A CONDIÇÃO HUMANA

O que significa, rigorosamente, ser homem? Ainda que não descendamos de macacos, a ciência tem, por certo, que a espécie humana pertence ao reino animal. Autointitulamo-nos animais racionais e, com isso, pretendemos destacar-nos e situar-nos, evolutivamente, acima dos demais membros do reino. Implica isso que cada um dos humanos possui, em sua compleição, certa parcela animal, mas que, em alguma medida, transcendemos o meramente animal, sendo esse o fato que nos torna humanos. Temos aceito esse entendimento como verdade e temos constatado ser ele repetido por todos como um mantra, mas sabemos, de fato, o que significa? Rigorosamente, essa sentença afirma que, se em dado indivíduo não predominarem as características que transcendem o meramente animal, ele não deve ser considerado humano? Procurando esclarecer essa questão, com os devidos cuidados que a questão merece, parece necessário questionar se o simples pertencimento biológico à espécie constitui razão suficiente para caracterizar o humano ou se, de acordo com a citada convicção geral, devemos entender que humana seja apenas ou, sobretudo, a parcela que emerge e se destaca por sobre e para além da animalidade estrutural. Tendo em vista a impossibilidade de refutar a nossa origem animal, tal questão afigura-nos relevante para que tenhamos entendimento realista e não idealizado do que significa humano. O tratamento metódico dessa questão impõe-nos distinguir o que é especificamente humano e separá-lo do que é tipicamente animal, de sorte que, tendo compreensão exata do que realmente somos, possamos entender o que precisa ser feito para ser, no futuro, o que nos parecer conveniente. Sem que entendamos, de modo realista, o que somos hoje, qualquer projeto de futuro fica liminarmente comprometido, simplesmente por falta de correspondência à realidade.

O próprio conceito de animal racional pressupõe um processo evolutivo, e a descoberta que o universo teve começo, em uma grande explosão, confere caráter evolutivo a todo o cosmos e, também, a toda a natureza engendrada, constituindo essa percepção, presentemente, uma das crenças mais estáveis das ciências. Ainda que o conceito de evolução seja discutível, pesquisas recentes, no âmbito da teoria do conhecimento(1) e da teoria dos princípios(2) , demonstram que a evolução dá-se, no sentido geral de crescente complexidade organizativa. Tais estudos também mostram que o discernimento e a razão – tidos como elementos que distinguem os humanos do restante do reino animal – resultam de inferências patrocinadas por um conjunto limitado de lógicas que, também, distribui-se em instâncias de crescente complexidade, tal como ocorre com o restante da natureza. Essas teses asseveram que o ser humano está habilitado a realizar cinco distintos tipos de inferência ou cinco distintos modos de pensar, cada um deles operando segundo uma lógica própria e, também, visando a aspectos específicos da realidade. Tais modos de pensar são identificados com as siglas S1, S2, S3, S4 e S5 e, no conjunto, configuram uma senda – S1 a S5 – de pensamentos crescentemente complexos. Essa senda baliza o percurso evolutivo do discernimento e, possivelmente, também baliza a história da evolução do pensamento ou da conquista do pensamento pela espécie humana.

(1) RODRIGUES, Rubi. A razão holística: método para o exercício da razão. Brasília, Thesaurus, 1999, 269 p.
(2) RODRIGUES, Rubi. A teoria dos princípios … de Platão? Brasília, Thesaurus, 2016, 319 p.

A descoberta e a caracterização desses padrões de pensamento viabilizam a distinção do que seja especificamente humano e o que seja tipicamente animal, dado que os animais também possuem – como é sabido – certa capacidade perceptiva. Como se verá adiante, os cinco padrões de pensamento são nossos conhecidos porque os executamos diariamente, ainda que nunca tenhamos atentado para suas especificidades e diferenças. Com isso, a análise e o entendimento de cada um dos modos de pensar independem do domínio da teoria que os organiza em estrutura de crescente complexidade. Apesar disso, parece útil mencionar que tal teoria possui orientação metafísica e alicerça-se em base matemática, geométrica e lógica e, tal como toda a natureza, desenvolve-se em espaços de possibilidade demarcados por tais ciências, conforme já percebiam os pitagóricos. Examinemos, então, o que nos informa essa estrutura.

S1 configura o pensamento mais simples. Configura, na verdade, um padrão de pensamento, dentro do qual são constados alguns tipos distintos de inferências. O elemento comum dessas inferências S1 é obedecerem todas aos ditames normativos da lógica transcendental. O mais elementar desses pensamentos é aquele da constatação de uma presença. Trata-se de pensamento muito comum, e, a toda hora, estamos vendo e percebendo presenças. Por vezes, quando não esperamos, surpreendemo-nos: opa! – por distração ou desatenção, não tínhamos percebido uma presença e quase esbarramos nela. O segundo mais importante pensamento S1 é aquele da identificação. Não apenas percebemos a presença, mas também a identificamos porque temos, na memória, um nome que a designa. Quando se trata de uma pessoa amiga, alegramo-nos: – veja quem está aí, é o fulano! Um terceiro pensamento de padrão S1 é o que chamamos de intuição. A inferência de intuição pode manifestar-se como pressentimento, como desconfiança e, até, como descoberta de um novo ou do inusitado – eureka. A intuição, repentinamente, aflora à consciência, sem uma razão aparente, como que vindo do nada ou do inconsciente: simplesmente, de repente, aparece. Um último pensamento de padrão S1 que merece ser citado, aqui, é o que chamamos ato de fé. O ato de fé é praticado tanto pelo cientista como pelo religioso e configura-se em uma crença. O religioso acredita em algo que transcende ao mundo objetivo, enquanto o cientista acredita que, pesquisando, poderá realizar uma constatação ou descobrir algo novo na natureza objetiva. Em ambos os casos, o ponto de partida é um ato de fé, uma esperança, e a diferença é que apenas o cientista poderá comprovar, em vida, a sua esperança, embora o ato de fé não exija comprovação. De qualquer forma, o comum a todas as inferências S1 é tratar-se sempre de um ato de percepção simples e unitário: de repente, a percepção emerge na consciência de uma só vez, permanece nela por algum tempo e, depois, desaparece da consciência, ou porque a deixamos de lado ou porque nossa atenção voltou-se para outra coisa. Esse padrão de pensamento não é privativo do homem, estando presente também em animais. Sem constatar presenças, os animais viveriam esbarrando nas coisas. Quem possui um cão de estimação sabe que ele reconhece o dono, e não são raros os casos em que parecem pressentir e entender o que vai acontecer ou está acontecendo. De qualquer forma, embora não haja dúvida de que os animais executam inferências S1, certamente, eles não executam todas as que o homem consegue realizar nem na mesma intensidade. Fé e criação intuitiva parecem ser privativas dos humanos. Com isso, parece que podemos concluir que o exercício do padrão S1 de inferências não é privativo dos homens e não caracteriza o humano.

S2 constitui padrão de pensamento mais complexo do que S1 e situa-se logo a seguir, na escala de complexidade crescente. S2 baseia-se na lógica da diferença e constitui inferências que comparam, distinguem, separam, ordenam, hierarquizam, classificam, agrupam, entre outros. A principal inferência S2 parece ser a distinção. Ora, para fazer distinção, é necessário, antes, identificar os objetos em consideração – operação de identificação S1 –, para, então, comparar um e outro e perceber que são distintos. Com isso, fica demonstrado que as inferências S2 são cumulativas e pressupõem inferências anteriores S1, configurando justamente capacidade de intelecção e de discernimento crescentes. S2 também constitui uma inferência simples que se realiza em movimento também simples: contemplado o um, em face do outro, constata-se, sem necessidade de cálculo ou de maiores considerações, que não se trata do mesmo, mas de outro e que, por isso, são diferentes. Também, essas inferências S2 estão ao alcance dos animais que, ao constatar uma presença, sabem precisamente se precisam correr para salvar a pele ou se, ao contrário, trata-se de oportunidade de garantir o almoço. Obviamente, também, aqui, nem todas as inferências S2 estão ao alcance dos animais que, certamente, não hierarquizam nem projetam estruturas. Apesar disso, parece que, também, aqui, podemos concluir que o exercício do padrão S2 de inferências não é privativo dos homens e não caracteriza o humano.

S3 constitui padrão de pensamento ainda mais complexo. O operador não apenas percebe a diferença entre A e B, mas também qualifica essa diferença e pode contemplar as influências recíprocas que as diferenças provocam. Tecnicamente, esse padrão de inferência contempla uma dupla diferença e exige a lógica clássica de Aristóteles, que relaciona causa e efeito no âmbito do espaço e da matéria. As inferências de padrão S3 vão desde a lei de ação e reação estudada em mecânica até o pensamento sistêmico que possibilita a criação de todas as ferramentas e tecnologias que instrumentalizam as modernas sociedades industriais. Na medida em que esse padrão de pensamento contempla as relações da matéria com matéria, contempla, também, as relações dos organismos biológicos com a matéria circundante e, assim, o pensar S3 revela-se fundamental aos homens e aos animais para a preservação da integridade física. Os cinco sentidos da percepção, nesse aspecto, representam auxiliares importantes para que o animal evite as situações capazes de colocar sua integridade física em risco. S3 possibilita que o homem use e manipule a materialidade circundante, visando a aumentar a sua comodidade e o seu bem-estar, isto é, torna o homem laboral. Trabalhar meio e materiais para sua comodidade não constitui, porém, exclusividade do homem. O João de barro constrói a sua casa de alvenaria e sabe bem colocar a porta em posição contrária a da origem da chuva; o castor elabora diques; o pássaro constrói ninhos, por vezes sofisticados; a aranha tece armadilhas, enfim, existem também animais laborais. Em resumo, significa isso que a operação S3 também não constitui prerrogativa exclusiva do homem e que, portanto, não serve para distingui-lo dos demais animais, embora, também, aqui e crescentemente aqui, o homem pense e realize operações S3 de complexidade fora do alcance dos demais membros do reino.

Finalmente, com o pensar S4, surgem as primeiras inferências exclusivas do humano. S4 constitui padrão de pensamento que se vale de uma lógica chamada dialética ou lógica da história. Essa lógica preside as relações de cada ente ou fenômeno com suas circunstâncias, sobre a linha do tempo. Conforme lição dos neoplatonicos, as operações dialéticas contemplam, no geral, o confronto de tese e antítese, na linha do tempo, gerando sempre uma síntese, isto é, uma resultante. É com o pensar S4 que o tempo entra na consideração da realidade existencial dos homens que, em razão de S4, percebem seu organismo crescer e envelhecer. São também as inferências S4 que patrocinam o aprendizado, revelam a presença de memória, constroem uma história e abrem, para humanos habilitados, a oportunidade de projetar e construir um futuro. A caça que animais selvagens realizam constitui exemplo de operação S4. Nos sistemas projetados segundo o pensamento S3, pode-se calcular a consequência, mas as projeções S4 não admitem cálculo, a resultante pode ser apenas estimada – dentro de certo espaço de possibilidades. Se S3 contemplou a matéria, S4 permite contemplar a matéria em movimento, de sorte a ser a combinação de S3 e S4 que permite aos animais deslocarem-se na superfície do planeta e providenciarem os meios de sobrevivência de que dependem, algo, evidentemente, comum a animais e homens.

O especificamente humano surge apenas nas instâncias superiores do pensamento S4. Esses pensamentos podemos anotar como pensamentos S4+. Eles viabilizam a compreensão de que o outro também merece sobreviver e a compreensão de que, em vez de competir com o outro pelos recursos de sobrevivência, talvez seja mais eficaz associar-me a ele de modo cooperativo e providenciar os meios de sobrevivência em conjunto. São pensamentos S4+ que patrocinam a organização social, a divisão de tarefas, a política e a organização do Estado, os sentimentos gregários, a compaixão, a benevolência e que possibilitam o surgimento da exigência de justiça, das projeções de futuro, do interesse público, da separação entre público e privado, entre outros. Com o pensamento S4+, surge o que é privativo e específico dos homens e que, legitimamente, tipificam o humano. Sabe-se que existem colmeias, colônias e matilhas, mas essa agregação animal obedece a códigos genéticos inescapáveis e não resulta de atos conscientes de livre arbítrio. Podemos, assim, estimar que atos conscientes de livre arbítrio, eventualmente, podem configurar promissoras medidas para se caracterizar a condição humana. Com isso, também vale observar que não sabemos como se dão, exatamente, as percepções dos animais inferiores que constatamos em S1, S2, S3 e S4 nem sabemos se denominar de pensamentos tais percepções animais configure a solução mais adequada, mas, independentemente disso, fica claro que o comportamento animal resulta delas, tal como o comportamento dos homens atrela-se ao seu modo de perceber o mundo.

Nesse sentido, da configuração das percepções humanas mais amplas, provedoras de modos gerais e abrangentes de ver o mundo, a citada escala hierárquica dos modos de pensar possui o mérito de elucidar os padrões de pensamento que suportam as ideologias conhecidas e, ao mesmo tempo, revelam seus limites. A religião, por exemplo, valoriza o pensamento S1, porque a lógica transcendental coloca-lhe a presença viva de um princípio necessário para fechar as contas. O fato de esse princípio ser inefável não importa, porque a fé não exige justificativa, e ser religioso não impede que o homem tenha pensamentos superiores. O problema com S1 surge quando a fé resulta absolutizada, e o indivíduo entende que os que não comungam da sua fé são seres inferiores virtualmente descartáveis, configurando um tipo de fundamentalismo que deprecia os pensamentos superiores ou divergentes.

S2, por seu turno, privilegia as diferenças de toda ordem entre as quais se destacam as diferenças de gênero, de raça, de cor, de patrimônio, de nível educacional, entre outros. Em termos de visão geral de mundo, S2 patrocina o estruturalismo e os maniqueísmos em geral. O problema, aqui, também apresenta-se quando esse padrão S2 de pensamento resulta absolutizado, em racismo, sexismo, discriminações ou maniqueísmos de toda a ordem.

O pensamento S3 concentra-se em ação-reação, causa-consequência, relações sistêmicas, disputa, competição. As ideologias resultantes são patrimonialistas, secularistas, capitalistas, o direito do mais forte e do mais esperto, o poder econômico, o crescimento econômico como índice de felicidade, o exército e a armada como poder dissuasivo, o colonialismo, o imperialismo, em suma, todos os meios capazes de propiciar riqueza material e poder engendrados pelo egoísmo. O egoísmo justifica-se em S3, em razão do justo direito de cada um e de todos em preservar a sua integridade física orgânica e os seus meios de sobrevivência, e os problemas surgem em S3, também, pela absolutização desse egoísmo e sua extensão indevida às demais instâncias da vida.

O padrão S4 de pensamento, o pensamento dialético, por seu turno, também patrocina ideologias, das quais se destacam o socialismo, o comunismo, a democracia, as teorias do estado, os acordos internacionais, as relações internacionais, as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade e por aí afora. Também, aqui, o problema surge com a absolutização dos conceitos S4 que tentam normatizar um vir a ser e uma dinâmica social em permanente mudança, desprovida de um ponto fixo capaz de ancorar a razão no julgamento das coisas. Mesmo um espírito S4+, dotado de plena consciência das vantagens de uma sociedade cooperativa e justa, encontra sérias dificuldades para definir o que seja justo. Consiste em dar a todos por igual? Dar para cada um, segundo as suas necessidades? Ou dar a cada um, segundo o seu merecimento? O problema de S4 reside justamente na mudança, na provisoriedade e nas inconstâncias das coisas – o que leva a pensar que não existe verdade alguma, sendo tudo convenção –, além do seu atrelamento à materialidade contemplada por S3. Bem intencionados, criamos um Estado, na expectativa de que seja administrado por mentes, no mínimo S4+; entretanto, permitimos que a remuneração e os privilégios dos cargos eletivos sejam tão atraentes que todas as mentes S3 do país passam a cobiçar essas funções, em razão da remuneração e da oportunidade de crescimento patrimonial que elas possibilitam. Com isso, candidatam-se os mais aguerridos predadores S3 cujos pensamentos são patrocinados pelo egoísmo e passam longe de preocupações S4+. No máximo, no período pré-eleitoral, o candidato, em flagrante engodo, reveste seus discursos de valores S4+ e, dado que os partidos políticos que os recomendam à eleição, também constituem organizações S3 – da mesma forma que a mídia que promove suas imagens públicas –, resta uma situação política e social inescapável, da qual a situação brasileira atual configura um exemplo perfeito e acabado.

Significa isso que o projeto humano constitui experiência da natureza fadada ao fracasso? A resposta é não necessariamente. Não necessariamente, porque o pensamento de padrão S5 baseia-se em lógica holística e tem como foco a totalidade. O pensamento de padrão S5 constitui, ainda, desafio para a maioria dos homens, sem apresentar, entretanto, dificuldade intransponível. A lógica holística patrocina um movimento integrador, unificador, que tende a reunir componentes em uma unidade. Com isso, o pensamento S5 ressalta a interdependência e a integração de todos os entes e fenômenos, no tecido da natureza universal que constitui a unidade cósmica dentro da qual existimos. O pensamento ecológico, o ecumenismo e todos os movimentos que externam preocupação com a natureza constituem exemplos do pensar S5. Costumamos olhar tais movimentos como fruto do altruísmo, de boa vontade e de idealismo, mas o pensamento S5 possui fundamentos lógicos, geométricos e matemáticos de grande consistência e não pode ser depreciado e tido como mero voluntarismo. S5 implica um pensamento metódico que, pela primeira vez, disponibiliza um método formal para o exercício da razão. Tanto assim que está provado que não existe, no universo, um ente ou um fenômeno correspondente ao que designamos de parte. Na existência, somente cabem totalidades, e a complexidade edifica-se, integrando totalidades bem constituídas e, não, juntando partes. O leitor não encontrará nada no mundo que não constitua uma totalidade, de sorte que, só por contemplar totalidades e não partes, o olhar S5 já revela-se mais aderente à realidade e mais competente. Olhando cada fenômeno com totalidade, resulta consequente perguntar sobre a força que reúne aqueles componentes em uma unidade perfeita na forma de totalidade e, também, perguntar pela inteligência organizativa que lhe confere aquela forma e, a seguir, perguntar, também, pela inteligência criativa que gerou a primeira forma dessa espécie e, depois, quem sabe, perguntar o que vem a ser inteligência e o que vem a ser existir. Enfim, somente mudar de parte para todo já qualifica S5 como um pensamento superior que, nitidamente, situa-se no âmbito perceptivo privativo da condição humana, ao qual os demais animais não têm acesso. S5 contempla a totalidade, mas não esquece que, tratando-se de um pensamento cumulativo, precisa considerar a presença concomitante dos pensamentos mais simples que possibilitam e suportam a complexidade que lhe é própria. A lógica holística, além de integradora e harmonizadora, é, também, não excludente.

Mas, se o pensamento S3 contempla a materialidade e o espaço, e o pensamento S4 contempla a temporalidade, que se situa para além do espaço, o pensamento S5 inscreve-se como modo de pensar que se situa para além do espaço e do tempo e contempla o que não pertence e não está sujeito às leis do espaço e do tempo. O que pode situar-se fora do espaço e do tempo? A teoria do Big Bang evidencia que espaço e tempo surgiram apenas com a grande explosão e que, antes disso, apenas presume-se que houve um processo de criação das condições objetivas que possibilitaram a grande explosão. Logo, fora do espaço e do tempo, cumpre colocar as leis da criação, as leis geradoras da existência em ato e que, em última instância, configuram a natureza íntima da existência, enquanto potência que virtualmente pode ou não se manifestar em ato. Complicado? Sim, para quem não sabe pensar formal e metodicamente S5, mas perfeitamente ao alcance de quem estiver disposto a estudar e desenvolver essa compreensão. Dedicando-se o pensar S5 ao estudo da natureza da existência e das leis da criação da existência em ato, resta claro que tudo o que existe em ato é regulado por tais leis, de sorte que a estrutura de pensamentos crescentemente complexos descrita – S1, S2, S3, S4 e S5 – espelha a mesma estrutura criativa que gera o mundo objetivo, confirmando o que Parmênides, na Grécia Clássica, já sabia, isto é, que ser e pensar são o mesmo.

Deixando de lado outros detalhes dessa tese – para quem estiver disposto a investir nas suas potencialidades e conquistar a maturidade da sua condição humana –, cumpre ressaltar, aqui, que o pensar S5 vislumbra componentes estáveis e imutáveis da existência que, nessa condição, configuram ponto fixo capaz de ancorar e referir à razão e livrá-la do frenético e imponderável turbilhão de mudanças que caracteriza o âmbito visível do vir a ser (S3 + S4), no qual o melhor dos homens (S4+), mesmo que queira, como vimos, não consegue ser justo. Quando o homem toma como referência as leis universais e eternas da criação, torna-se espiritualizado pela razão, em face do caráter ou da natureza “divina” dessas leis. Torna-se um cientista espiritualizado que não limita o mundo à matéria e, finalmente, entende lógica e racionalmente o que significa a sentença bíblica que afirma que no princípio era o Verbo. Ou seja, apenas enquanto operador S5 que toma as leis da existência – o Verbo – como referência, pode o homem realizar as melhores potencialidades do projeto humano e alcançar a beatitude (3) e o discernimento que são próprios da condição humana.

Esse percurso merecia ser mais detalhado, mas como o objetivo, aqui, é um artigo provocativo, visando a suscitar discussão, parece que o exposto já permite encaminhar conclusões mínimas, instigantes, sobre a condição humana. A primeira conclusão parece ser a de que o homem não constitui um projeto acabado, mas, sim, um projeto em construção, de sorte que, para sermos realistas, devemos considerar que existem homens plenos, mas que, também, existem indivíduos ainda presos à animalidade, significando a predominância de um dos quatro modos de pensar – S1, S2, S3 e S4 –, e homens plenos, significando predominância de pensar – S4+ e S5. (4) A segunda conclusão é que essa construção configura um processo individual de conquista, de discernimento e de emancipação cognitiva que demanda uma indústria de cultivo das características típicas do humano que se situa muito longe do que entendemos, hoje, por ensino, doutrinação ou domesticação. Tratando-se de um projeto de emancipação cognitiva e de superação das instâncias meramente animais de discernimento, resta evidente que apenas tal processo pode viabilizar os estágios superiores de civilidade almejados pelos espíritos mais sensíveis. Nesse sentido, um sistema público de comunicação social que se esmera no cultivo de características próprias da animalidade, nos moldes atuais, certamente está cultivando a barbárie e obstaculizando a evolução, sob a falácia da liberdade de expressão. Da mesma forma, fica evidente que a designação da pessoa certa para ocupar um cargo público exige mais do que um simples processo eletivo e que, ao se projetar o Estado, deve-se evitar que os próprios benefícios do cargo atraiam as pessoas erradas. Finalmente, cabe concluir que uma civilização com orientação S5 proverá, como suas principais indústrias, a da formação integral do homem e a do cultivo do discernimento humano superior e não estará centrada em questões patrimoniais próprias do pensar S3, posto entender as necessidades do organismo, como atividades-meio e, não, como, atividades-fim. Em conclusão, o pertencimento biológico à espécie humana mune o indivíduo das potencialidades de atingir a condição humana plena e, apenas por isso, exige – de uma sociedade minimamente organizada – que lhe propicie meios e condições próprias para ensejar esse florescimento pleno. Para tanto, os meios de informação e de comunicação públicos devem constituir ferramentas comprometidas com essa indústria, criando, inclusive, um clima cultural voltado para esse processo de elevação do discernimento, e empenhar-se na universalização desse saber. Enquanto, porém, tais condições não se viabilizarem, cumpre à sociedade desenvolver meios para avaliar de modo adequado as pessoas(5), antes de lhes confiar um cargo público ou ao definir que tratamento deve ser conferido a um contraventor, em face das suas ações. Os animais ferozes atuam com violência na caça de suas presas, mas se acalmam assim que a fome é satisfeita, sem guardar remorso, raiva ou rancor quando a presa escapa. O homem que atua apenas com os instintos guarda lembrança do fracasso, cultiva ódios e, como sabe planejar, transforma-se no mais terrível e traiçoeiro dos predadores(6), de sorte que nem os animais selvagens – se tivessem oportunidade – admiti-lo-iam em suas espécies. Com isso, pretende-se destacar que o projeto humano constitui empreendimento de risco que apenas pode dar certo se a humanidade souber unir-se em torno de um esforço planetário de cultivo das características humanas e de superação das características animais. Um mero animal racional, estagnado na animalidade, representa resultado inútil a uma natureza universal integrada e evolutiva, além do que, põe em risco, tanto o edifício social como a própria sobrevivência da espécie.

(3) Segundo expressão de Platão.
(4) Entendido que o pensador S5 preserva os pensamentos S1, S2, S3 e S4 , mas, ao se orientar pelo de maior lucidez e discernimento, entende quando cada um deles é apropriado e quando deve ser contido. Um pensador S4 que desconhece ou não é tocado pelo S4+ é um ser orientado pelo egoísmo e pela competição e acha ingênuo quem se preocupa com questões sociais ou justiça.                                                                                                                                    (5) Nesse sentido, quer parecer-nos que a Psicologia não encontrará grandes dificuldades para montar testes reveladores do padrão individual predominante de pensamento.
(6) Os atos terroristas do chamado Estado Islâmico, nos últimos anos, constituem exemplos claros do que, aqui, queremos indicar, embora exemplos tão contundentes possam ser coletados aqui mesmo, no Brasil.

Evolução organica e mental1

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