ANTES DO BIG BANG

 

Rubi Rodrigues[1]

 RESUMO

 A ciência moderna, em face da demarcação científica vigente, somente consegue pensar a partir do big bang, quando espaço e tempo surgiram. A Metafísica não sofre dessas limitações e pode-nos sugerir como se formaram as condições que potencializaram a grande explosão. A Ciência fala-nos das primeiras frações de segundo do Universo, e a Metafísica tenta, neste artigo, lógica e racionalmente, dizer-nos o que aconteceu antes do próprio tempo surgir.

 Desenvolvimento

O limitado é a síntese do ilimitado e do limitante.

Jônatas GG Rodrigues

 

No princípio, muito antes de espaço e tempo surgirem, em plano de puras possibilidades, havia apenas silêncio, quietude e mais nada. Mas, estando hoje, eu, aqui, a questionar, convicto de que fui criado, é necessário reconhecer que, apesar das aparências, naquela ocasião, havia algo sim. Havia algo, porque, em qualquer dos casos, havendo ou não havendo, o resultado seria absoluto, tendo em vista que não havia algo a mais, capaz de lhe impor limites. Portanto, dado que aquela quietude inicial foi quebrada, conforme comprova a minha presença, e que um nada absoluto nada pode gerar – não pode ser fonte de uma positividade –, cumpre reconhecer que havia um ser e que esse ser era ilimitado, incriado e, portanto, absoluto. No princípio de todos os universos que, virtualmente, já podem ter vindo a existir e ter deixado de existir, caso este não seja o primeiro, já havia, portanto, desde sempre, um ser absoluto e ilimitado.

Ser implica comprometimento com a natureza segundo a qual se é, e ser absoluto envolve comprometimento com a natureza absoluta. Nós que discursamos somos seres relativos, isto é, somos comprometidos com uma natureza de caráter limitado, sendo, portanto, desprovidos de recursos cognitivos capazes de contemplar, objetivamente, qualquer natureza absoluta. Podemos, porém, indicar, indiretamente, a natureza do absoluto, mediante uma metáfora ou mediante o uso de um elemento limitado, como referente ou contraponto. Assim, enquanto seres limitados, temos compreensão do que seja existir, sendo essa compreensão que nos vem à mente quando afirmamos que o ser absoluto existe, embora estejamos conscientes de que, realmente, desconhecemos o que seja existir em termos absolutos. Com isso, afirma-se que estamos produzindo interpretação limitada do absoluto, usando recursos relativos que não correspondem exatamente à natureza absoluta, mas que, apesar disso, trata-se de discurso adequado, de vez que destinado à comunicação entre seres limitados, incapazes de produzir e entender um discurso absoluto, mesmo que ele fosse possível.

O que se pode, então, nessas condições, dizer sobre a natureza do ser absoluto? Pode ser dito que se trata de um ser da mais absoluta indeterminação, uma vez que os seres relativos são todos, sem exceção, precisamente determinados. Pode ser dito que se trata de um ser eterno, uma vez que se situa fora do tempo que apenas passou a existir com o big bang. Pode ser dito que se trata de um ser que não ocupa um lugar no espaço, dado que o espaço, também, foi criado junto com o tempo e que o ser absoluto sempre existiu. Pode ser dito que se trata de um ser adimensional, uma vez que comporta atributos absolutos e, também, porque os seres relativos todos possuem amplitude, sendo, portanto, dimensionais. Pode ser dito que o ser absoluto é um, indivisível e único, de vez que dois absolutos configuram uma impossibilidade. Pode ser dito que se trata de um ser da mais absoluta imobilidade, de vez que o movimento implica determinação. Pode ser dito que o ser absoluto constitui um ser de pura potência, uma vez que realizar implica movimento e, também, determinação. Pode, ainda, ser dito que o ser absoluto possui potência em grau absoluto, de vez que é ilimitado, isto é, nada lhe impõe limites.

Tratando-se de um ser de potência absoluta, pergunta-se: poderia deixar de, efetivamente, realizar suas potencialidades latentes e permanecer como mera potencialidade? Ou realizar constitui um fato inescapável à condição de absoluta potência? Qualquer que seja a resposta aqui cabível, o fato de a criação do mundo ter ocorrido supera a questão e coloca a próxima que é descobrir como isso se deu.

Não sendo da natureza do ser absoluto mover-se, resta-lhe, para criar, a alternativa de emanar sem se modificar. A emanação do ser absoluto somente pode comportar a sua própria natureza, de sorte que a primeira e todas as demais emanações constituem seres de mesma natureza do ser absoluto. Dado, porém, que o ser absoluto, em face da sua natureza, é absolutamente estático e que criar implica movimento e, tendo, também, em conta que os estados “estático” e “em movimento” são estados discretos e, portanto, descontínuos, é imperativo compreender que toda emanação do absoluto configura transcendência entre duas instâncias de naturezas distintas: a primeira, absolutamente estática e a segunda, universalmente dinâmica. Por outro lado, nenhuma emanação do ser absoluto pode produzir duplicação do ser absoluto, tanto porque a convivência de dois ou mais absolutos configura uma impossibilidade, como pelo fato de “movimento” implicar limitação e determinação. Constituindo a origem da emanação um ser unitário absolutamente indeterminado, o que emerge em movimento é, também, um ser unitário, no entanto, precisamente determinado, em face do movimento e da limitação que recebeu. Sendo o ser absoluto estático e desprovido de dimensão, a primeira emanação ocorrida consistiu, naturalmente, também, em um ser adimensional, imbuído de um impulso ou um ímpeto de ser que lhe imprime movimento. Esse ser que transcendeu o fez, executando um movimento do tipo configurador de uma reta ideal. Esse primeiro ser emergente e determinado que se manifestou, necessariamente, em permanente e ininterrupto movimento, em face da natureza do ser absoluto que lhe deu origem, configura-se, além de adimensional, também, unitário e indivisível. Daí, ser evidente que seu movimento abre uma amplitude unidimensional em um âmbito de natureza relativa, distinta daquela vigente no âmbito do absoluto. Essa amplitude unidimensional que serve de receptáculo para o ser no plano de existência relativa, também, limita-o, determina-o e, com isso, habilita-o para conviver, harmonicamente, com o ser absoluto, posto que a sua existência está confinada a uma instância relativa, separada do plano absoluto por meio de uma transcendência. Há, nitidamente, um compromisso entre a amplitude unidimensional gerada pelo ser em movimento e o padrão de movimento executado pelo ser. A amplitude unidimensional apenas admite um movimento retilíneo no qual podem ocorrer três momentos distintos: no primeiro momento, o movimento surge; no segundo momento, o movimento permanece enquanto tal; e, no terceiro momento, o movimento cessa. Em uma amplitude de uma única dimensão, nenhum outro movimento é possível, além do de surgir, persistir e cessar.

Podemos inferir que a primeira emanação gerou um ser solitário que transcendeu, estendeu seu movimento por algum tempo e, depois, retornou à imobilidade, porque não conseguiu manter-se no plano relativo, dado que uma manifestação unidimensional isolada não possui recursos que lhe permitam ancorar-se e estabilizar-se no plano relativo. (RODRIGUES; RODRIGUES, 2012). Na sequência ontológica, podemos também inferir que, em algum “momento”, ocorreram duas emanações simultâneas e que esse fato expandiu a amplitude disponível no plano relativo para movimentos, tornando-o capaz de recepcionar infinitos seres. Podemos compreender, geometricamente, essa expansão como passagem da reta unidimensional para o plano bidimensional. O advento do plano não se limita, porém, a expandir a amplitude de um para infinito de primeiro grau, mas disponibiliza, igualmente, propriedades que são próprias da bidimensionalidade e que não estavam presentes quando a dimensão era unitária. Entre os dois seres inaugurais em simultânea presença, surgem tensões que sofrem variações, conforme os movimentos de cada um deles também apresentem variações. Essas tensões estabelecem relações que se tornam cada vez mais complexas, à medida que a quantidade de seres em emanação simultânea amplia-se. Nessa fase, começa a aparecer a potencialidade estrutural mais nobre da segunda dimensão que é manter registro das experiências que vão se sucedendo, de modo que o ser seja instrumentalizado com essa experiência e não precise reiniciar sempre do começo. Com esse registro, apropriado à segunda dimensão, começa a se formar o que mais adiante será reconhecido como alma do mundo ou campo Akáshico do Universo – doravante campo A. (LAZLO, 2008). De alguma forma, ainda não bem compreendida, possivelmente similar aos conhecidos registros holográficos, as soluções organizativas experimentadas pelas emanações bem como as tensões e relações bem e mal sucedidas entre elas ganham registro no campo A e são preservadas na condição de inteligência organizativa. A presença de tensões entre as emanações evidencia que os seres em movimento configuram-se como pontos de energia emergentes no plano relativo e, em conjunto, criam o oceano de energias pululantes e instáveis que, hoje, conhecemos por mundo quântico e, assim, fica estabelecido o primeiro plano da complexidade universal, o qual indicamos por PC1.

Nesse oceano energético, quântico e caótico, em face do ímpeto de ser de cada uma das emanações, acaba acontecendo o inevitável: de repente, certa quantidade de emanações configura um inédito arranjo organizacional que as retira, intempestivamente, do plano quântico, mediante um salto transcendental. Esse salto transcendental não se dá no sentido da imobilidade original, mas no sentido contrário, indicado pelo ímpeto de ser e pelo movimento comum. Essa transcendência faz surgir PC2 e, em PC2, uma presença inaugural, ficando configurado um novo plano de complexidade. PC2 é o plano das partículas atômicas, e o ser emergente é uma das partículas atômicas conhecidas, talvez um elétron. Essa partícula subsume um novo ser emergente, e o conjunto revela-se estável no plano relativo, algo que não era possível no plano quântico. Isso significa que o ser-partícula emergente foi constituído pelos seres-energia quânticos que transcenderam ao experimentar o novo arranjo organizacional. Significa, igualmente, que a nova presença em PC2 constitui um ente, o primeiro ente a ganhar assento estável no plano da existência relativa. Este ente é uma unidade fenomênica constituída de partes, sendo, portanto, uma unidade na forma da multiplicidade.     As emanações quânticas conseguiam configurar apenas a amplitude bidimensional, de sorte que transcendência em sentido contrário à sua origem implica desdobrar, no mínimo, uma dimensão a mais: a terceira dimensão. De fato, porém, o advento de uma partícula atômica estável exigiu mais, exigiu desdobrar simultaneamente, além da terceira e da quarta dimensão, uma instância de totalidade que, transcendendo a natureza própria das emanações quânticas, tornasse real a natureza própria de PC2: a natureza própria das partículas atômicas. O novo ser-partícula somente poderia constituir-se estável, em PC2, como unidade fenomênica individual e, para tanto, impunha-se que, para além das partes, constituísse uma totalidade, perfeitamente determinada pelo seu ser e pela inteligência organizativa que articulara as energias na forma da partícula atômica que o conjunto assumira. Esse arranjo, ao desdobrar a terceira dimensão, conferiu ao conjunto que transcendia a compleição que, hoje, conhecemos por materialidade e que possui, dentre as suas propriedades notáveis, o caráter da estabilidade organizativa. Essa estabilidade, por seu turno, exigiu amplitude temporal para poder persistir; daí, o desdobramento da quarta dimensão, uma vez que as três anteriores eram completamente usadas para estabelecer a materialidade da partícula. Com isso, o primeiro ente completo estabeleceu-se no plano relativo e sua compleição contemplava uma instância de totalidade, além das quatro instâncias dimensionais de base que lhe forneciam a amplitude necessária para viabilizar a complexidade exigida e realizada pelos seus elementos constitutivos. O advento desse primeiro ente naturalmente ficou registrado, no campo A, de duas formas: de um lado, como registro do arranjo assumido pelas energias quânticas para viabilizar a partícula, configura a inteligência organizativa específica da partícula, um registro que Platão já tinha identificado e lhe conferido o nome de forma em si e que, agora, fica plenamente especificada; de outro lado, como registro das limitações sucessivas impostas, a manifestação de um ser, originalmente absoluto e livre de qualquer limitação.

Na primeira dimensão, impondo-lhe determinação, o ser em movimento é um ser determinado. Na segunda dimensão, impondo-lhe certa inteligência organizativa específica que define o espaço de possibilidades de realização do virtual ente que esse ser potencializa. Na terceira dimensão, conferindo-lhe limitação espacial e material, ainda que se trate do primeiro ente no qual o espaço não ultrapassa o âmbito da sua materialidade. Na quarta dimensão, impondo-lhe limitação temporal, dado que a organização material assumida está sujeita à entropia. Finalmente, na instância de totalidade, impondo-lhe limitação fenomênica, de sorte que se destaque como individualidade em meio à multiplicidade e também manifeste a natureza própria de PC2. Em conjunto, essa estrutura de crescente amplitude configura a estrutura limitante do ser e, simultaneamente, a estrutura constituinte do ente que designamos de logos normativo, que Pitágoras designou de dédaca sagrada, que Platão designou de princípios primeiros e que, em resumo, configura a inteligência criativa, segundo a qual todos os fenômenos do universo passam a fazer parte da existência relativa e, sem observância da qual, nada pode passar a existir neste ou em qualquer universo criado a partir de um absoluto.

Tendo o campo A registrado que o ímpeto de ser configurava um impulso no sentido da complexidade crescente e que a inteligência criativa configurava um modelo gerativo de fenômenos capaz de levar o ser de transcendência em transcendência para estágios imponderáveis e, virtualmente, ilimitados de complexidade, cada estágio configurando uma dada inteligência organizativa, mesmo sem a presença de uma consciência operativa como, hoje, conhecemos, podemos inferir que as partículas atômicas proliferaram e se diversificaram, gerando novas tensões e relações crescentemente complexas, gerando os átomos mais simples e, assim, montando o palco da grande explosão que fez surgir o universo que habitamos.

Pode ser que, na primeira tentativa, o resultado tenha sido uma única estrela gigantesca que revelou propriedades interessantes ao campo A, mas que, também, revelou-se um beco sem saída evolutiva, de modo que tenha sido necessário esperar a entropia realizar o seu trabalho até o retorno da condição anterior ao big bang. De qualquer forma, para a geração deste universo, as energias primordiais tiveram de ser distribuídas convenientemente, de forma que a grande explosão gerasse as estrelas e as galáxias na compleição distribuída que, hoje, constatamos. O resto é de domínio da ciência.

Encerramento

O homem, como um dos estágios evolutivos do ser, possui o privilégio de contar com uma consciência. Essa consciência que constitui a totalidade fenomênica, na espécie humana, potencializa que pensemos e compreendamos tanto a inteligência organizativa como a inteligência criativa movimentada pelo ser na constituição do universo. O processo de evolução do ser, no sentido de crescente complexidade, gerou estrelas e galáxias convenientemente distribuídas, segundo o interesse geral de disponibilizar ambiente favorável à continuidade do processo evolutivo. As estrelas constituem fornalhas cósmicas em cujo interior condições extremas de temperatura e pressão possibilitam o surgimento dos átomos mais pesados que, posteriormente, são expelidos, mas que poderão continuar orbitando na forma de planetas. As distâncias entre as estrelas geram o espaço, mas geram, também, condições extremas de frio que, contrapondo-se às elevadas temperaturas das estrelas, completam um ambiente cheio de potencialidades. Desde o começo, a cada novo patamar de complexidade conquistado, as possibilidades evolutivas expandiram-se. O átomo de hidrogênio possui como horizonte de possibilidades gerar uma explosão nuclear, algo sequer imaginável para partículas atômicas. Da mesma forma, uma molécula de água abre um horizonte de possibilidades tampouco imaginável para os átomos que a compõe. Assim, cada instância natural de complexidade conquistada pelo ser configura, realmente, um salto transcendental, não apenas em termos de engenharia organizacional, mas também em termos de aperfeiçoamento fenomênico do ser. Com a espécie humana, o ser conquista uma consciência capaz de pensar a inteligência movimentada, por ele mesmo, na construção do universo. O que é que isso potencializa como horizonte evolutivo para o ser? O que isso coloca como entendimento e lucidez para o homem e para a espécie humana? Quais as mudanças de entendimento que se impõem a respeito do que somos, da onde viemos e para onde vamos?

Há, nas entrelinhas da história cósmica relatada, a indelével presença das leis, do movimento – lógica –, da amplitude – geometria – e da quantidade – matemática –, atuando na configuração e na indicação dos caminhos alternativos disponíveis para a evolução. Os gregos clássicos já sabiam disso quando afirmavam que os deuses não tinham liberdade absoluta, pois tinham de obedecer às leis da matemática e da geometria. Platão o indicou, afirmando que a criação, necessariamente, precisava ser bela e boa, isto é, ter a justa medida. Portanto, embora o homem ainda possa ter muitas dúvidas sobre como se posicionar no mundo, resgatar o ser que dormita no interior de cada um e sintonizar a natureza, produzindo obras boas e belas, podem constituir um caminho promissor.

 Brasília, julho de 2013.

 

REFERÊNCIAS

LASZLO, Ervin. A ciência do campo Akáshico: uma teoria integral de tudo. Tradução de Aleph Teruya Eichemberg e Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2008, 191 p.

RODRIGUES, Rubi G.; RODRIGUES, Jonatas Gustavo. Inteligência organizativa: uma discussão entre a parte e o todo, 2012b, Redes: Revista Capixaba de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória, ES, 2o sem. 2012. Disponível, também, em: <http://segundasfilosoficas.org/inteligencia-organizativa-uma-discussao-entre-a-parte-e-o-todo/>. Acesso em: 17 jul. 2013.



[1] Filósofo e escritor, pesquisador em Teoria do Conhecimento. MM G.33. Presidente da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal (AMLDF). Idealizador e coordenador do projeto Segundas Filosóficas (www.segundasfilosoficas.org).

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