexidade representa um critério adequado e disponível que pode ser usado para a criação de ordenadas ortogonais ao vetor e, assim, dividir esse oceano do ser em níveis ou instâncias diferenciados. Caso isso revele-se possível, teremos avançado no sentido de organizar e balizar, cientificamente, o labor metafísico, uma vez que as coordenadas de uma percepção permitirão sua verificação por terceiros. Teremos, então, mapeado o território da Metafísica ou teremos mapeado o território da Ontologia?

De qualquer modo e antes de enfrentar essa questão, parece que já temos elementos suficientes para entender que a metáfora de um oceano do ser e a caracterização da Metafísica como mergulho introspectivo em busca do ser deixam claro a perspectiva e a postura mental que é exigida àqueles que pretendam pensar Metafísica. Adicionalmente, a variação de complexidade que caracteriza o vetor mencionado indica, ao menos, o tipo de solução exigida: classificar a complexidade em graus ou instâncias. Dessa forma, entende-se atingido o propósito deste capítulo.

2.3 Como definir e contextualizar Metafísica e o saber filosófico

Sendo a intenção conferir cientificidade à Metafísica ou à filosofia primeira, cumpre, antes de tudo, organizar com critérios claros o continente no qual o trabalho de pesquisa filosófica tem-se desenvolvido no decorrer do tempo. Não é mais possível conviver com dúvidas e disputas sobre o que sejam e como se distinguem Metafísica, Filosofia, Ontologia, Teologia e as demais ciências regionais que aqui, neste texto, reunimos sob o título abrangente de Cosmologia, já que contemplam característica comum e, como tal, serão referidas em bloco.

Nesse sentido, sintomaticamente, também devemos a Platão o primeiro aporte organizativo, um resultado que Reale (2007) entende constituir o legado platônico mais importante. Tratam-se dos conceitos contemplados na metáfora das duas navegações. Os barcos gregos, no tempo de Platão, combinavam vela e remo. Primeira navegação era aquela executada com as velas, ao sabor de ventos fartos, e segunda navegação, aquela que requeria remos, tendo em vista que o vento cessara completamente. Velas, na metáfora de Platão, são os sentidos orgânicos de percepção, e ventos são os estímulos que os sentidos recebem do meio ambiente. Dessa forma, primeira navegação, na metáfora de Platão, contempla aquele conhecimento que o homem desenvolve com base nos estímulos que afetam o seu organismo e que se referem ao mundo e ao Universo onde o homem está emerso. Já a segunda navegação corresponde ao conhecimento que a mente elabora, usando apenas as potencialidades estruturais do intelecto, sem o concurso de estímulos do meio. Aqui, para se navegar, é necessário o uso de remos – imaginação, lógica e atenção concentrada – e de força muscular – vontade de entender.

Na segunda navegação de Platão, não apenas são dispensados os estímulos provenientes do mundo circundante como também o navegante hábil deve ser capaz de evitar que tais estímulos intervenham na sua meditação e empanem o seu raciocínio. Observe-se que se trata de um pensar inerente a um plano superior àquele no qual se situa o universo particular que abriga o ser humano, daí porque estímulos orgânicos se afiguram inúteis e inadequados. Uma hipótese da Física moderna pode ajudar a esclarecer essa diferença. Postulam alguns físicos teóricos que, eventualmente, podem existir outros universos além deste que conhecemos. Embora isso seja apenas uma hipótese, ela serve para evidenciar a necessidade e a possibilidade de um conhecimento anterior e superior que estabeleça as condições segundo as quais este ou qualquer universo pode tornar-se real, isto é, pode passar de mera possibilidade para fato real, já que, como se sabe, este universo em algum momento surgiu. Esse conhecimento não pode decorrer de estímulos e relações presentes em um universo realizado, mas decorrem da contemplação e da análise de universalidade que antecedem toda realização. A esse âmbito de universalidades puras é que Platão, certamente, refere-se quando fala de principios primeiros do mundo das ideias.

Observe-se que esse plano de considerações é próprio e natural do espírito helênico da época. A mitologia grega que antecedeu a meditação filosófica já contemplava essa percepção, na forma de distinção entre o plano dos homens e o plano dos deuses. Os deuses da mitologia grega eram seres superiores que haviam criado e dirigiam o mundo e o destino dos homens. Esses deuses residiam inclusive em uma morada dos deuses, cidadela privativa chamada Olimpo, à qual apenas muito excepcionalmente os homens tinham acesso. Portanto, o espírito helênico estava maduro para perceber a presença de universalidades ou leis universais relativas ao plano dos deuses e próprias da racionalidade de tais divindades, uma racionalidade que não se confundia com a racionalidade ordinária dos simples mortais.

Em face dessas considerações, propõe-se aproveitar essa metáfora mitológica da morada dos deuses e designar de filosofia olímpica o que sempre se intencionou com a expressão filosofia primeira, restringindo o seu conteúdo apenas e exclusivamente ao saber ou ao conhecimento relativo a essa instância ou plano superior, fruto privativo e exclusivo da segunda navegação. Quando se assume essa definição, torna-se iniludível que a Metafísica, enquanto ciência do ser, passe a ser exigida como disciplina inaugural dessa filosofia olímpica. Não apenas porque o ser é comum a deuses e homens, mas também porque apenas a tese do ser como fundamento permite alicerçar o mundo relativo em um princípio racional absoluto. Para que essa Metafísica redefinida se estabeleça com firmeza e consistência e possa ser aceita por todos, inclusive por céticos, ateus e niilistas, precisa contemplar duas características: ser entendida como ciência meramente noética e limitar-se a tratar do ser enquanto ser. Na condição de disciplina noética, isto é, puramente mental, não possui compromisso com a realidade extraconsciência e fica dispensada de questionamentos a respeito da existência extraconsciência do ser absoluto. Com isso, as razões lógicas e otológicas esgrimidas em todos os tempos na defesa de um ser necessário podem ser aceitas sem restrições. Quanto à sua limitação ao estudo do ser enquanto ser, objetiva concentrar seu foco na condição ôntica inescapável do ser absoluto e na condição ôntica derivada do ser relativo, sem avançar indevidamente pelo tratamento do ente e de suas condições ontológicas, procedimento que tem sido causa de grandes confusões. Com isso, essa Metafísica contempla seus objetos sempre e apenas em termos noéticos, isto é, como possibilidades lógicas coerentes.

Com essa definição restrita de Metafísica, torna-se necessário completar essa filosofia olímpica com duas disciplinas: a Teologia e a Ontologia, essas sim ciências eidéticas, comprometidas com a realidade extraconsciência. Nesses termos, caberia a essa Teologia demonstrar a existência factual, extraconsciência, do ser absoluto e caberia a essa Ontologia demonstrar a existência factual, extraconsciência, do ser relativo. Essas duas ciências eidéticas, na condição de ciências complementares da Metafísica, naturalmente precisam contemplar a mesma perspectiva da ciência-mãe, segundo a qual, o ser relativo deriva, de algum modo, do ser absoluto, mas seus objetivos configuram-se independentes um do outro, ainda que voltados a provar ou demonstrar a existência objetiva dos respectivos seres. Com isso, temos um ganho substantivo posto que as duas ciências podem experimentar evolução sem depender dos resultados uma da outra; além disso, elimina-se de vez a histórica confusão entre Metafísica, Ontologia e Teologia.

Observe-se que a Ontologia assim caracterizada – como pensamento olímpico e eidético – deve ser capaz de esclarecer as condições segundo as quais toda a existência relativa, ou seja, este universo que nos envolve ou qualquer outro, pode-se dar, pode passar a existir e pode constituir-se e desenvolver-se. Dado que reunimos todas as ciências relativas ao nosso universo realizado, sob o título de Cosmologia, resulta que essa Ontologia situa-se na fronteira entre a Metafísica e a Cosmologia, competindo-lhe prover a base filosófica e ontológica de todas as ciências regionais da Cosmologia. Para tanto, essa Ontologia deverá contemplar os axiomas da existência em geral e definir as leis que regulam a existência, nada ainda a ver com qualquer fenômeno ou ente particular integrante do universo, mas apenas com a definição das condições existenciais comuns a todos os entes. Com isso, a condição de validade dessa Ontologia independe dos resultados da Teologia e resulta apenas dependente da sua própria capacidade de explicar o advento existencial dos fenômenos e da sua capacidade de esclarecer o percurso evolutivo que separa a menor singularidade quântica detectada da maior complexidade fenomênica conhecida. Caso o modelo ontológico gerado por essa Ontologia cumpra esse papel, o homem estará instrumentalizado com um paradigma formal capaz de propiciar-lhe olhar competente sobre o mundo realizado e, virtualmente, compreender melhor a sua própria posição no seio do Universo.

Podemos resumir a organização conferida ao continente, usando o esquema, a seguir, que indica, na parte inferior, o desnível que separa o plano dos deuses – Olimpo/2a navegação – do plano dos homens – universo realizado/1a navegação – e, na parte superior, destaca as disciplinas e os planos correspondentes.

Filosofia Olimpica

Em resumo, o que se propõe é dividir todo o conhecimento humano em conhecimentos de dois níveis, exatamente correspondentes às duas navegações de Platão. No plano superior, no plano filosófico, correspondente à segunda navegação, reunir o conhecimento sob o título de filosofia primeira ou de filosofia olímpica, contemplando, apenas e exclusivamente, três disciplinas: a Metafísica, a Teologia e a Ontologia. A primeira, noética e as duas derivadas, eidéticas. No plano inferior, correspondente à primeira navegação, viabilizar uma Cosmologia capaz de orientar adequadamente todas as ciências regionais. Com isso, temos o território da filosofia clara e completamente mapeado, e ficam perfeitamente indicadas não apenas quais são as disciplinas envolvidas, mas também os propósitos e as condições de contorno e de validade de cada uma.

2.4 Como deve ser a Filosofia para merecer o status científico

Como está implícito na redefinição do saber filosófico, encetada no subitem anterior, o critério de cientificidade aplicável à Metafísica – na condição de conhecimento noético – limita-se à obediência da lógica e, em particular, ao respeito dos princípios da identidade e da não contradição. Naturalmente, não cabe exigir teste de bancada a uma ciência noética. Sem avançar pelos meandros da lógica, incabível neste artigo, basta ter em conta que a validade dessa Metafísica será dada indiretamente, atestada pelo sucesso da Ontologia que ela potencializa. A validade dessa Ontologia, por sua vez, será dada tanto pela consistência interna do modelo referencial que disponibiliza, em sua capacidade de revelar a compleição do Universo, quanto pelas ciências regionais, na medida de sua alavancagem com o novo paradigma. De qualquer modo, a cientificidade da Ontologia Olímpica apenas poderá ser vislumbrada após a consideração do modelo ontológico que ela disponibiliza para contemplar e entender o mundo, o que será visto no próximo subitem.

Já se pode antecipar, entretanto, que esse modelo ontológico deverá revelar uma visão de mundo compatível com o modo científico de proceder, ainda que revele um mundo conceitualmente diferente e exija revisão na demarcação do que seja científico. Certamente, não poderá comprometer o ideal científico de um conhecimento embasado, justificado, confiável, demonstrado e passível de verificação, de confirmação ou de refutação e, sobretudo, deverá revelar-se capaz de fornecer os pressupostos que as ciências regionais demandam e que não pertencem ao seu âmbito de considerações ou que não podem ser resolvidos no seu âmbito de competência. Deverá fazer isso tudo, utilizando princípios e conceitos rigorosamente lógicos e racionais, de sorte que a transição entre o saber estritamente filosófico e o saber especificamente científico transcorra de forma natural, harmônica e sem sobressaltos.

2.5 A solução: a tese do logos normativo

No subitem 2.2, usamos a metáfora do mergulho no oceano do ser para indicar o modo de pensar típico da meditação metafísica. Mostramos tratar-se de uma introspecção no âmbito da consciência, buscando o ser que a Metafísica entende ser o fundamento do ente. Invocamos, na ocasião, as duas unidades identificadas, por Platão, como sendo correspondentes: a primeira, ao ser indivisível, constituinte da mais extrema simplicidade, e a segunda, à totalidade dos fenômenos, invariavelmente composta de partes. Vimos também que o vetor que unia essas duas unidades, quando aplicado à consciência, servia de coordenada orientadora do mergulho introspectivo em busca do ser e configurava uma rota única, posto que indicativa do caminho da complexidade: o caminho da complexidade decrescente, partindo-se da totalidade da consciência em direção ao ser fundamento; e o caminho da complexidade crescente, fazendo-se o caminho inverso, partindo-se do ser em direção à totalidade da consciência. Finalmente, aventou-se a hipótese de criar também ordenadas ortogonais capazes de balizar o mergulho, mediante a conversão desse vetor em uma escala, isto é, mediante a divisão desse caminho da complexidade em instâncias diferenciadas umas das outras e, assim, completar um sistema de ordenadas capaz de balizar adequadamente esse trabalho introspectivo. Com isso, podemos concluir que a solução do problema colocado depende de se encontrar um critério escalar adequado para identificar e classificar os graus de complexidade manifestos ou potenciais.

Para enfrentar esse problema, precisamos da contribuição da Geometria, que ensina que complexidade crescente exige amplitude lógica também crescente para poder manifestar-se. Esse é um fato bastante evidente também na Matemática. Caso, por exemplo, o universo quantitativo de uma criança se resuma ao número um, ela só reconhece algum significado quando exposta à unidade, não existindo em sua mente amplitude quantitativa para compreender o que seja uma dezena. O que descobrimos, em outra ocasião, é que a geometria dimensional disponibiliza conceitos que permitem a mais elementar, a mais precisa e a mais minuciosa distinção de amplitude e, consequentemente, de grau de complexidade que a mente humana consegue perceber e operar. Usando novamente um exemplo, caso o âmbito lógico ou a amplitude disponível para a manifestação existencial seja de apenas uma dimensão, torna-se inviável, nesse âmbito, a manifestação ou a presença de retas paralelas. Conforme lição que devemos a Euclides (300 a.C.), retas paralelas demandam amplitude bidimensional para poder existir, ser representada ou mesmo ser concebida. Na amplitude de uma só dimensão, âmbito que corresponde ao que em Geometria chama-se de reta ideal, uma reta dada já ocupa toda amplitude disponível e, consequentemente, não cabe uma segunda reta adicional. Da mesma forma e pelas mesmas razões, uma amplitude de duas dimensões não comporta um poliedro, posto que este demanda uma amplitude de três dimensões para existir ou ser concebido.

Essa propriedade de as amplitudes lógicas das diferentes instâncias dimensionais comportarem complexidades correspondentes estende-se e vale, também, no mundo objetivo, tanto assim que, somente estando disponível um âmbito lógico de três dimensões, viabiliza-se o espaço real e fica facultado o surgimento da matéria, tal como a conhecemos. Em outros termos, podemos dizer que a amplitude do espaço real pressupõe uma amplitude lógica de três dimensões ou que o espaço possui uma amplitude lógica de três dimensões. É por essa razão que um poliedro de cinco lados, inicialmente idealizado na cabeça de um arquiteto em uma amplitude lógica de três dimensões, pode ser materializado em uma pirâmide espacial real, tal como as pirâmides do Egito. Isso porque, em um âmbito composto de três dimensões lógicas, está disponível uma amplitude lógica suficiente para comportar tanto a concepção como o espaço objetivo capaz de comportar o fenômeno material, este também tridimensional. Já para explicar a construção da pirâmide pelo homem ou para explicar a sua longevidade, impõe-se contemplar o tempo, e isso, desde as lições de Einstein, exige uma quarta dimensão.

Dessa forma, infere-se que a solução para dividir e tornar escalar a distância que separa a totalidade da consciência da unidade indivisível do ser que a fundamenta pode ser provida pelo conceito de dimensão da Geometria. Adiante, verificar-se-á que a solução não apenas pode, mas deve ser provida pelo conceito geométrico de dimensão, tendo em vista que ele representa o único critério capaz de resolver o problema em suas múltiplas exigências.

Ora, esse mergulho introspectivo em busca do ser, patrocinado pela perspectiva metafísica e motivado por uma intenção científico-organizadora, conduz-nos a uma virtual organização dimensional da consciência. Essa é exatamente a solução preconizada na tese do logos normativo, publicada no final da década de noventa (RODRIGUES, 1999), que tem sido aperfeiçoada lentamente. Na publicação de 1999, desenvolvida sob preocupações de ordem metodológica, o modelo do logos normativo é apresentado, principalmente, como modelo normativo da racionalidade. Na publicação seguinte (RODRIGUES, 2011), a perspectiva é francamente Metafísica, sendo destacado o fato de o modelo do logos normativo descrever a constituição ontológica tanto da consciência como do mundo objetivo e, com isso, resolver os problemas da Teoria do Conhecimento. Na terceira publicação (RODRIGUES, 2012b), a explicação do modelo contempla os axiomas da existência, e o logos normativo amadurece como modelo ontológico da existência, abrindo caminho para a concepção de uma filosofia olímpica, tal como indicado no subitem 2.3. O logos normativo constitui o modelo formal que a ontologia olímpica propõe como paradigma tanto para explicar a compleição existencial do mundo relativo como para a leitura e a interpretação do nosso Universo.

Naturalmente, não cabe neste artigo discutir ou fundamentar o modelo, isso já foi feito alhures. É indispensável, no entanto, demonstrar ser inescapável adotar-se uma visão dimensional de mundo, caso se pretenda conferir foro científico a uma filosofia primeira que objetive orientar e balizar todas as ciências regionais. Por isso, entendemos ser indispensável fornecer uma ideia geral mínima do modelo, de sorte que o leitor possa avaliar por si mesmo a capacidade heurística deste.

O modelo do logos normativo contempla a simplicidade própria dos princípios. Ele divide o âmbito total da existência em seis instâncias dimensionais distintas: 1) uma instância adimensional, indicadora do lugar geométrico do ser absoluto, em decorrência do que as demais cinco instâncias configuram-se relativas e definem o âmbito existencial do ser relativo que compreende: 2) uma instância unidimensional, em que apenas se manifesta o ser relativo; 3) uma instância bidimensional, contempladora da inteligência organizativa do ser que determina se não a compleição exata do ente factual ao menos o espaço de possibilidades dentro do qual se dará a sua ontogênese e a sua evolução. Fazem parte dessa segunda dimensão o código genético, gerador do organismo dos seres vivos, e também o código determinante do espaço de possibilidades lógicas dentro do qual o ser vivo vai exercer sua subjetividade; 4) uma instância de três dimensões que faculta aos fenômenos uma existência material e aos seres vivos um organismo de sustentação da sua presença no plano relativo; 5) uma instância de quatro dimensões, provedora do tempo de existência de cada fenômeno, fortemente dependente da capacidade e do sucesso do organismo na manutenção de condições que o habilitem a recepcionar e preservar a vida, e, por último, 6) uma instância de totalidade que contempla a totalidade do ente e lhe confere unidade fenomênica em meio a um universo povoado de fenômenos outros. Na espécie humana, essa instância de totalidade contempla a consciência humana que se revela com natureza distinta daquela que materializa seu organismo. O modelo do logos, ao normatizar a existência, entende que todo fenômeno manifesto no mundo relativo surge como ser de uma só dimensão, possui uma inteligência organizativa estrutural que demanda duas dimensões, engendra uma materialidade privativa sustentadora de três dimensões, conquista um tempo existencial próprio de quarta dimensão e se estabiliza, onticamente, na existência em uma instância de totalidade. Esta, além de comportar também determinada inteligência organizativa, confere-lhe unidade fenomênica. O logos normativo assevera que esse modelo aplica-se a tudo que marca presença no universo, seja uma partícula atômica, uma molécula, um organismo, um planeta, o próprio universo e mesmo um sonho, uma ideia, um temor, uma tese ou uma ciência; ou seja, assevera que a existência neste universo relativo somente pode ocorrer nos termos e nos limites que o modelo prescreve.

Embora esse modelo do logos normativo, de feição dimensional com propriedade de moldar e delimitar a existência, constitua uma proposição moderna, a percepção de que a existência está sujeita a limitações remonta à Grécia Antiga. Reale, ao analisar o legado de Pitágoras sobre os princípios primeiros, expressa-se, assim: “Concluindo: o ilimitado e o limitante são os princípios primeiros; neles têm origem os números” (REALE, 1993, p. 83).

Como se sabe, os gregos clássicos buscavam os princípios que fundamentavam todas as coisas e, por essa razão, adotavam, já naquela época, a perspectiva contemplada pela Metafísica. Pitágoras designa o princípio primeiro de ilimitado e o segundo princípio de limitante. Esse é para ele o par de princípios fundamentais. Observe-se que ele não designou o segundo princípio de limitado, mas de limitante, indicando claramente que estava em busca de princípios que fossem ativos na constituição do mundo e não referindo-se à compleição do existente, tal como, hoje, a Metafísica faz ao distinguir o ser absoluto do ser relativo. Isso deve-se ao fato de a mentalidade grega clássica entender que ilimitado e limitado fazem parte e estão contidos no mundo, de sorte a não haver necessidade de uma instância que transcenda o mundo, daí a dicotomia absoluto-relativo não receber destaque no mundo grego. Apesar disso, a percepção pitagórica é de extrema acuidade. O ilimitado de Pitágoras corresponde precisamente ao ser absoluto da Metafísica, localizado no modelo do logos na instância adimensional. O limitante de Pitágoras corresponde exatamente ao logos normativo, enquanto modelo determinante da existência relativa, isto é, o limitante de Pitágoras indica, em bloco, aquilo que o logos normativo detalha em cinco instâncias dimensionais que vão da unidimensionalidade à totalidade fenomênica. Isso significa que uma das propriedades do logos consiste em estabelecer limitações à livre manifestação do ser que, enquanto presença na instância adimensional, é tanto absoluto como ilimitado. Quando, porém, o ser transcende e se manifesta na primeira dimensão já não se trata de um ser absolutamente indeterminado, mas de um ser precisamente determinado, já que o mundo relativo não comporta um ser de completa indeterminação. Assim, a primeira dimensão impõe ao ser emergente uma primeira limitação, determinando-o. Quando esse ser desdobra a segunda dimensão, evidencia-se uma dada inteligência organizativa, definidora das determinações estruturais que acompanham o ser e que vão ditar os espaços de possibilidades dentro dos quais os demais componentes constitutivos do ente vão desenvolver-se e tomar forma. Nessa segunda dimensão, impõe-se nova limitação à livre manifestação do ser, agora submetido a uma determinada inteligência organizativa e a um limitado espaço de possibilidades realizativas para o ente em formação. Quando o ser desdobra a terceira dimensão, nova limitação lhe é imposta, desta feita em termos de espacialidade e materialidade e, em se tratando de um ser vivo, em termos orgânicos. Naturalmente, a inteligência organizativa presente na segunda dimensão já indicava o tipo de organismo previsto e que, hoje, a Biologia classifica como espécie, mas a realização efetiva do organismo, aproveitando ou não todas as potencialidades disponibilizadas, dar-se-á apenas na terceira dimensão. Quando o ser desdobra a quarta dimensão sofre nova limitação, desta feita em termos de limitação temporal e o ente em formação adquire limitação de tempo existencial. Finalmente, quando o ser desdobra a instância de totalidade, o ente completa-se, realizando uma inteligência organizativa que, certamente, está contida no espaço de possibilidades preconizado na segunda dimensão, mas que também, certamente, deixou espaços não concretizados. No caso do reino animal e, em particular, da espécie humana, essa instância de totalidade manifesta-se como consciência e confere ao ente certas características e potencialidades consequentes, naturalmente, também, limitadas pelas determinações estruturais. Portanto, o modelo do logos normativo molda o ente, impondo cinco sucessivas limitações à originalmente livre e ilimitada manifestação do ser, e a percepção de Pitágoras, segundo o referencial do logos, revela-se extremamente acurada: percebeu o caráter limitante do logos e o definiu adequadamente como segundo princípio.

Esse papel limitante do logos normativo enseja implicação que merece ser mencionada aqui. Observe-se que a constituição do ente pelo ser envolve o desdobramento sucessivo de cinco instâncias dimensionais, de sorte a disponibilizar amplitude suficiente para recepcionar o ente em toda a sua complexidade. Cada instância sucessiva a partir da primeira viabiliza complexidade crescente, e o percurso entre a primeira dimensão e a totalidade configura o já mencionado caminho da complexidade. Curiosamente, porém, cada instância desdobrada impõe limitação adicional à livre manifestação do ser, uma vez que, ao atingir a instância de totalidade, o ser enfrenta a condição de máxima limitação, justamente no ponto em que o ente conquista a condição de máxima complexidade. Esse fato não configura um paradoxo, dado que complexidade crescente contempla crescente determinação e, consequentemente, menor liberdade objetiva do ser. Mas aí manifesta-se, novamente, a surpreendente genialidade da inteligência organizativa que alhures já havia inventado a vida: surge a consciência capaz de entender e operar essa inteligência organizativa natural e intervir, de forma consciente e inteligente, na sua compleição. Dado que a inteligência organizativa foi identificada tanto na estrutura do ente – segunda dimensão – como na consciência do ente – instância da totalidade –, ficam facultados dois alvos de intervenção conscientes, visando a reverter a tendência restritiva imposta ao ser e ampliar o seu grau de liberdade – naturalmente, uma faculdade acessível apenas para seres que tenham compreendido a engenharia cósmica: atuar na inteligência organizativa estrutural do ente e livrar, por exemplo, o organismo de doenças genéticas e, assim, ampliar o tempo existencial do ente, ou, de outro lado, atuar na inteligência organizativa da consciência e ampliar a capacidade mental do ente em termos criativos, interpretativos, de discernimento, de lucidez, de compreensão (…), tal como aqui estamos fazendo.

Voltando ao curso do rio, naturalmente, as propriedades do logos não se esgotam no estabelecimento de limites à manifestação do ser. A existência relativa distingue-se, também, da existência absoluta por manifestar-se como movimento existencial, enquanto o absoluto caracteriza-se por plena e total imobilidade, ao menos segundo nos é dado perceber em vistas da instância adimensional que adotamos no modelo para indicar o absoluto. Nesse caso, estamos cientes de que a nossa linguagem presta-se apenas para indicar o relativo, de sorte que as referências ao absoluto devem ser tomadas como metáforas precárias. De qualquer modo, quando o logos estrutura-se em dimensões, disponibiliza para a existência cinco instâncias de amplitudes diferenciadas, cada uma delas, consequentemente, propiciadora de um padrão de movimento existencial próprio, típico e inconfundível. Esses padrões de movimento, ao moldarem a existência, determinam cinco modos de ser que, de forma integrada e irredutível, compõem o modo total de ser dos entes em sua compleição objetiva. Esses mesmos padrões de movimento determinam, no âmbito da mente, padrões lógicos segundo os quais podem dar-se as inferências correspondentes aos modos objetivos de ser. Com isso, o logos normativo define os cinco modos de pensar facultados à consciência humana que resultam, simétrica e exatamente, correspondentes aos cinco modos possíveis de ser. Assim, o logos normativo divide o vetor indicativo do caminho da complexidade que usamos para balizar o trabalho introspectivo em cinco instâncias de distintas complexidades, cada uma delas acessível mediante lógica própria e inconfundível, e, dessa forma, o espaço da subjetividade fica completamente mapeado e balizado com ordenadas horizontais e verticais claras. Consequentemente, não apenas o trabalho introspectivo dos pensadores de todos os tempos pode ser seguido e repetido, mas as próprias constatações que realizaram podem ser confirmadas ou refutadas. Com isso, também, a estrutura ontológica comum dos entes fica explicitada nos termos do logos normativo, e o trabalho das ciências regionais pode contar, agora, com um paradigma efetivamente dotado de universalidade.

Quer nos parecer que essa conquista que acabamos de descrever corresponde ao que Platão se refere, quando afirma no Timeu:

Ora, no que toca à parte divina dentro de nós, os movimentos adequados são os pensamentos e revoluções do universo (lógicas). São esses que nos cabe ter como orientadores a seguir, pondo-nos a corrigir as revoluções em nossas cabeças distorcidas por ocasião de nosso nascimento, por meio do aprendizado das harmonias e revoluções do universo, com isso instaurando a conformidade entre a nossa parte pensante e o objeto pensado, de acordo com o que era sua natureza inicial; e uma vez conquistada essa similitude, teremos finalmente alcançado aquele propósito de vida, que é estabelecido pelos deuses aos seres humanos como a mais excelente, quer para o presente quer para o futuro. (Timeu, 90d).

3 CONCLUSÃO

 O percurso cumprido permite-nos concluir pela reorganização da filosofia primeira em três disciplinas, com a Metafísica, ocupando a posição fundamental. Possuindo essa Metafísica, caráter noético, sua cientificidade fica restrita à obediência dos princípios lógicos, da identidade e da não-contradição. Em compensação, a Ontologia que ela potencializa contempla feição científica plena, tanto assim que gera e propicia um modelo geométrico para se compreender e contemplar o mundo. Embora não se tenha tratado disso neste trabalho, esse modelo, além da orientação metafísica, demanda, na sua constituição, apenas três disciplinas: a Geometria, a Lógica e a Matemática. O logos mostra que essas três disciplinas, que todos percebem tratar-se de disciplinas especiais, são especiais porque possuem raízes metafísicas (RODRIGUES, 2011). Com esse resultado, a requisição de Descartes de um discurso more geométrico para balizar a discussão acadêmica fica plenamente atendida. Da mesma forma, ficam atendidas as prescrições de Kant para uma metafísica dotada de feição e utilidade científica. Com a geometrização dos axiomas da existência, a filosofia primeira ganha foro científico e se habilita a assumir a posição inaugural que lhe cabe no edifício do conhecimento. Assim, todas as ciências regionais, servindo-se dela, podem inscrever-se de forma harmônica na cultura humana, do mesmo modo como todos os fenômenos, objetivos ou não, emergem e se inserem sempre harmonicamente no contexto universal.

Usamos a metáfora das duas navegações de Platão para separar, claramente, a filosofia que contempla as universalidades que antecedem o mundo das ciências que contemplam o mundo realizado. Usamos a distinção platônica de uno e todo para revelar o caminho da complexidade e modelar o logos que define a composição ontológica comum de todos os entes. Usamos a Metafísica Clássica para indicar que o Universo é obra do ser e que, portanto, somente o olhar metafísico permite contemplá-lo adequadamente.

Caracterizada como ciência olímpica, a filosofia primeira supera de vez toda a confusão histórica que o verbete “Metafísica” de Mora (1978) tão bem descreve. A Metafísica trata do ser e de sua inserção na existência – perspectiva ôntica –, e a Ontologia trata do ente e das essencialidades que o constituem – perspectiva ontológica. A Ontologia decorre da Metafísica, preserva o ser como princípio, mas limita-se a definir as condições segundo as quais o ente relativo se estabelece e se desenvolve na existência. Essa filosofia olímpica, ainda, reserva espaço próprio para uma Teologia; não uma teologia qualquer, mas uma Teologia eidética, destinada à contemplação e à compreensão humana do absoluto. Uma tarefa difícil, senão a mais difícil a desafiar o homem, uma vez que, segundo o logos, a racionalidade humana limita-se a inferências que são correspondentes às cinco dimensões constitutivas do mundo realizado. Nesses termos, ao que tudo indica, a racionalidade humana não contempla recursos operacionais capazes de inferências que possam objetivar diretamente o absoluto. Apesar dessas dificuldades, não há como recusar a pertinência desse saber e nem a sua relevância para quem efetivamente esteja em busca da verdade.

A ferramenta objetiva que essa reorganização da filosofia disponibiliza para o labor intelectual do homem é o modelo do logos normativo, um paradigma que explica tanto a compleição do mundo objetivo como a compleição da racionalidade humana. Sua característica mais evidente é descortinar um universo dimensionalmente organizado. Esse modelo fundamenta o universo no ser. Esse ser manifesta-se existente como absoluto e como relativo e, ao assim proceder, não se revela completamente e preserva envolta, em brumas, a sua real natureza. Apesar disso, não há como recusar-lhe a presença e nem desconhecer que a consideração da sua presença retira o véu de mistério que antes nos impedia de ver, adequadamente, o próprio universo realizado, o que constitui o nosso objeto imediato. A presença do desconhecido nunca foi obstáculo à evolução humana e não há de ser difícil conviver com insuficiências conceituais a respeito do ser e da Teologia ainda pendente. Essa solução, porém, ao reposicionar cientificamente o ser no centro do mundo, desafia frontalmente os alicerces da civilização ocidental que, esquecida do ser, venera e privilegia o ter. Diante desse confronto, a humanidade terá de se posicionar e escolher, tal como, à vista do Iluminismo, teve de escolher entre o regime feudal e a Modernidade.

A civilização ocidental acredita que o Universo está contido no espaço-tempo e, em última instância, no espaço, já que sua ciência restringe-se a contemplar a matéria, sua composição e funcionalidades, pois constata ser essa a única existência manifesta no espaço. Isso significa que vivemos em uma civilização que entende ser a matéria o conteúdo existencial do Universo mais importante. Dado que a matéria é um componente escasso no Universo, a organização social engendrada por essa crença resulta competitiva, e o propósito central da vida organiza-se em torno da apropriação da maior parcela possível de bens materiais.

O logos normativo vê o mundo de forma diferente. Vislumbra como componentes mais importantes do Universo o ser que impulsiona o Universo no sentido da complexidade e a inteligência organizativa que articula tudo o que existe, inclusive a matéria e a energia, na constituição de fenômenos cada vez mais complexos. Nessa visão, o intelecto e a consciência humana constituem recursos que a natureza disponibilizou para a espécie e que lhe permite operar a inteligência organizativa natural e, eventualmente, usá-la para expandir e ampliar as condições de sobrevivência e discernimento da espécie. Em um modelo civilizatório com base nesse paradigma, o propósito central da vida estaria centrado na formação do ser e no desenvolvimento de sua capacidade intelectual, de sorte a potencializar a capacidade humana de operar a inteligência organizativa que resulta ser o bem mais abundante do Universo.

Com isso, percebe-se que a civilização ocidental concentra-se no recurso mais escasso do Universo, enquanto uma civilização do logos se concentraria no bem mais abundante. De qualquer forma, ficamos por aqui nessas considerações, dado que seguir adiante implicaria fazer política e nós, aqui, estamos fazendo filosofia.

O trabalho analítico das concepções e contribuições filosóficas de todos os tempos, com base no paradigma do logos, inscreve-se como pendência e desafio que pode revelar preciosidades perceptivas de pensadores que tenham adotado o modo metafísico de pensar e, também, como oportunidade de confirmar, corrigir ou refutar as crenças que acumulamos no decorrer do tempo. De qualquer modo, quer nos parecer que estamos diante de ganhos evidentes no sentido pretendido de uma filosofia estruturada de forma clara, bem articulada e apta para cumprir o seu papel de filosofia primeira.

Finalmente, reconhece-se que ficam faltando trabalhos de verificação por parte das diversas ciências, em particular da Matemática, quanto à adequação do modelo do logos normativo, na sua pretensão de orientar as ciências regionais. Não se trata de uma matemática trivial, já que o modelo contempla múltiplos graus de infinidade (RODRIGUES, 1999), mas, caso os matemáticos constatem uma base matemática consistente, possivelmente, teremos, finalmente, encontrado a almejada solução para o campo unificado de Einstein e poderá ser dispensada essa curiosa hipótese de existência de um universo não local para explicar violações das leis do tempo e do espaço.

 Brasília, dezembro de 2012.

REFERÊNCIAS

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SAMPAIO, Luiz Sérgio Coelho de. A lógica da diferença. Rio de Janeiro: UERJ, 2001.


[1] Filósofo, pesquisador em Teoria do Conhecimento e escritor. Presidente da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal (AMLDF). Idealizador e mantenedor do fórum de debates “Segundas Filosóficas” e do site: <http://segundasfilosoficas.org>.

[2] Hoje, já existem controvérsias a respeito disso. Ver Reale (1993).

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