A PARTICIPAÇÃO DO UNO NO SER E A PARTICIPAÇÃO DO SER NO ENTE – PARTICIPATION OF ONE IN BEING AND PARTICIPATION OF BEING IN ENTITY

Rubi Rodrigues[1]

UniCEUB – Brasília – Brasil

RESUMO

A tentativa de entender a solução platônica de participação, exigida pela sua teoria das ideias, levou-nos ao diálogo Parmênides, que discute o problema sem apresentar solução. No texto, descobrimos uma camuflada remessa aos gêneros do Sofista e descobrimos que, também, ali, discute-se a participação, apenas com outro nome: mescla. Ao examinar como se dá a mescla dos gêneros, tendo em mente o sentido de participação, descobrimos que os cinco gêneros configuram uma sequência cumulativa que, examinada à luz do que Platão afirma sobre sequências, na Carta VII e na República, resulta evidente a presença velada e subjacente não de uma mera sequência cumulativa, mas, sim, de uma estrutura gerativa, que revelou ser a referência não explicitada, a qual Platão utilizou na construção do diálogo. Examinando o texto, com base nessa referência, torna-se evidente que a principal função do diálogo era exercitar os alunos na percepção e na operação das diferenças ontológicas exigidas para a devida compreensão da sua teoria das ideias. A explicitação da estrutura gerativa permite, porém, deduzir como a participação pode dar-se, restando claro que esse não foi o seu propósito.

Palavras-chave: Platão. Teoria das ideias. Participação. Parmênides. Metafísica. Ontologia.

ABSTRACT

Attempting to understand Platonic solution of participation, required by Plato’s Theory of Forms, we were conducted to Parmenides dialogue, where he discusses the problem without presenting any solution. In the text, we found out a masked reference to Sophist’s genres, and we also found out that participation is discussed therein, although with other name: blending. By examining how blending of genres occurs, and keeping the sense of participation in mind, we discovered that the five genres constitute a cumulative sequence, which, examined under Plato’s statement about sequences, in Seventh Letter and in The Republic, makes it evident that the veiled and underlying presence, not of a simple cumulative sequence, but rather a generative structure, which revealed itself to be the non-explicit reference, used by Plato used in construction of the dialogue. By examining the text, based on this reference, it becomes clear that the main dialogue function was to exercise students in the perception and operation of ontological differences demanded for a proper comprehension of his theory of forms. Explanation of generative structure allows, however, to deduct how participation can occur, being clear that this was not his purpose.

Keywords: Plato. Theory of Forms. Participation. Parmenides. Metaphysics. Ontology.

[1] Rubi Rodrigues é economista, pesquisador em Metafísica, escritor e membro da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal

A PARTICIPAÇÃO DO UNO NO SER E A PARTICIPAÇÃO DO SER NO ENTE

INTRODUÇÃO

Platão dedica o diálogo Parmênides, formalmente, para discutir o problema da participação, suscitado pela sua teoria das ideias. Segundo essa teoria, a forma determina ou molda tudo o que existe, configurando cada ente ou fenômeno particular naquilo que é. Em consequência, de algum modo, a forma participa das singularidades, restando necessário, para a devida compreensão da teoria, o esclarecimento do modo segundo o qual essa participação se dá.

O diálogo Parmênides destaca-se dos demais por contemplar uma abordagem analítica que esgota as alternativas, sem conflitar nem com o estilo dialógico da construção nem com o caráter aporético da discussão. A abordagem analítica, ao contrário de aportar dificuldades, amplia as possibilidades comunicativas do diálogo e a própria possibilidade de sucesso dos alunos, diante do habitual desafio platônico para que elaborem entendimento próprio, a partir das comedidas e, por vezes, simuladas ou alegóricas indicações que ele disponibiliza no texto. Naturalmente, diante do caráter simultaneamente analítico e aporético do discurso, para não ser prescritivo, Platão vê-se diante da necessidade de apresentar e, também, camuflar a solução cabível em cada caso. Faz isso, porém, com maestria, tanto assim que o diálogo continua sendo considerado, virtualmente, o de mais difícil compreensão.

Quanto ao conteúdo da discussão, conforme percebido por J. RODRIGUES (2015), Platão desenvolve o diálogo em duas partes, correspondentes às seguintes duas questões: como a forma participa dos particulares e como o uno participa do ser. Para tanto, o personagem Parmênides propõe, como estratégia geral, considerar tanto o caso de uma coisa particular existir como o caso de ela não existir e, nos dois casos, inquirir sobre quais sejam as consequências (Pl. Prm. 136a). Não nos deve escapar, nessa estratégia, o fato de ela colocar a existência como ponto de partida da análise.

Como casos aos quais se aplica a estratégia mencionada em 136a, Parmênides relaciona, expressamente, além do uno e do múltiplo, o semelhante e o dessemelhante, o movimento e o repouso, a geração e a destruição e, ainda, o próprio ser e o não ser (136a7-b9). Esses casos remetem, claramente, aos gêneros supremos catalogados no Sofista, embora isso não seja mencionado no Parmênides e Platão varie as palavras usadas para designá-los. Ao se comparar as duas séries, verifica-se que o semelhante e o dessemelhante do Parmênides, em alguma medida, correspondem ao idêntico e ao diferente que constam do Sofista. Também, geração e destruição, em princípio, poderiam ser assimilados a movimento do Sofista, embora movimento seja colocado de par com o repouso, no Parmênides. Dado que Platão não estende a aplicação do método a conceitos outros além destes, resta entender que ele deve ser aplicado apenas, em primeira instância, ou, sobretudo, aos mencionados. Daí, entendermos que os gêneros estão, subliminarmente, presentes no raciocínio que o personagem Parmênides desenvolve ao analisar a questão da participação, o que, a nosso ver, precisa ser considerado para que o diálogo seja interpretado de modo correto.

MESCLA E PARTICIPAÇÃO: A INDICAÇÃO DE UMA ESTRUTURA CUMULATIVA

No Sofista, os gêneros são analisados – cada um em relação aos demais – quanto à possibilidade ou não de se mesclarem, isto é, de cada gênero participar e ser participado pelos demais. Em 259b do Sofista, Platão afirma textualmente que “o ser […] participa do diferente”, o que iguala os conceitos mescla e participação ou, no mínimo, significa que a mescla se dá por participação ou implica participação. Isso, por sua vez, implica, necessariamente, que os gêneros configurem ou indiquem uma estrutura cumulativa, pois participar significa adesão e, também, acumulação. Essa estrutura cumulativa resulta evidente no exemplo do não ser, que o Estrangeiro menciona no Sofista e que, na verdade, trata-se do outro do ser, que é por que o ser também participa do diferente (Sph. 257b e 258b)[1]. Dado que o ser participa tanto do idêntico quanto do diferente, todo o outro do ser em questão pode, em certo sentido, ser considerado não ser dele. Daí, também, repouso e movimento serem participados pelo ser, pelo idêntico e pelo diferente (Sph. 256a–257a). Dado que, inversamente, repouso e movimento não participam nem do idêntico nem do diferente (Sph. 255a4-5) e, obviamente, tampouco do ser, resulta evidente que estamos diante de uma estrutura cumulativa, em que cada gênero participa – soma-se – aos posteriores, mas estes não participam dos precedentes, apenas dos subsequentes.

MAIS DO QUE UMA ESTRUTURA CUMULATIVA

Ao darmo-nos conta de que se trata de uma estrutura cumulativa e se considera os gêneros nessa perspectiva, os cinco gêneros adquirem nova significação, pois, considerando as participações declaradas no texto e a especificidade de cada um, resulta uma estrutura que começa com o idêntico e culmina no ser, passando, de modo natural, pelo diferente, pelo repouso e pelo movimento. Dispondo graficamente os gêneros, lado a lado, nessa ordem, percebe-se ainda mais:

Figura 1A

Figura 1

Não é fácil perceber uma estrutura cumulativa que culmina, na quinta posição, no ser. Nessa posição, alhures, na Carta VII, Platão coloca aquilo que é em si cognoscível e verdadeiramente é (342b), isto é, aquilo que verdadeiramente existe. Ora, então, não se trata apenas de uma estrutura cumulativa, mas, sim, de uma estrutura gerativa, cuja última instância contempla o ser que existe em ato? Nesse caso, Platão, com os gêneros, estar-se-á referindo a uma estrutura gerativa objetiva que indica como a existência se estabelece em ato? Talvez, então, a inclusão de geração e destruição no grupo de casos faça sentido – como se verá na Figura 4. Observe-se que, nesse caso, o problema da participação – seja participação da forma nos particulares, seja participação do uno no ser – torna-se, ainda, mais dramático e relevante por visar a esclarecer o modo segundo o qual a edificação da existência se dá.[1]

Sabemos que Platão acolheu os princípios primeiros de Pitágoras – o ilimitado e o limitante – (Phlb. 16c11-13) e que, também, estava à sua disposição, na época, a estrutura gerativa representada pela década sagrada, também de Pitágoras, que possui representação geométrica, posicionando-se dez seixos em um triângulo equilátero, bem como outra, na forma de uma equação algébrica elementar: [1 + 2 + 3 + 4 = 10] (SANTOS, 2000). Essa equação, nitidamente, indica que a acumulação, isto é, a soma dos quatro primeiros termos, produz uma totalidade, e a exegese moderna tem reconhecido que os números da década não constituem meros números quantitativos que possam ser operados entre si, mas, sim, números especiais (SZLEZÁK, 2015), os quais nós mesmos defendemos, em outro trabalho (RODRIGUES, 2016), tratarem-se não de números cardinais, mas de números ordinais, tal como são apresentados, por Platão, na Carta VII.

Juntando-se os números da década sagrada com os gêneros do Sofista e com os conteúdos que Platão vincula aos ordinais na Carta VII, obtém-se a seguinte correspondência:

Figura 2A

Figura 2

Certamente, é possível identificar alguma relação entre o [1] e o nome, porque cabe nome apenas a unidades fenomênicas; entre [2] e diferente, porque é preciso, no mínimo, dois para estabelecer diferenças; entre repouso e imagem, porque imagem é sempre de uma forma estabilizada de matéria; entre movimento e saber, porque o conhecimento apenas se torna possível em face do movimento; e, ainda, entre o [10] – enquanto todo – e o que é, dado que a existência em ato apenas se realiza como totalidade; apesar disso, no geral, as correspondências identificadas não tornam a suposta estrutura gerativa mais evidente do que já estava.

Vejamos, então, o que acontece, caso a essa junção acrescenta-se o que Platão fala sobre a composição da realidade, na República, ao discutir as ciências necessárias para uma educação adequada:

– Depois da superfície, pegamos nos sólidos em movimento [que é definido em 527d como sendo a astronomia], antes de nos ocuparmos deles em si. Ora o que está certo é que, após a segunda dimensão, se trata da terceira, que é a dos cubos e a que possui profundidade.

– É isso, mas tal ciência parece que ainda não foi descoberta. (ROCHA PEREIRA, 1972. Pl. R. 528b).

Figura 3A

Figura 3

Agora, sim, juntando-se o que Platão declara na República, insinua-se claramente uma estrutura gerativa, na qual os quatro primeiros números da década são assimilados a quatro amplitudes dimensionais respectivas, com perfeito acolhimento dos conteúdos tanto do Sofista como da Carta VII. Penso que uma hipótese defendendo que a realidade se edifique em quatro dimensões, sequencialmente desdobradas, encontra acolhida perfeita na moderna Física de Einstein, embora ele tenha definido o tempo como sendo o quarto número e, não, como sendo a quarta dimensão, por entender que a realidade estava contida em instância espaço-temporal única, o que lhe dispensava dessa distinção.

De qualquer forma, parece claro que Platão tinha em mente um modelo gerativo que explicaria o advento da existência em ato, a partir de uma unidade irredutível, indicada pelo nome e pela unidade quantitativa, e cuja totalidade, indicada pelo ser, constituiria uma totalidade unitária, composta de partes[1], completando, assim, o modelo de forma coerente e elegante. Curiosamente, porém, apesar de esse modelo estar disponível e ter sido utilizado por Platão, como referência, sempre que o pensamento teve de ser elevado às instâncias divinas, em nenhum lugar dos textos, ele descreve e explicita esse modelo, atendo-se às explicações e às conclusões decorrentes de sua aplicação.

UM REFERENCIAL DISSIMULADO

Deixando de lado as razões dessa omissão – amplamente discutidas desde a Escola de Tübingen –, parece restar claro que Platão levava a sério a sua convicção de que o ensino de filosofia não deveria ser prescritivo, mas, sim, provocativo e estimulante, de sorte que, apenas com alguma orientação e suficiente dedicação, o aluno construísse interpretação própria. Nesse sentido, convém juntar aos dados da figura anterior os casos indicados no Parmênides, aos quais se aplica o método citado em Prm.136a e que nos remeteram aos gêneros do Sofista, pois isso, como se verá adiante, revela-nos mais alguma informação relevante para o perfeito entendimento do texto.

Figura 4A

Figura 4

Observe-se que, dos dez casos arrolados, oito deles podem ser enquadrados no esquema sem muita dificuldade, ficando de fora o ser e o não ser, os quais, segundo entendemos, precisam ser considerados em sentido absoluto – de existência e de não existência –, que lhes dá Parmênides em seu poema, pois seria contraditório que um diálogo de Platão, com esse nome e com esse personagem, usasse ser e não ser em sentido relativo, tal como o Estrangeiro o faz no Sofista. Ora, sabe-se que o ser e o não ser de Parmênides servem para restringir o âmbito das considerações razoáveis e consequentes ao plano da existência, que, nesse sentido, delimita o âmbito de considerações objetivado por homens sensatos. Ora, considerando que Pitágoras e Platão eram homens sensatos, podemos inferir que os dois princípios admitidos por eles – o ilimitado e o limitante – diziam respeito à existência e se limitavam à existência, ainda que, em consequência, revele-se uma existência que manifesta duas naturezas distintas, virtualmente como potência e ato, tal como sugerido por Aristóteles.

De qualquer forma, tendo-se ilimitado e limitante em mente, resulta claro que a década objetiva apenas o limitado e não se aplica ao ilimitado. Este, indicado por Platão, ora por Uno, que não é ser, ora por Bem em si, ora por Belo em si, e aquele, indicado como ser. Com isso, compreende-se que Platão tinha em mente ou adotava um referencial conceitual, não claramente explicitado, que contemplava a existência em toda a sua extensão e que essa referência separava o absoluto do relativo e, além disso, especificava o relativo, dividindo-o em cinco instâncias cumulativas, ordenadas do modo como sugere a descrição algébrica da década sagrada.

Observe-se que, além de não especificar esse referencial e não alertar que os casos contemplam os gêneros – o que, certamente, facilitaria o entendimento do Parmênides –, Platão ainda não usa sempre as mesmas palavras para indicar as mesmas coisas e, além disso, muda de referência sem avisar o leitor. Quando fala em uno e múltiplo, por exemplo, tanto pode estar-se referindo ao absoluto e ao relativo como estar-se referindo ao [1] e ao [10], dado que o nome, também, é uno. Quando está-se referindo ao uno e ao ser, tanto pode estar-se referindo ao absoluto e ao relativo como ao Uno e ao [10] ou, ainda, ao Uno e ao [1]. Quando fala em movimento, tanto pode estar-se referindo ao relativo como um todo, dado que a existência relativa somente realiza-se como movimento existencial, bem como ao [3] – movimento espacial – ou, ainda, ao [4] – movimento temporal. Tratando-se de Platão, fica completamente afastada a hipótese de que se trate de erro de construção do arrazoado; logo, a explicação deve ser outra, de caráter intencional.

O caso mais “grave” de tais “erros” parece ser a colocação simultânea do ser e do idêntico entre os cinco principais gêneros catalogados no Sofista, posto que isso implica o deslocamento do ser para a quinta posição. Explico: o idêntico trata da identidade que se efetiva como nome, sempre atribuído a um ser, indicando e identificando esse ser. Na Carta VII, Platão, textualmente, afirma que o 1 é o nome, por isso, ao justapor-se os gêneros aos números da década, enquadrou-se o idêntico na posição [1][1]. Dado que diferente, repouso e movimento apenas podem ser enquadrados nas posições [2], [3] e [4], respectivamente, resulta imperativo situar, então, o ser na posição [5]. Ocorre que, tratando-se de uma estrutura gerativa, a posição [5] corresponde à totalidade e, portanto, ao existente em ato. No caso humano, esse existente em ato corresponde ao ente contingente em sua totalidade, a qual se modifica com o tempo, sendo nitidamente uma, na infância; outra, na juventude; e outra, na velhice. Daí, o nome não ser atribuído ao ente, mas ao ser, que permanece sempre o mesmo durante todo o ciclo da vida. Além disso, Platão mesmo afirma – ao considerar de que forma se dá a mescla dos gêneros – que o ser é o único que participa de todos os demais gêneros, sendo, no entanto, apenas ele mesmo (Sph. 259 a6-7 e b1-4). Com isso, verifica-se que a única posição que, verdadeiramente, cabe ao ser, em uma estrutura gerativa, é a primeira.

Também os esforços de definição e de caracterização do ser como pura potência, em Prm. 247e4-5, como possuindo inteligência, vida e alma, sendo, ainda, animado e tanto móvel como imóvel, em Prm. 247a, e como não estando nem em repouso nem em movimento, em Prm.250c7-9, conferem ao ser uma posição inferior a [3] na estrutura. Na posição [2], situa-se, necessariamente, o não ser relativo que não é o oposto do ser, mas apenas o diferente dele (Prm.258b) e que, também, é participado pelo ser. Logo, também em face desses atributos, o ser apenas pode ser colocado na posição [1].

O gênero idêntico, porém, revela-se extremamente útil para a argumentação, pois se coloca como contraponto do diferente, tal como o repouso se coloca como contraponto do movimento e não poderia ocupar posição distinta da primeira, uma vez que aponta o ser. Da mesma forma, ao menos no caso humano, a expressão ser humano costuma ser usada para designar a totalidade humana, tanto assim que não se usa a expressão ente humano para designar essa totalidade. Assim, também existem justificativas para colocar o ser na quinta posição, sem tornar a manobra excessivamente evidente. Embora isso comprometa o rigor da abordagem, cabe lembrar que Platão, formalmente, não afirma que a posição do ser seja a quinta, apenas induz os desavisados, como nós, a fazê-lo.

O conjunto dos gêneros contempla, ainda, outro problema. Se estivermos certos ao considerar que o referencial de Platão se assenta sobre uma estrutura gerativa responsável pela instituição de existentes – entes e fenômenos – no mundo, na forma de totalidades, tal estrutura deve contemplar objetividades, uma vez que se trata de constituir, instituir e instalar, na existência, entes e fenômenos objetivos. Entretanto, dos cinco gêneros indicados, apenas o ser pode ser considerado, visando à objetividade, sendo os demais ou atributos do ser, no caso de repouso e de movimento, ou subjetividades relativas ao ser, no caso de idêntico e de diferente. Essa mesma mistura de elementos objetivos e subjetivos também repete-se na Carta VII, com os conteúdos referentes aos numerais, em que apenas “o que é” tem caráter objetivo. Isso parece indicar que Platão e/ou a própria cultura da época não consideravam importante fazer essa distinção que, modernamente, tanto valorizamos e sem a qual nos confundimos.

É possível que, na base desse trânsito desavisado entre as instâncias objetiva e subjetiva, resida a sentença de Parmênides, afirmando que ser e pensar são o mesmo, e, em adição, o fato de os conceitos usados na indicação dos gêneros, sendo pertinentes aos conteúdos objetivos das instâncias, também refletirem a participação cumulativa que a estrutura gerativa objetiva, como tal, contempla. Com isso, a análise e a determinação de como os gêneros mesclam-se ou não podem ser realizadas com base nos conceitos e revelar, de modo equivalente, o caráter cumulativo do conjunto. Naturalmente, se, em lugar de gêneros indicativos de atributos, fossem usados conceitos indicativos dos conteúdos objetivos da estrutura, o caráter gerativo da estrutura seria demonstrado de forma cabal e contundente, mas esse parece não ter sido o objetivo de Platão, nem no Sofista nem no Parmênides. Aliás, em nenhum dos diálogos, dado que, em todos, ele camufla o referencial que lhe serve de guia.

O caráter objetivo da filosofia de Platão e, por isso, a sua classificação na condição de metafísica, que tem por objeto uma forma única, capaz de instituir a realidade em toda sua extensão, fica evidente na caracterização do filósofo, realizada no Sofista:

Estrangeiro: Não diremos que a divisão das coisas por gêneros ou classes e o não pensar que a mesma espécie é uma espécie diferente ou que uma espécie diferente é a mesma pertencem à ciência da dialética? (Sph. 253d).

Teeteto: Sim, diremos.

Estrangeiro: Então, aquele que é capaz de executar tal coisa tem uma clara percepção de uma forma ou ideia que se estende completamente através de muitos indivíduos, cada um dos quais se mantendo independente dos outros, e de muitas formas que diferem entre si, mas que estão incluídas numa forma maior, e também de uma única forma expandida pela união de muitos todos, e de muitas formas completamente separadas e independentes. Aqui temos o conhecimento e a capacidade para distinguir mediante gêneros como coisas individuais podem ou não podem ser associadas entre si. (Sph. 253d6-e4).

Dessa forma, pensamos ter reunido condições para propor a tese de que o principal propósito de Platão, no Parmênides, a par de estabelecer pilares de sustentação para a sua teoria das ideias – com a faculdade de participação inerente a alguns gêneros e com o caráter cumulativo do conjunto de gêneros, abrindo espaço para afirmar que a totalidade seja definida por uma forma –, não é exatamente esclarecer o problema da participação, mas levar os alunos a perceber e a operar as diferenças ontológicas que separam os gêneros, na esperança de que isso os leve, também, à percepção e à operação dos correspondentes objetivos dos gêneros que se somam na edificação ontológica da existência em ato e sem o qual o domínio da dialética não se pode efetivar, e, consequentemente, o filósofo pode surgir.

A ESTRUTURA GERATIVA E SEU PODER ESCLARECEDOR

Essa tese pode ser robustecida pela explicitação do modelo gerativo da existência em ato, que já estava disponível na época e que, parece-nos, instrumentalizava a mente de Platão, segundo indica a genialidade da sua obra e a sua capacidade de abordar tão vasto leque de problemas, sempre com extrema acuidade. O fato de que a ninguém é facultado conhecer tudo de forma extensiva, indica que apenas o domínio das leis comuns que regulam a existência, pode fornecer referência para a devida consideração de qualquer fenômeno manifesto na existência, o que parece ter sido o caso de Platão. Uma vez explicitado o referencial, verificar-se-á que, tendo o referencial em vista, sempre será possível esclarecer, com precisão, do que se está tratando em cada ocasião e, também, avaliar em que medida as conclusões geradas correspondem ao implícito no referencial.

Figura 5A

Figura 5

Na primeira linha, delimita-se a existência, separando um âmbito ilimitado e um âmbito limitado, correspondentes objetivos dos princípios normativos, ilimitado e limitante, de Pitágoras, que Platão recepciona, segundo registro no Filebo (Phlb.16c), transmitido pelos antigos que eram melhores que nós e viviam mais próximos dos deuses.

Na segunda linha, colocam-se os ordinais que Platão menciona na Carta VII, com o acréscimo do zero na posição que lhe cabe, tanto porque zero se ajusta bem à instância, como porque, assim, todas as instâncias ficam claramente referidas. Essa também é a razão principal pela qual se prefere utilizar os numerais a utilizar a década, que também caberia, mas pode e basta que seja subentendida.

Na terceira linha, coloca-se o Uno na posição que lhe cabe, o Ser na posição [1], pelas razões já discutidas; os conteúdos [2], [3] e [4], segundo descrito na República; e, por último, o que realmente é e pode ser conhecido, na posição [5], de acordo com a Carta VII. Nessa última instância, cabem também a totalidade e o ente contingente, na medida em que se procura, em todo o esquema, referir o mundo objetivo.

Finalmente, na última linha, caracterizam-se as cinco instâncias, usando, para tanto, termos dotados de trânsito no meio científico moderno, que explicitam melhor, para mentes analíticas, a nossa interpretação pessoal do referencial que instrumentalizava Platão, sem, com isso, defender que Platão, na ocasião, já tivesse visão dimensional da realidade, embora nos pareça indubitável que ele tinha plena consciência de que se tratava de uma estrutura gerativa ontológica, na qual a existência em ato apenas era atingida na quinta instância.

Uma vez explicitado o referencial, pode-se, agora, examinar o que o Parmênides afirma sobre a participação da forma nos particulares e sobre a participação do Uno no ser, desta feita, com a intenção positiva de esclarecer de que forma a participação se dá.

Olhando o modelo em seu conjunto, tendo em mente tratar-se de uma estrutura ontológica, cumulativa e gerativa – que visa a explicitar como a existência se estabelece em ato –, resulta evidente que o Uno [0] institui o Ser [1] e que este, cumprindo um percurso ontológico bem definido, institui o ente [5], que verdadeiramente é e pode ser conhecido. Tratando-se de uma estrutura cumulativa, resta também evidente que essa instituição implica participação, de sorte que todo antecedente participa do subsequente, mas este não participa daquele.

Correspondendo o [1] ao Ser e o [5] ao ente e sendo o ente uma totalidade moldada por uma forma – segundo a teoria das ideias –, resulta necessário que o percurso de [1] a [5] seja responsável pela formatação do ente e explique de que maneira a forma particular que molda o ente em questão, resulta gerada, configurada ou implementada. Somente com a explicitação desse processo criativo é que se logrará entender como a forma participa do ente particular, o que corresponde à primeira das perguntas do Parmênides. Dado, adicionalmente, que, nessa estrutura gerativa, o Ser insinua-se como agente dinâmico do processo de geração do ente, necessário se faz que, antes de contemplar tal processo, demonstre-se que o Ser reúne condições de desempenhar tal papel construtivo. Daí, entendermos que o primeiro passo devido não é esclarecer como a forma participa das singularidades que integram o mundo e constituem a multiplicidade, mas esclarecer de que modo o Uno institui e participa do Ser.

Sendo esse o caso, convém iniciar a análise destacando que, estando em pauta o Uno e o Ser e tratando-se de uma estrutura cumulativa, a análise eficiente deve ficar restrita ao âmbito compreendido pelos dois, isto é, às instâncias [0] e [1] da Figura 5, sendo incabível invocar aspectos e conceitos pertencentes às demais instâncias – [2], [3], [4] e [5] –, uma vez que o próprio de tais instâncias não participa nem do Uno nem do Ser, embora elas sejam participadas por eles. Com isso, todas as caracterizações do Uno e do Ser desenvolvidas por Platão baseadas em tais instâncias revelam-se ilegítimas e sofísticas, mesmo quando as conclusões alcançadas resultem corretas e não configurem absurdos ou impossibilidades.

O mesmo pode-se dizer das caracterizações do Uno e do Ser que admitem, como ponto de partida, a hipótese de um ou de outro não existir, uma vez que a inexistência foi, liminarmente, excluída do âmbito de consideração, pela alocação e pela delimitação do ilimitado e do limitante, no âmbito da existência, acolhendo as justificadas recomendações de Parmênides em seu poema. Com isso, também estas revelam-se ilegítimas e sofísticas, tal como aquelas baseadas nas instâncias superiores da estrutura gerativa, e, consequentemente, quanto mais extensas e numerosas sejam tais ocorrências no texto, mais justificada fica a nossa hipótese segundo a qual uma das principais intenções de Platão com o diálogo Parmênides teria sido exercitar os seus discípulos na percepção e na operação de diferenças ontológicas, de tal sorte a habilitá-los à sua teoria das ideias.

Justificado esse nosso posicionamento diante do diálogo Parmênides, abrem-se três linhas de investigação capazes de levar o presente estudo a bom termo. Naturalmente, a primeira delas seria quantificar as análises desenvolvidas no texto e verificar qual o percentual daquelas – ilegítimas e sofísticas – que apenas se justificam como exercício da mente para a percepção e a operação de diferenças ontológicas. Com esse resultado, lograr-se-á, ou não, aferir a pertinência da tese. A segunda seria destacar do texto uma amostra representativa das teses e das conclusões pertinentes ao esclarecimento da questão da participação e oferecer-lhe a crítica que o modelo referencial sintetizado na Figura 5 possibilita. Com isso, poder-se-á identificar o que Platão realmente esclarece no texto sobre a participação. A terceira linha possível seria abandonar o texto e, concentrando-se, exclusivamente ou não, no referencial da Figura 5, tentar extrair diretamente dele, mediante análise ontológica, o que é possível afirmar sobre a participação tanto do Uno [0] no Ser [1] quanto desse Ser [1] no ente [5].

Diante da relevância das duas últimas linhas de investigação, virtualmente, para o esclarecimento da teoria das ideias e tendo preocupação com a extensão do presente estudo, optamos por abandonar a primeira linha e concentrar-nos nas duas restantes, uma vez que, na prática, a justificação estatística da tese não lhe acrescenta valor substancial, além daquele já contido na própria tese. Esse valor já está demonstrado, conduzindo-nos até aqui. Vejamos e avaliemos, então, o que Platão nos informa no texto, sobre o Uno e o Ser, apoiando-nos, para tanto, no modelo referencial descrito na Figura 5.

O QUE PLATÃO ESCLARECE SOBRE UNO, SER E PARTICIPAÇÃO, NO PARMÊNIDES

Se o uno existe […]. (Prm.137c5).

Então o uno, se é para ser uno, não será um todo, bem como não possuirá partes. (Prm.137d3-5).

E se não possui partes, não poderia possuir começo, meio e fim, já que estes seriam parte dele […] e como começo meio e fim são limites de todas as coisas […] se infere que o uno […] é ilimitado. (Prm.137d7-10).

O modelo concorda que o Uno existe porque a inexistência, sendo impossibilidade, foi excluída do campo de considerações. O modelo também concorda que o Uno é uno, que não é um todo, que não possui partes, que não possui limites e que, portanto, é ilimitado. O modelo também concorda que o Uno não possui nem começo nem fim. Esclarece, porém, que a justificativa disso é ontológica e não temporal. Quando o texto coloca “meio” entre começo e fim sugere uma questão temporal que pertence à instância [4] do modelo e que, como tal, não pode ser invocada no âmbito [0 ==>1] em análise.

E é sem configuração, uma vez que não participa nem do redondo, nem do reto (Prm.137e) […], uma vez que não possui partes. (Prm.137e9).

Ademais, sendo assim, não poderia estar em lugar algum, (138a2) […] ou em si mesmo (Prm.138a4) […] visto que não é possível que uma coisa esteja em algo que não a encerra (Prm.138b) […] conclui-se que o uno não está em lugar algum, seja em si mesmo seja em alguma outra coisa. (Prm.138b7-8).

O modelo concorda que o Uno não possui configuração, nem forma, nem está contido em algo ou em si mesmo, nem ocupa um lugar e justifica tudo isso esclarecendo que isso se deve ao fato de ele, também, não possuir amplitude, isto é, de ele ser adimensional.

Porque se estivesse em movimento estaria se movendo espacialmente ou mudando, visto serem esses os únicos tipos de movimento (Prm.138c). […] O uno, porém, se mudasse para algo distinto de si mesmo, não poderia permanecer sendo uno (Prm.138c3-4). […] Portanto, ele não muda de lugar deslocando-se e vindo a ser em alguma coisa, não gira no mesmo lugar, nem muda. Por conseguinte, o uno é destituído de todo tipo de movimento. (Prm.138e9-13).

O modelo concorda que o Uno não se move, mas não concorda que as razões disso possam ser buscadas em elementos pertencentes às instâncias [3] e [4] do modelo. Basta considerar que ele não possui amplitude nem pode deixar de existir.

Entretanto, constatamos que é impossível que esteja em si mesmo ou em qualquer outra coisa […] assim, o uno jamais está no mesmo […] todavia, aquilo que não está no mesmo não é nem destituído de movimento, nem está em repouso. (Prm.139a6-b3).

Tampouco pode ser o mesmo com um outro ou consigo próprio; ou ainda distinto de si próprio ou outro (porque) se fosse distinto de si próprio, seria distinto do uno e não seria uno […] se fosse o mesmo com um outro, ele seria esse último e não seria ele próprio. (Prm.139b6-10).

[…] disso se conclui não ser possível ao uno ser o outro para outro, nem ser o mesmo para si próprio. (Prm.139e3-4). (adaptado).

O modelo mostra que o Uno possui natureza absoluta e que esta não admite uma segunda ocorrência de mesma natureza. Além do mais, estar em si mesmo, identidade e nome pertencem à instância [1], e diferença pertence à instância [2]; logo, resulta incabível invocar tais conteúdos para caracterizar a instância [0].

E, por outro lado, ele não será semelhante ou dessemelhante a qualquer coisa, quer a si próprio quer a uma outra coisa. (Prm.139e6-8).

Então o uno não poderia ser nem semelhante nem dessemelhante com relação a um outro ou a si próprio (Prm.140b6-8) […] tampouco igual nem desigual de si mesmo ou de outro. (Prm.140b9-10).

O modelo concorda que semelhante e dessemelhante constituem elementos das instâncias [1] e [2] inaplicáveis à instância [0].

Se o uno possuísse qualquer propriedade à parte de ser uno, essa propriedade o faria ser mais do que uno, o que é impossível. (Prm.140a).

O modelo concorda que atribuir um predicado objetivo ao Uno constitui uma impossibilidade.

Todavia, o uno não […] é afetado pelo tempo e não existe no tempo. (Prm.141d4-6).

O modelo concorda que o Uno existe fora do espaço e do tempo que pertencem à terceira e à quarta instância respectivamente.

E pode ele participar do ser de qualquer outro modo que não no passado, presente ou futuro? “Não, não pode”. Conclui-se então que o uno não tem nenhuma participação no ser. (Prm.141e9-12).

O modelo não concorda que a participação do Uno no Ser envolva elementos temporais que pertencem à instância [4]. A participação deve-se a questões ontológicas.

Em (Prm.142b), há uma retomada da hipótese de partida.

Considera inicialmente o seguinte: se o uno é (existe), é possível que seja e que não participe do ser? Não, não é possível. (Prm.142b5-7).

O modelo mostra que existir e Ser são conceitos distintos. No âmbito considerado [0 ==> 1], existir é condição comum a Uno e a Ser, embora com naturezas distintas. Portanto, existir não se confunde com o Ser. Existir, certamente, constitui condição necessária para que o Uno participe do Ser, mas não parece ser condição suficiente.

Então o ser do uno será (existirá), porém não será idêntico ao uno, pois se o fosse, não seria o ser do uno, nem o uno dele participaria, mas (e) a afirmação de que o uno é equivaleria à afirmação de que o uno é uno. (Prm.142b7-c3).

Nossa hipótese, entretanto, não é a de se o uno é uno, […] mas se o uno é. Não é isso? […] isso a julgar que uno e ser têm significado diferente? Necessariamente. (Prm.142c3-6).

Por conseguinte, se dizemos com brevidade o uno é equivale a dizer que o uno participa do ser? Certamente. (Prm.142c6-7).

O modelo mostra que, nesse trecho, a hipótese de que o Uno possua um Ser, ou seja, um Ser é falsa, razão pela qual a análise culmina em um uno numericamente infinito.

Esgotada a opção, a análise retoma outro recomeço em Prm.143a5.

Então, se o ser é algo e o uno algo distinto, o uno não é distinto do ser por ser uno, bem como é o ser distinto do uno porque é ser, mas se distinguem mutuamente em função da alteridade e diferença. (Prm.143b4-7).

O modelo concorda que ambos são indivisíveis e existem e que alteridade e, em certo sentido, diferença constituem a distinção. Vale lembrar, entretanto, que, rigorosamente, diferença constitui elemento da instância [2]; daí, alteridade ser um termo mais adequado, embora ainda isuficiente.

O ser, portanto, está distribuído em todas as coisas que são múltiplas, e não falta em nenhuma coisa que é, da maior à menor de todas? […] de fato, como pode o ser estar faltando em qualquer coisa que é? Não pode de modo algum. Neste caso está fragmentado em todos os tipos de seres, os menores e os maiores; não há nada mais que seja tão dividido. (Prm.144b1-8).

O modelo concorda que o Ser [1] participa de todas as totalidades [5] e, portanto, de todas as coisas que são múltiplas. Não concorda, porém, que o Ser possa ser fragmentado, já que constitui uma unidade indivisível. Isso significa que o Ser, em virtude da sua natureza, é tanto um quanto múltiplo.

Portanto, o uno, estando sempre em si mesmo e no outro, está sempre necessariamente em movimento e em repouso. (Prm.146a8-9).

Segundo o modelo, o Uno participa do Ser que está sempre em movimento existencial. O movimento existencial é, porém, do Ser, de sorte que o Uno permanece em repouso e apenas a sua participação no Ser poderá ser considerada em movimento e em repouso, segundo a natureza própria do Ser.

Tudo mantém com tudo uma das seguintes relações: é ou idêntico ou distinto; ou, se não é idêntico nem distinto, sua relação é a de uma parte com o todo ou de um todo com uma parte. (Prm.146b3-6).

O modelo concorda e explicita graficamente que existem relações horizontais de caráter lógico entre os componentes da multiplicidade e, também, relações verticais de caráter ontológico, entre a totalidade e os seus componentes, comumente designados de partes.

Contudo, como não há nada mais à parte do uno e dos outros, e eles necessariamente estão em alguma coisa, não será o caso de estarem um no outro, ou seja, ou outros no uno e o uno nos outros, sem o que não estariam em lugar algum? (Prm.151a8-b2).

Essa pergunta, que Platão deixa em aberto, virtualmente, por ter dúvida sobre a resposta cabível, o modelo permite enfrentar, sugerindo que ambos, Uno e entes, estejam situados na existência. O Uno, em uma existência de natureza absoluta, e os entes, em uma existência de natureza relativa. Apenas o termo lugar parece inadequado, dado que possui significados comprometidos com a instância espacial [3] ou temporal [4]. Em todas as demais instâncias, exceto nessas duas, o termo lugar, em sentido espacial ou temporal, segundo o modelo, não cabe.

Se o uno existe, o que dizer das outras coisas? (Prm.157b6-7).

Ora, visto que são distintas do uno, as outras coisas não são o uno, pois se fossem não seriam distintas dele. […] e, no entanto, as outras coisas não são completamente desprovidas do uno […] porque possuem partes. (Prm.157b0-c4).

Consequentemente, a parte é uma parte não de muitas coisas, nem de todas as coisas, mas de uma forma e conceito singulares que chamamos de todo, unidade perfeita produzida a partir de tudo. É dele que a parte é uma parte. (Prm.157d9-e2).

O modelo concorda que o Uno é distinto das coisas (entes) e, também, que elas não são completamente desprovidas de Uno, que delas participa. O modelo recomendaria, porém, não fazer a conexão direta do Uno com as coisas, mas ressaltar que a participação do Uno, nas coisas singulares, dá-se por meio do Ser. Portanto, se o objetivo fosse esclarecer, a questão, em Prm.157b6-7, deveria ser redigida assim: se o Ser existe, o que dizer das outras coisas?

Portanto as coisas que são distintas do uno são necessariamente um todo perfeito que possui partes. Necessariamente. O mesmo argumento é aplicável a cada parte, pois a parte necessariamente participa do uno. De fato, se cada uma das partes é uma parte, cada indica claramente que é uma, dissociada das outras, e existindo independentemente, caso contrário não seria cada. (Prm.157e2-158a3).

O modelo concorda que todo existente se constitui na condição de totalidade e, também, que os componentes – partes – dessa totalidade, também, constituem-se na condição de perfeitas totalidades, de sorte que a complexidade se realiza, não reunindo partes em certo arranjo organizacional, mas articulando inteligentemente totalidades bem constituídas, de certo nível de complexidade organizativa, instaurando, assim, entes em um nível organizativo superior ou mais complexo.

Mas tanto o todo quanto a parte têm necessariamente que participar do uno, pois este será um todo do qual as partes são partes e, por seu turno, cada coisa individual que constitui parte de um todo será uma parte do todo. (Prm.158a8-12).

Essa construção sugere que Platão, no caso, usou o termo uno não no sentido de Uno [0], mas no sentido da unidade universal, isto é, do ente universal, o demiurgo. O modelo informa que o Uno [1] participa de todas as coisas, mas não é participado nem mesmo pelo Ser.

[…] quando cada parte vem a ser uma parte, as partes de imediato se revelam limitadas em sua relação recíproca e relativamente ao todo, e este relativamente às partes. […] a consequência disso para as coisas que são distintas do uno é que a partir do uno e da combinação delas com ele surge, pelo que parece, algo diferente no interior delas que lhes confere uma limitação na sua relação recíproca; a própria natureza delas, contudo, quando isoladas, não lhes determina quaisquer limites. (Prm.158c11=d8).

Aqui, Platão parece ressaltar o fato de a totalidade não instituir um limite que não possa ser transposto, uma vez que arranjos mais complexos podem ensejar o surgimento de totalidades mais complexas na qual a totalidade em causa se converta em parte. Com isso, fica claro por que também as coisas particulares são tanto limitadas pela forma que as totaliza, mas também são ilimitadas, na medida em que fazem parte e/ou podem vir a fazer parte de totalidades mais complexas.

Dado que o restante do diálogo vai tratar da hipótese de o Uno não existir ou de o Ser não existir, avancemos pela terceira linha de estudos e passemos a examinar o modelo descrito na Figura 5 e tentar extrair diretamente dele o que está implícito na estrutura.

O QUE A ESTRUTURA GERATIVA ESCLARECE SOBRE UNO, SER E PARTICIPAÇÃO

O que podemos dizer do Uno e do Ser?

Segundo a lição de Parmênides, a inexistência é uma impossibilidade, posto que, se assim não fosse, seria uma inexistência absoluta e, como tal, absolutamente incapaz de constituir fonte de alguma coisa. Com isso, a existência constitui-se em fato inescapável e absoluto: ela não pode ter vindo a ser e, tampouco, pode deixar de ser. Homens sensatos, afirma Parmênides, não procuram pensar o impensável, que ele designa de não ser e nós, de nada absoluto.

Nós, homens dotados de discernimento, descobrimos a existência absoluta porque os nossos sentidos de percepção e a nossa capacidade de discernimento informam-nos que tanto nós mesmos como também o universo que nos contém, existem. Ambos existem de uma forma limitada, dado que tudo que observamos vem a ser, é e, depois, deixa de ser, razão pela qual designamos essa existência de existência relativa. Dessa forma, entendemos que o próprio universo, um dia, veio à existência, nessa forma relativa, razão pela qual se impõe também necessária uma existência absoluta dotada da possibilidade de gerar ou instituir uma existência relativa. Impõe-se como necessário a possibilidade de o universo vir a ser[1].

Com essa conclusão, fica demonstrado que a existência contempla duas instâncias complementares: uma de natureza absoluta e outra de natureza relativa. O que Platão designa de Uno, segundo entendemos, é a natureza absoluta da existência, da mesma forma, ao que parece, designa de Ser tudo o que constitui a existência relativa. Dessa maneira, o problema da participação do Uno no Ser implica esclarecer de que modo se dá a geração da existência relativa a partir da existência absoluta e, também, o que muda na transição entre existência absoluta e existência relativa.

Nós, seres humanos, somos frutos da natureza relativa e, portanto, constituídos de elementos de natureza relativa. Tal fato habilita-nos a pensar e a predicar componentes dessa natureza, mas não nos provê de recursos para contemplar objetivamente e predicar qualquer elemento de natureza absoluta, restando evidente que o absoluto objetivo se situa fora de nosso campo de compreensão e que o Uno contempla absoluta indeterminação. Apesar dessa impossibilidade de percepção e determinação objetiva, em face do contraste estrutural entre absoluto e relativo, conseguimos referir-nos ao absoluto, usando referências relativas simétricas, o que nos fornece não uma compreensão objetiva, mas a compreensão humanamente possível[2]. Tendo presente essa restrição, podemos inferir o entendimento possível dessa natureza absoluta e esperar que isso nos permita entender como essa transição, entre absoluto e relativo, efetiva-se.

O Uno, como natureza absoluta da existência, revela-se desprovido de limites externos, em virtude da inexistência de um nada absoluto que o limite. Mas, tampouco, pode conter limitação interna que igualmente o limitaria. Daí, ser imperativo que sequer possua amplitude, evitando que esta lhe conferisse um interior limitante. A conclusão inevitável é que o Uno seja, também, desprovido de dimensão.

Sendo eterno e adimensional, o Uno revela-se, também, desprovido de movimento, uma vez que não muda – nem veio a existir nem pode deixar de existir –, e a adimensionalidade ou ausência de amplitude impossibilita outro tipo qualquer de movimento. Essa condição enseja-nos considerar que o Uno contemple plena imobilidade e, portanto, impossibilidade de agir. Dado, porém, que se trata de natureza absoluta e que a natureza relativa é um fato, essa impossibilidade de agir implica a caracterização do Uno como pura potência, ainda que seja potência em grau absoluto. Implica, também, a caracterização do movimento que gera o Ser a partir do Uno, de movimento transcendental, dado que esse padrão de movimento explica o surgimento de uma presença em certo plano da existência, na condição de movimento, sem que esse movimento se estenda à fonte transcendental que lhe deu origem. O movimento de padrão transcendental apenas manifesta-se no âmbito no qual o Ser emerge como presença e configura um padrão lógico designado transcendental, uma vez que, sem demandar causa e sem contemplar simultaneamente a origem, explica o surgimento de algo novo na existência relativa[3].

Caracterizado o Uno como eterno, adimensional e potência absoluta, a existência relativa resulta tão necessária para justificar a potência absoluta, quanto a natureza absoluta torna-se necessária para justificar a existência relativa, restando configurada mútua determinação consistente, capaz de cumprir o papel de ponto arquimédico para a razão de homens sensatos.

Em consequência do exposto, é evidente que o Ser – e estamos referindo-nos exclusivamente ao conteúdo da instância [1] – emerge no âmbito da existência relativa, por meio ou em virtude de um movimento transcendental, facultado por potência absoluta e por espaço de possibilidades, ambos inerentes à natureza da existência.

Sendo da natureza do Uno a ausência de amplitude, o absoluto repouso e a plena indeterminação, resulta que a transcendência que lhe corresponde torna-se, necessariamente, constituída da mesma natureza, porém, na condição de alteridade, que não pode preservar, em sua integralidade, os atributos que lhe conferem a condição absoluta, dado ser impossível a simultaneidade de dois absolutos. Por conseguinte, o Ser que emerge na instância [1] também desperta a natureza relativa que o recepciona, impondo-lhe uma primeira limitação, a qual lhe subtrai a plena indeterminação. Trata-se, então, de um Ser determinado.

Essa determinação resulta da natureza da existência relativa, que exerce papel limitante sobre o Ser emergente – tal como já percebido por Pitágoras –, de sorte a viabilizar a simultânea convivência de Uno absoluto e Ser relativo. Em virtude de a determinação imposta ao Ser, na instância [1], configurar uma tripla determinação, resulta dedutível, também, a tripla composição básica da natureza relativa que lhe impõe a limitação. Sendo o Uno adimensional em repouso, sua alteridade mais elementar somente pode consistir de um adimensional em movimento. No domínio da ciência, o que vem a ser um adimensional em movimento? Uma reta ideal que resulta do deslocamento de um ponto desprovido de dimensão.

Portanto, a determinação do Ser, na instância [1], faz-se em termos de forma, de movimento e de quantidade. De forma, por possuir amplitude unidimensional, tal como evidenciado pela figura da reta; de movimento específico, por ser o único padrão facultado pela amplitude da reta; e, finalmente, de quantidade unitária, por ser a quantidade contemplada na amplitude unidimensional. Com isso, o Ser resulta determinado, na condição de movimento existencial, como unidade indivisível e como manifestação de amplitude unidimensional. Resulta, porém, ainda indeterminado, no que diz respeito ao restante da natureza herdada do Uno e que não foi atingida pelo poder limitante da natureza relativa, presente na instância [1].

Dessa forma, evidencia-se que o Ser é instituído e constituído pelo Uno, cedendo-lhe este da sua própria natureza, mas o Ser gerado por transcendência não mantém a natureza cedida em toda a sua extensão, porque a natureza da existência relativa constitui um poder limitante necessário que, na instância [1], amputa-lhe a indeterminação. Em compensação, o Ser revela-se portador de movimento existencial absoluto, ao qual a natureza relativa não pode opor-se, dado que o movimento constitui essência da própria natureza relativa.

Concluída a análise ontológica do Uno e do Ser e, também, do percurso gerativo [0 ==>1], examinemos, agora, o Ser e o Ente e o percurso gerativo [1 ==> 5].

O que podemos dizer do Ser e do Ente?

Da análise anterior resultou indicado que a natureza da existência relativa se opõe à livre manifestação do Uno, impondo um limite no âmbito [1], gerando, como consequência, um Ser determinado. Dado que o percurso [1==>5] configura, também, um processo gerativo que culmina em [5], no estabelecimento de um existente relativo em ato, um ente, parece previsível que, nas instâncias subsequentes ao âmbito [1], isto é, [2], [3], [4] e [5], a natureza relativa imponha limites adicionais à livre manifestação do Ser.

Observe-se, porém, que, na mesma medida em que a natureza relativa impõe em cada uma das instâncias dimensionais subsequentes à primeira, uma nova limitação à livre manifestação do Ser também concede-lhe, instância por instância, crescente amplitude dimensional para a sua manifestação existencial. Desse fenômeno resulta configurada senda potencial de crescente complexidade organizativa, e o movimento existencial do Ser revela-se como impulso absoluto e inesgotável para a complexidade organizativa. Com isso, o Ser revela-se habilitado para a função de agente construtor de entes e de fenômenos relativos em ato, no âmbito da existência relativa.

Dado que a existência em ato apenas resulta alcançada na instância [5], impõe-se compreender que a senda construtiva que vai de [1] a [5] bem como as instâncias precedentes à [5] constituem realidades ontológicas que se somam na instituição da realidade factual e, como tais, não podem ser encontradas isoladamente na natureza. Daí, também ficar evidente que o que distingue uma instância dimensional da que lhe precede ou sucede constitui diferença ontológica e que o mergulho analítico, partindo da totalidade do ente em busca do Ser unitário que o constitui, segundo recomendado pela dialética platônica, constitui mergulho ontológico e não mero procedimento lógico.

Munido o Ser de impulso absoluto e inesgotável para a complexidade, resulta compreensível que a exígua amplitude disponibilizada pela natureza para a manifestação do Ser na instância [1] não arrefece o seu ímpeto de ser, resultando inevitável e contingente o desdobramento da segunda, da terceira e da quarta instâncias dimensionais, para viabilizar a complexidade que a realidade captada pelos nossos sentidos de percepção ostenta possuir. Ocorrendo, porém, que a quarta dimensão configura abertura para a diversidade, resulta também necessário que, depois da quarta, seja atingida uma instância de totalidade capaz de restaurar a unidade fenomênica perdida no desdobramento da segunda dimensão. Sem essa instância de totalidade, que restitui a unidade no seio da diversidade, os fenômenos seriam indistintos uns dos outros na natureza, inviabilizando a multiplicidade e a nossa própria percepção dos fenômenos.

Essa totalidade, como a década demonstra, não se situa no horizonte normal de desdobramento dimensional, onde a instância seguinte seria uma virtual quinta dimensão. Ao contrário, a totalidade transcende o desdobramento dimensional e situa-se além, instituindo, agora, uma unidade complexa que contém partes. Apenas com a conquista dessa totalidade – que nos parece bem representada pela figura da superfície da esfera –, o Ser construtor logra estabilizar, na existência relativa, um fenômeno ou um ente contingente em ato existencial. Daí o mundo relativo não conter partes isoladas, apenas totalidades

Segundo a teoria das ideias de Platão, essa totalidade, perfeitamente fechada em uma unidade, tal como indicado pela superfície da esfera, é definida por uma forma construída pelo Ser, no citado percurso ontológico, que se repete tantas vezes quanto necessário, para ser atingido o grau de complexidade próprio da forma definidora do fenômeno em questão. Para que uma mesma estrutura seja capaz de responder pela organização de uma diversidade que se estende em instâncias cumulativas de crescente complexidade, de partículas quânticas até o próprio universo, torna-se necessário que essa estrutura comece e, também, termine em transcendências, dado que apenas o movimento transcendental revela-se capaz de instituir unidades a partir de multiplicidades. Exemplo claro é a molécula de água que resulta da união de três átomos e apresenta propriedades que ultrapassam a mera soma das partes, sendo o caso, ainda, de tais propriedades não se justificarem nas propriedades dos átomos constituintes. Com essa replicação, a estrutura gerativa indicada pela década sagrada revela-se, também, inescapável.

Por outro lado, dado que a natureza relativa da existência revelou-se constituída, na instância [1], de forma, movimento e quantidade e que tais elementos constituem objetos das ciências básicas, designadas modernamente de Geometria, Lógica e Matemática, resulta evidente que as instâncias seguintes à primeira preservem a mesma natureza e as mesmas propriedades geométricas, lógicas e matemáticas, variando os conteúdos locais apenas em função da crescente amplitude das instâncias que se sucedem e do consequente modo como forma, movimento e quantidade harmonizam-se em cada nova situação.

Ora, ao menos, em Geometria e em Matemática, já são conhecidos de todos os compromissos estruturais estáveis e imutáveis que integram as estruturas de complexificação da forma e da quantidade e que ensejaram sua classificação como ciências exatas. A relação constante entre a soma dos ângulos internos de um triângulo e os ângulos internos de uma circunferência, as constantes matemáticas e a sequência de Fibonacci são emblemáticas, de uma inteligência organizativa natural que é inerente à natureza da existência relativa, dado que ela se constitui de forma, movimento e quantidade. Dessa forma, compreende-se que o advento do Ser, com seu ímpeto de ser e seu impulso existencial irrevogável, ao desdobrar amplitude crescente, desperta a inteligência estrutural da natureza relativa e deflagra um processo de complexificação de abrangência cósmica, moldando toda a existência relativa com um mesmo e inescapável padrão existencial. O resultado é um cosmos, no qual tudo ocorre dentro do espaço de possibilidades demarcado pela Geometria, pela Lógica e pela Matemática.

Assim como, na instância [1], o padrão de movimento configura um padrão lógico designado transcendental, assim também, nas demais instâncias, compreendendo cada uma delas amplitude específica, resulta inevitável que, em cada instância, vigore um movimento privativo que configura uma lógica própria e inconfundível, normalizando as manifestações objetivas locais. À instância [2] lhe corresponde a lógica da Diferença; à [3], a lógica Clássica do terceiro excluído; à instância [4], a lógica Dialética da história; e à instância [5], a lógica Holística (RODRIGUES, 1999). Na mesma medida, torna-se possível identificar a forma, e os conteúdos objetivos correspondentes, que, aqui, mostram-se dispensáveis.

Assim sendo, é também forçoso concluir que os elementos básicos com os quais a realidade objetiva se edifica, em última instância, são três: o Uno, o Ser e a inteligência, todos componentes naturais da existência. Cabe, também, ainda, observar que o processo descrito evidencia dois tipos de inteligência: uma inteligência criativa, configurada pela década sagrada e responsável pela geração das totalidades que ganham assento estável no âmbito relativo, e uma inteligência organizativa, criada por aquela e que molda os entes e os fenômenos criados, na forma de totalidades perfeitas – esféricas – nas quais as partes complementares se ajustam com precisão e atingem um momento de repouso organizativo e de bem-estar, no infindável processo universal de complexificação. Platão designou essa inteligência organizativa de ideia ou forma e, tendo ela em vista, formulou a sua teoria das ideias.

CONCLUSÃO

Temos batalhado por mais de dois mil anos, tentando entender o que esse grego admirável tinha na cabeça, e o resultado tem sido tão duvidoso, quanto exíguo tem sido o acordo entre os pesquisadores. Está claro que, para Platão, a filosofia era assunto para poucos, e ele só fala no Parmênides, porque, como diz Zenão, “estamos sozinhos” (Prm.137b). Em tais condições, não cabe ser prescritivo e, por isso, o personagem principal vai ocupar-se de fazer com que os leitores exercitem a percepção e a operação das diferenças ontológicas presentes na estrutura gerativa que explica a existência. Faz isso sem apresentar a estrutura e sem, nem mesmo, mencioná-la presente na discussão. Quer, parece-nos, que a estrutura surja na mente dos interlocutores, talvez convencido de que ela, necessariamente, ali já se encontra, mesmo que a consciência ainda não se tenha dado conta dela. Por isso, oculta, disfarça, diz o certo junto com o errado, muda a designação, explora impossibilidades como se possíveis fossem, diz um pouco aqui e outro pouco acolá, nunca fala tudo que podia. Quer forçar o pensamento. Penso que, ao final, Platão exagera no ato de ocultar, tanto assim que estamos, aqui, dois mil anos depois, ainda penando ou, virtualmente, fazendo por merecer.

O que este trabalho revela é que a nossa dificuldade resulta de inabilidade cultural em distinguir e separar o lógico do ontológico. Segundo o modelo gerativo, o lógico e o ontológico possuem ponto de contato, tal como o braço da cruz liga-se à haste, porém, tal como estes, não se confundem, em face da orientação de cada um. O modelo gerativo mostra que a “haste” da criação compreende cinco instâncias ontológicas distintas e indispensáveis para o advento da existência objetiva, a partir de uma unidade indivisível. Mostra que, em cada instância, vigora uma lógica própria que, embora sendo determinante e normativa, apenas predomina na instância respectiva. Com isso, compreendem-se as dificuldades e as confusões que enfrenta quem, mesmo conhecendo as lógicas, desconheça as diferenças ontológicas e não perceba que as lógicas se aplicam a casos específicos e não a todos os casos. O que dizer, então, de boa parcela de pesquisadores que ainda acredita existir somente uma lógica e somente uma única instância espaço-temporal. São aqueles a quem Platão identificou na condição de acorrentados na caverna e presos ao mundo visível.

De certa maneira, não deixa também de nos surpreender essa conclusão principal de um estudo que começou apenas desconfiando das reais intenções de Platão ao escrever o diálogo e que, agora, ao final, depara-se com esse desafio de separar o lógico do ontológico, na condição de requisito para entender Platão e a sua Metafísica.

No final das contas, a Metafísica de Platão e de Pitágoras revela ser concepção de simplicidade franciscana. O ilimitado de Pitágoras Platão designou de Uno. O limitante, que Pitágoras especificou com a década sagrada, Platão traduziu como cinco ordinais, cujo quinto número corresponde ao que, verdadeiramente, é e pode ser conhecido, isto é, à existência em ato. Isso evidencia tratar-se de uma estrutura gerativa que começa com pura potência no Uno a qual indica a natureza da existência absoluta, emerge na condição de Ser indivisível no plano da existência relativa e, então, movido por um impulso existencial ilimitado e irresistível, desenvolve complexidade organizativa crescente nas instâncias ontológicas subsequentes, logrando instalar-se como existência em ato – como ente –, na quinta instância, ao assumir a forma estável de totalidade.

Mais do que festejar um resultado, damo-nos conta de um novo contexto mental de questões e percepções emergentes. Como pudemos fazer metafísica sem distinguir o lógico do ontológico? Como não desconfiamos que estávamos equivocados ao aplicar o princípio de causalidade – princípio lógico da instância 3 –, na defesa da existência ontológica do Uno? Como, apesar da milenar lição de Parmênides, continuamos a aventurar-nos na inexistência?

Concluamos, porém, positivamente, com virtual nova percepção. A caracterização da natureza da existência absoluta como pura potência permite-nos, também, inferir boa razão para Platão escolher o termo uno para designá-la. Para o grego clássico e, em particular, para os pitagóricos, a existência era boa e bela, porque concebida pelos deuses, segundo as matemáticas – que envolviam geometria, astronomia e cálculo –, que, não por acaso, podem ser assimilados a forma, movimento e quantidade. Sendo toda a realidade constituída pelo número e tendo em vista que a série dos números naturais começa na unidade e estende-se infinitamente para a complexidade quantitativa, o conceito de uno, no sentido de indivisível, insinua-se como potência que antecede o número e lhe fornece o espírito, que fundamenta a quantidade e os números. A solução também poderia estar no repouso do movimento ou no ponto da forma, mas o número sempre foi de percepção mais evidente. Por isso, supomos, a escolha tenha recaído no número. Se o universo é número, nada mais apropriado do que colocar o uno como origem.

Notas:

[2] O ser participa tanto do original como da cópia, a qual é considerada pelo Estrangeiro como não ser do original.

[3] Uma questão tão relevante para a Metafísica quanto para a Física.

[4] Plenamente de acordo com o caráter aparente do paradoxo – uno/múltiplo – tratado no Filebo.

[5] Existem ainda razões lógicas para situar idêntico, identidade e nome na posição 1, que não cabem neste trabalho e que dizem respeito à amplitude unidimensional da instância, à lógica capaz de operar em “espaço” tão exíguo e, também, ao componente objetivo – o ser – que possui apenas uma dimensão. Para detalhes, ver RODRIGUES, 2016.

[6] A refutação dessa tese exige ou que se demonstre que homens e universo não existem ou que se demonstre que o universo é eterno e nunca veio à existência.

[7] Não compreendemos o que seja eterno objetivamente falando, mas a noção de tempo limitado fornece-nos certa noção de tempo ilimitado.

[8] A Lógica Transcendental encontra-se formalizada em SAMPAIO, 2001, e em RODRIGUES, 2016.

REFERÊNCIAS

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