Bento XVI em Regensburg – Geopolítica

No tabuleiro geopolítico planetário, em 11 de setembro de 2001, foi feito um movimento importante nas peças que cabem ao Islã. Ainda que a comunidade islâmica também tenha sido surpreendida, na mesma medida do resto do mundo, e nada tenha a ver com a ação real perpetrada, o fato político irrecusável é que uma peça poderosa assumiu posição relevante no tabuleiro: a promoção da morte, por atacado, não é mais prerrogativa do Estado. Em qualquer lugar, doses concentradas de ódio e de tecnologia podem reproduzir o horror em escala inusitada.

Cinco anos depois, em 12 de setembro de 2006, finalmente, houve uma resposta à altura: os pronunciamentos do Papa Bento XVI, na aula magna da Universidade de Regensburg e na homilia da missa campal. Na Academia, Bento XVI, objetivando debater fé, razão e universidade, resgata um diálogo ocorrido, na Idade Média, entre o imperador bizantino Manuel II e um persa versado em assuntos do islã. O tema era o da Guerra Santa, e o imperador criticava, segundo Bento, “com surpreendente rispidez”, a ordem de Maomé de espalhar a fé pela espada e considerava tal comportamento não racional como incompatível com a natureza de Deus e contrário à razão humana, por isso, apontava que Maomé não havia trazido nada de novo, apenas coisas ruins e desumanas. Bento não sanciona a posição do imperador, mas usa a citação a fim de destacar um aspecto cultural relevante para se entender as diferenças entre a cultura ocidental, que prioriza a razão, e a perspectiva islâmica, que, entendendo Deus como absolutamente transcendente, não o considera redutível e, portanto, subordinável à razão humana. Por essa razão, a conversão forçada, por exemplo, pode ser aceita, naturalmente, por uns e, ao mesmo tempo, escandalizar outros.

A reação da facção radical do islã foi impetuosa e conhecida, e a da mídia internacional, de um modo geral, prudente, embora, no primeiro momento, tenha prevalecido a impressão de uma gafe papal. O Stratfor Geopolitical Intelligence Report, porém, em 19 de setembro, traz-nos uma análise inteligente da questão, em artigo assinado por G. Friedman. Friedman recusa, com firmeza, a ideia de acidente e demonstra ter havido um movimento intencional e bem pensado. Identifica a questão essencial implícita como sendo a tensão estrutural entre ciência e religião e/ou entre razão e fé e destaca problemas internos da religião, como a razão, a revelação e o dogmatismo.

A partir dessa análise, reconhece a elegância do movimento do papa e encaminha leitura essencialmente política dos fatos. De um lado, entende que Bush pode ter sido beneficiado, em sua tese do conflito americano, com os militantes islâmicos constituindo um embate de civilizações. Também entende que Bento, ao estabelecer distinção aguda entre o islã e a cristandade, de certa forma, oferece argumento intelectual à posição de Bush e, ao mesmo tempo, diminui a tensão entre ciência e religião, presente no Ocidente. De outro lado, entende que o Vaticano, com essa posição, reaproxima-se do homem europeu e de suas angústias e apreensões diárias, com a crescente presença e a desenvoltura dos muçulmanos, na Europa. Nesse sentido, estaria reforçando sua posição com a base da igreja e, simultaneamente, advertindo os muçulmanos da Europa sobre os limites da tolerância.

A declaração de que “não agir segundo a razão, não agir com o logos, é contrário à natureza de Deus” constitui o argumento decisivo que o papa resgata do texto medieval e coloca, no tabuleiro, diante do fantasma das Torres Gêmeas.

O primeiro impacto faz-se sentir em território islâmico: a acusação é inaceitável, mas a reação implica mais que meramente repudiar o pronunciamento do papa: será necessário assumir, na prática, atitudes clara e fortemente amparadas em racionalidade. Não fazer isso pode provocar rupturas estruturais internas, porque nenhum modelo sustenta-se sem coerência interna e fazê-lo não pode significar a mera adoção da lógica ocidental. Há, aqui, certamente, uma questão essencial pendente relativa à lógica ou à teoria da inferência. Mas, nesse sentido, o papa é aliado: grande parte da aula inaugural é dedicada à demonstração da insuficiência e da estreiteza da razão científico-experimental que prevalece no Ocidente e, também, à defesa da necessidade de “um alargamento do nosso conceito de razão” – “Só o conseguiremos se razão e fé estiverem unidas de uma nova forma; se superarmos a limitação autodecretada da razão ao que é verificável na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua vastidão”. Durante a homilia, chegou a ser desafiante: “Sem Deus, os cálculos (dos cientistas) não fecham”.

O segundo impacto, portanto, será sentido em território ocidental: o que está implícito é uma revisão da atual demarcação científica e a extensão dos critérios de cientificidade, para além da compleição e do funcionamento da matéria. Um projeto estonteante. O alvo, aqui, é, simplesmente, o paradigma da civilização. Entretanto, irrecusável, nos termos colocados por Bento, para quem isso não pode significar voltar atrás, “à época anterior ao Iluminismo, rejeitando as convicções da Era Moderna”. Não pode significar retração, mas, sim, alargamento da razão, de sorte que a nova razão acolha todos os padrões lógicos factuais, inclusive aqueles que têm sido tão caros à ciência moderna. O papa não especifica essa razão ampliada, mas a indica claramente como sendo o logos de João Evangelista, no qual destaca preservados os sentidos helenistas da tradição. Os universais gregos ficam assim resgatados, na condição de Verbo divino gerador de todas as coisas: “Logos significa, ao mesmo tempo, razão e palavra, uma razão que é criadora e capaz precisamente de se comunicar, mas com razão”.

Naturalmente, Bento reconhece as dificuldades de engajar o Ocidente em tal programa, e, por isso, o discurso é dirigido não aos chefes de governos das economias mais importantes, mas aos “representantes do mundo científico e cultural da Baviera”, em uma aula magna de uma universidade. O alvo é a Academia e o mundo científico ocidental em geral, a quem desafia para a tarefa de encontrar esse grande logos e atestar ou abonar o seu valor científico e instrumental. Poderá a Academia recusar esse convite? Acreditamos que a decisão não deva ser mais difícil que a exigida da comunidade islâmica, instada a decidir entre enfrentar a inteligência ou os canhões de Bush. Tecnicamente, o caminho está indicado: ao logos faz-se necessário conferir amplidão, incluir um holos, e o logos-holos resultante há de viabilizar uma razão holística e configurar-se método para o exercício consciente e metódico de uma razão que contemple também a transcendência e o absoluto.

Essa estratégia teria um ponto fraco se a pimenta fosse apenas para olhos alheios, mas isso não é o caso. O terceiro impacto será sentido no coração do Vaticano, porque o avanço da racionalidade tornará cada vez mais difícil sustentar que a verdade precise esconder-se atrás de um dogma, qualquer que seja. O papa sabe, portanto, que a busca determinada da verdade também abalará os alicerces da igreja e impor-lhe-á a mesma metamorfose que está receitando para o islã e para a ciência. É desse fato, justamente, no nosso entender, que procede a sua autoridade para conduzir o processo.

Naturalmente, tudo isso pode ser apenas interpretação, tanto porque toda subjetividade não passa disso como também porque ninguém consegue penetrar na cabeça dos outros. Quando, porém, uma interpretação merece crédito? Quando evidencia forte aderência aos fatos, quando o discurso sustenta-se logicamente e, principalmente, quando a interpretação revela-se conveniente ao homem, ampliando o seu discernimento. Quando lemos a carta encíclica fides et ratio do sumo pontífice João Paulo II, publicada em 1998, percebemos que esse projeto vem de longe. Não é difícil ver o dedo de Bento já presente naquele documento. Nesse contexto, não nos surpreenderia constatar que a imagem conservadora do pontífice resultasse conveniência estratégica em plano de médio prazo, cuidadosamente arquitetado com o seu antecessor.

De todas as formas, depois de um tenebroso inverso, eis que uma janela abre-se para o futuro, demonstrando que existe saída racional para o imbróglio criado pela Modernidade. Radicais de ambos os lados vão chiar, mas, para deixar simbolicamente clara a posição do Islã, o melhor que a Ummah pode fazer é oferecer a proteção do Islã ao papa e empenhar-se no diálogo de culturas proposto. Resta saber o que fará a Academia.

Brasília, 1o de outubro de 2006.

Rubi Rodrigues

ADENDO 2020

Passados tantos anos, relendo esses textos, penso começar a entender as razões de Ratzinger. Diante do silêncio da Academia e das resistências internas, o papa percebe que não conseguirá levar a Igreja a se ajustar às exigências de racionalidade que emergem com os novos tempos. A nova Igreja, não dogmática, exigida, deverá assumir, virtualmente, a orientação geral que uma vez teve o culto de Akhenaton, tal como agudamente percebeu Sloterdijk – único meio de evitar o persistente esvaziamento. Consciente do princípio da dualidade do Yin-yang, o que faz Bento XVI? Aciona a via contrária: “renuncia”, elege um Vizir, seu antípoda, adepto da Teologia da Libertação, para acelerar a crise da igreja. Dom Francisco, obediente, desloca a ação papal do plano dos universais para o plano do devir e das lutas ideológicas – como exemplarmente mostra o Sínodo da Amazônia que ofende o maior rebanho católico remanescente -, e, assim, atrela o futuro da igreja ao destino da Pós-Modernidade. Fica garantido que a igreja acompanhará as transformações que se aproximam, e não repetirá o erro cometido pelo papa Leão III, na Alta Idade Média, tentando ressuscitar um império que já havia morrido trezentos e vinte e quatro anos antes. Com a genialidade estratégica de Ratzinger, a Igreja preserva a possibilidade de vir a ser a condutora da espiritualidade humana nos novos tempos que despontam.