FILOSOFIA MAÇÔNICA X FILOSOFIA ACADÊMICA
Rubi Rodrigues[1]
Resumo. Somente na Metafísica, os estudos de filosofia ministrados nas faculdades públicas e privadas de Filosofia, correspondem, em alguma medida, aos estudos maçônicos de filosofia promovidos pelo Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA). Isso se deve, essencialmente, ao fato de ambos adotarem a mesma visão de mundo, segundo a qual o Universo, tido como ser relativo, possui origem ou fundamento em um ser ou uma instância absoluta e transcendental. Essa correspondência, porém, somente se revela perfeitamente ajustada, na medida em que a Metafísica contemple características que lhe confiram status de ciência, pois, somente nessas condições, a Metafísica torna-se capaz de cumprir, integralmente, o papel de alicerce e base conceitual que as demais ciências regionais demandam para se inserir, de modo coerente e harmônico, no edifício da cultura humana. A civilização moderna, seduzida pelo ter, não propicia, hoje, um ambiente amigável para a Metafísica, pois esta patrocina uma perspectiva centrada no ser. Por consequência, a perspectiva enfrenta dificuldades tanto no meio maçônico como no meio acadêmico. O exame panorâmico do ensino maçônico – que sempre se manteve centrado no ser – e a consideração da evolução da Metafísica – que, historicamente, perde a referência do ser – sugerem um afastamento. No entanto, ideias novas, surgidas no encontro dessas duas perspectivas, indicam que existe solução formal capaz de alçar a Metafísica Clássica à condição de Ciência Metafísica. Caso a Academia recepcione tais ideias, a confluência entre Filosofia Acadêmica e Filosofia Maçônica tende a se acentuar, posto que a Metafísica reconquistaria, frente às demais ciências, o papel paradigmático que, estruturalmente, cabe-lhe como filosofia primeira, da mesma forma que a doutrina maçônica já serve, hoje, de referência existencial e moral para o povo maçônico.
Termos para indexação: Metafísica. Ciência metafísica. Filosofia maçônica. Filosofia.
INTRODUÇÃO
Constitui propósito deste trabalho traçar um paralelo entre as ideias filosóficas adotadas e cultivadas nos chamados Altos Graus da Maçonaria Especulativa e as concepções filosóficas que são estudadas e desenvolvidas nas universidades públicas e privadas do ensino regular. Toma-se, como referência destas, o ensino ministrado nas faculdades de Filosofia e, como referência daquelas, a senda de trinta e três graus oportunizada pelo Rito Escocês Antigo e Aceito (REAA), posto que assim se contempla o predominante em cada um desses domínios.
Para que esse paralelo possa ser traçado e resulte em conhecimento útil, impõe-se caracterizar o tipo de filosofia acadêmica que encontra correspondência com a linha filosófica adotada pela Maçonaria, isso porque a filosofia maçônica tem-se mantido estável e fiel a certos princípios históricos, enquanto a filosofia acadêmica desenvolveu, no decorrer do tempo, diferentes linhas filosóficas alternativas, por vezes, tão divergentes que não encontram paralelo na Maçonaria.
Uma vez esclarecido que filosofia se trata, tornar-se-á possível identificar convergências e divergências e indicar o mérito de cada um dos esforços que, certamente, comungam do propósito geral de esclarecer ao homem, buscando a verdade e o discernimento.
Nessa definição de propósitos, cabe ainda ressaltar que não se pretende desenvolver aqui uma tese demonstrativa que explore essa relação em extensão e profundidade próprias de um trabalho acadêmico formal, mas apenas desenvolver um trabalho provocativo capaz de despertar interesses na questão, tanto do lado maçônico quanto do lado acadêmico.
A FILOSOFIA MAÇÔNICA
O estudo patrocinado pelo REAA compreende uma senda doutrinária dividida em trinta e três graus que são cursados pelos obreiros em cinco escolas sucessivas, mediante trabalhos específicos em cada grau. Sendo a Maçonaria uma instituição iniciática, os graus são obtidos em cerimônias de iniciação, e a habilitação exige a realização de trabalhos que são examinados por uma Comissão de Graus e precisam atender a certos requisitos formais. Esses requisitos vão da forma de organizar os conteúdos a aspectos inerentes à regularidade maçônica do postulante.
Individualmente, cada grau possui um livro texto, configurado nos moldes de um manual que contém a descrição de uma ritualística própria do grau. Esse manual estabelece uma cerimônia ritualística que é cumprida e encenada pelos celebrantes nas sessões e que explora valores e conceitos próprios do grau. No conjunto, a sequência dos graus configura um programa articulado de estudos, precisamente indicado e amparado pela coleção de manuais.
Um neófito que assistisse a uma sessão ou que lesse os manuais, dificilmente, pensaria que se trata ali de filosofia. A primeira leitura indica um estudo doutrinário de sentido moral que objetiva capacitar os estudantes no domínio de certa doutrina e na conjugação de certos valores. Para superar essa impressão superficial, impõe-se considerar a estratégia pedagógica adotada pela Maçonaria.
O elemento característico dessa pedagogia é o uso de símbolos, de metáforas e de alegorias na contemplação e na transmissão de significados. O símbolo, como se sabe, comporta uma densidade significativa muito superior a do conceito, ordinariamente utilizado. O conceito afigura-se discreto e estreito diante da densidade significativa do símbolo. Em contrapartida, o conceito é mais objetivo e preciso naquilo que pretende indicar. Pode-se vislumbrar a capacidade de significar do símbolo com a metáfora da cebola. O símbolo, do mesmo modo que a cebola, compreende camadas, no caso, de significados, de sorte que possui sempre um significado superficial, assim como a cebola possui uma casca. Retirando-se a casca, revela-se outra camada e assim, sucessivamente, até ser atingido o seu núcleo. Da mesma forma, comporta-se o símbolo que possui, também, significado superficial e a desvantagem de ser genérico e de indicar, normalmente, apenas um sentido geral, mas que possui, em contrapartida, a vantagem de ser de fácil entendimento e compreensão, independentemente do eventual preparo intelectual do estudante, do mesmo modo como a metáfora da cebola aqui empregada indica, com eficiência comunicativa, o sentido geral que se confere ao símbolo.
Esse significado superficial pode ser superado, paulatinamente, penetrando-se, pela meditação e pelo estudo, até as camadas significativas mais profundas. Com isso, viabiliza-se a apropriação de significados capazes de facultar níveis mais elaborados de discernimento e de compreensão.
Em decorrência dessa opção pedagógica, a Maçonaria não realiza provas ou testes de aferição do aprendizado e transfere, integralmente, ao estudante a obrigação e a responsabilidade de conduzir e dosar o seu empenho e determinar o grau de profundidade ao qual quer ascender no seu estudo bem como o grau de compreensão que almeja e pode atingir. Afinal, está também em jogo a capacidade pessoal de empenhar-se e de compreender, sabidamente variável de pessoa para pessoa. Não há, na Maçonaria, a pretensão de ensinar, mas apenas um esforço de voluntários, visando a criar oportunidades para que o aprendizado se dê.
Em razão dessa pedagogia, compreende-se que atingir o Grau 33 não significa desfrutar de um mesmo e equiparado grau de compreensão das coisas, do mundo ou da doutrina e nem mesmo significa que o percurso de estudo represente a mesma coisa para todos. Certamente, todos adquirem consciência ética mais apurada, ampliam o seu comprometimento pessoal com os destinos da humanidade e, por consequência, tornam-se cidadãos, socialmente, mais ajustados. No entanto, isso não implica, necessariamente, conquista de um grau excepcional de discernimento ou capacidade interpretativa diferenciada, o que, aliás, verifica-se também em qualquer escola profissionalizante regular, onde nem todos os alunos resultam em profissionais igualmente preparados e igualmente competentes.
Quando, porém, o estudante possui um alicerce conceitual suficiente e realmente se empenha e se dedica ao estudo, percebe os significados subjacentes e passa a compreender que ali residem pérolas de sabedoria de valor permanente e inestimável para toda a humanidade. Quando isso acontece e na medida em que acontece, o sentido profundo da doutrina maçônica revela-se, e o estudante pode ascender ao padrão superior de discernimento manifesto nos textos dos grandes pensadores que se destacaram na história da humanidade, não porque tenha estudado e domine a obra e o pensamento de cada um deles, mas porque se familiarizou com o tipo de perspectiva que, em boa parte dos casos, possibilitou-lhes tais percepções.
Esse patamar é conquistado na medida em que o estudante exercita o modo maçônico de ver o mundo, consubstanciado e amparado na doutrina professada. Nesse momento, a história e a missão da Maçonaria se esclarecem, e a própria posição do homem, no seio da natureza, assume contornos e significados mais nítidos, realistas e reconfortantes. Segundo nossa experiência pessoal, o benefício individual mais evidente dessa conquista revela-se em termos de serenidade de quem equacionou a sua relação com o mundo e com a natureza.
Embora a Maçonaria Especulativa tenha sido criada em 1762 e o Rito Escocês, unificado em 1786, o modo maçônico de ver o mundo constitui tradição que se perde em tempos imemoriais. Esse modo de ver o mundo pode ser sintetizado em um paradigma formal e foi expresso em modelos referenciais adequados à cultura de diferentes épocas e de diferentes povos. No Egito Imperial, por exemplo, foi expresso na forma de Triângulo Sagrado. Pitágoras o expressou na forma de Dédaca Sagrada. Platão o expressou como gêneros supremos, e Plotino, como primeiros princípios (archais). João, o Evangelista, o traduziu como Verbo Divino, “aquele que era no princípio”, e nós o propusemos, em 1999, na forma lógica de logos normativo, ordenador da racionalidade.
Não cabe neste trabalho entrar em detalhes sobre essas versões do paradigma, mas os fluxos civilizatórios que a História registra, em cada um dos casos, e que, no nosso entender, decorrem do advento de cada versão do paradigma são eloquentes testemunhos do poder criativo e esclarecedor desse modo de ver o mundo. Três mil anos de vigência de um mesmo modelo social no Egito, o milagre cultural da Grécia Clássica e a força da doutrina cristã gestada a dois mil anos, no seio da Comunidade dos Essênios, não podem ser atribuídos ao acaso, ao contrário, testemunham de forma insofismável, nas três ocasiões, a presença de modos poderosos de pensar.
Um estudo mais detalhado das versões históricas do paradigma constitui ainda um projeto pendente. A versão lógica moderna pode ser acessada em Rodrigues (1999; 2011), e um estudo que identifica a doutrina maçônica, com esse modo peculiar de ver o mundo, está disponível, na Internet, em trabalho intitulado A Doutrina do Verbo Solar (RODRIGUES, 2009). Sobre este trabalho, cumpre, desde já, alertar que se trata apenas de uma versão da doutrina maçônica, fruto do empenho pessoal de um dos seus obreiros que não possui delegação institucional da Ordem para falar em seu nome. Não se trata, portanto, de uma versão oficial da Ordem Maçônica, ao contrário, talvez essa versão sequer encontre concordância entre aqueles que concluíram os estudos dos trinta e três graus, pelas razões já expostas. Embora não seja imune ao espírito superficial e aos equívocos conceituais que dominam a Civilização Ocidental, a Maçonaria adota como norma rigorosa conservar a tradição e, assim, consegue manter o espírito dos seus mentores e cultiva um jardim com a esperança de que, no tempo certo, germine a semente devida.
De qualquer modo, como fica evidente ao se contemplar, sem dogmatismos, o Verbo do Evangelista, esse modo de olhar está alicerçado na presença de um princípio criador, fonte necessária para justificar a existência do mundo contingente e temporário, dentro do qual nos encontramos desfrutando a vida. Isso significa crer na existência de um princípio absoluto que transcende e fundamenta o Universo relativo que nos abriga, fornecendo-lhe origem racionalmente amparada, sem implicar qualquer antropomorfismo desse princípio criador. Daí a exigência de crença em um princípio criador para ingresso na Ordem Maçônica e daí, também, a sua neutralidade religiosa assumida.
Ora, esse modo de ver o Universo, como decorrente de um princípio criador, não constitui prerrogativa da Maçonaria. A Filosofia, em sua vertente Metafísica, adota a mesma perspectiva, ao consubstanciar-se em uma ciência do ser, ou seja, uma ciência que fundamenta o ente no ser.
Dada ser essa a Filosofia que melhor se ajusta para comparação com a doutrina maçônica, vejamos como a Metafísica pode ser contextualizada.
METAFÍSICA: A FILOSOFIA ACADÊMICA CORRESPONDENTE
Supostamente, a palavra metafísica surge, de modo acidental, com os compiladores da obra de Aristóteles que a usaram para designar a sua filosofia primeira, obra que se seguia ao texto destinado à Física e dedicado a estudar a natureza e os seus princípios. Porém, desde cedo, já se sabia não ser possível explicar a matéria pela própria matéria. Os gregos já diziam, por exemplo, que não são os ossos nem os músculos as causas para o movimento de um braço. Era preciso buscar outra explicação. Segundo registro textual do próprio Aristóteles, a Filosofia surge como indagação a respeito do princípio de todas as coisas e recebe, como primeiras respostas, os quatro elementos naturais (água, ar, fogo e terra) por parte dos pensadores originários, conhecidos, na história da Filosofia, por pré-socráticos.
No entanto, somente com Platão, a Metafísica atingiu sua plenitude. O ponto de partida para isso foi o conceito de forma. Embora o conceito platônico de forma seja mais complexo, podemos obter uma primeira compreensão, considerando o seguinte exemplo: um copo de vidro e uma janela de vidro são dois objetos diferentes, porém feitos com a mesma matéria. O que diferencia um do outro é justamente a forma, o que significa, em termos platônicos, que a forma é a causa da matéria. Surgida na Grécia de então, a metáfora da cera ajuda a compreender o espírito da época, o tipo de raciocínio predominante que amparava essas respostas. A cera admite ser moldada e usada para esculpir qualquer coisa, isto é, pode assumir qualquer forma. A escultura pode, depois, voltar a ser derretida e ser, novamente, usada para esculpir outra forma. Nesse caso, a forma pode mudar, mas a substância (cera) permanece sempre a mesma. Esse raciocínio, estendido à natureza, explicava tanto a eternidade do Universo (enquanto forma), quanto o surgir e o desaparecer contínuo dos fenômenos mundanos (enquanto matéria).
Essa questão coloca em relevo a eternidade ou não do Universo, ponto central da discussão metafísica, desde seu surgimento, e que constitui requisito essencial para as discussões seguintes. Tenha-se que a ideia de que o Universo era eterno persistiu durante toda a Grécia Clássica e a Idade Medieval, perdendo sustentação apenas na Modernidade com as descobertas da Física e da Astrofísica.
Nesse sentido, a primeira grande contribuição foi o legado de Parmênides (530-460 a.C.), que percebeu que do devir – ou seja, do Universo contingente, do Universo que surge e que perece ou, em termos filosóficos, daquilo que vem a ser – não se poderia extrair um princípio que explicasse a razão de sua existência. Em face disso, estabeleceu o conceito de ser, fazendo uma distinção entre o que desde sempre é – o absoluto – e o que vem a ser (devir) – o relativo –, de forma que esse conceito possa cumprir o papel de princípio primeiro. O devir não podia constituir o princípio, uma vez que não podia explicar aquilo pelo qual o devir é.
A percepção do ser como princípio envolve muitas implicações, e o estudo delas constitui justamente objeto da Metafísica, não cabendo tratar disso neste trabalho. Porém, uma implicação bastante evidente é a impossibilidade de esse ser estar sujeito à corrupção que atinge a todos os fenômenos que se apresentam à nossa experiência, sendo, portanto, imperecível ou eterno. Ora, sendo o ser eterno e imutável pelo princípio da não-contradição, tudo aquilo que, ao contrário, está sujeito ao devir e à degradação estaria associado ao não-ser. Mas, como considerar não-ser a multiplicidade fenomênica – as coisas, a natureza – que se oferece à nossa experiência e que não pode ser ignorada?
Nas palavras do professor Molinaro, cujo curso histórico sintético de Metafísica baliza este capítulo, “essa contradição constitui o formidável problema deixado por Parmênides como herança para a filosofia posterior” (MOLINARO, 2004, p. 23). Realmente, nessa contradição, já se encontra a semente que irá frutificar nas dicotomias entre objetivo/subjetivo, absoluto/relativo, espírito/matéria, (…) que são recorrentes na discussão filosófica de todos os tempos. Assim, a perspectiva de Parmênides já contempla a abordagem que vai amadurecer sob o título de Metafísica.
Platão (427-347 a.C.) vai assumir a perspectiva do ser de Parmênides e resolver a contradição apontada, considerando a diferença entre o uno e o múltiplo e demonstrando que essa contradição entre ser e não-ser é uma questão ôntica – do existir no mundo – que não pode ser confundida com a diferença ontológica – das essencialidades constituintes – que permeia o mundo relativo e que não envolve qualquer contradição. Platão vale-se, também, da percepção central de Anaxágoras (500-428 a.C.), que percebia, na natureza, a presença de uma inteligência organizativa que moldava e dominava todos os fenômenos, sem se misturar com eles (REALE, 2009), ideia da qual, eventualmente, germina o conceito de forma e de mundo das ideias de Platão.
Platão dispunha, por outro lado, também como antecedente, das ideias de Pitágoras (570-496 a.C.) sobre cosmos e leis universais, perfeitamente compatíveis com a inteligência detectada na natureza por Anaxágoras, de sorte que, ao se perguntar sobre qual inteligência era essa, detectada e não esclarecida por Anaxágoras, desaguou naturalmente na concepção de forma organizativa e de gêneros supremos, construindo, com isso, a mais brilhante e influente das concepções filosóficas de todos os tempos.
Aristóteles (384-322 a.C.) vai dar continuidade ao projeto de Parmênides e de Platão, concentrando-se, porém, não no ser, mas no devir do mundo e, portanto, no ente. Com isso, o ser de Aristóteles é ato, isto é, forma manifesta em ente. Continua interessado nos fundamentos do mundo, mas o que lhe atrai, em particular, são os fundamentos do ente no fluxo do devir. Por isso, acaba desenvolvendo uma onto-teo-logia que contempla o ser em ato e lhe atribui origem divina, mas estende-se ao estudo do funcionamento do ente enquanto fenômeno submetido ao fluxo de geração e decadência (devir). Daí a sua contribuição ao aperfeiçoamento do princípio da não-contradição e o seu magnífico trabalho de especificação da lógica formal. Apesar da evidente inclinação de Aristóteles para a multiplicidade e para o mundo objetivo, a sua filosofia primeira mantém-se na linha do projeto de Parmênides, preserva a identidade entre ser e pensar e, efetivamente, merece o título de Metafísica.
Santo Tomás (1225-1274) vai-se insurgir contra o ser, como ato ou forma de Aristóteles, e, de certa maneira, vai tentar restabelecer o ser de pura potência que se manifesta em ato no ente. O trabalho de Santo Tomás estende-se em tentativa de provar a existência de Deus, na linha de Santo Anselmo (1033-1109) – no nosso entender, sem o mesmo sucesso deste –, mas com o mérito de mostrar que, em Aristóteles, conscientemente ou não, dá-se um primeiro ataque ao ser de pura potência, em favor de um ser identificado com o ato: o ato definido como ser.
Na sequência dessa sintética história da Metafísica, Molinaro (2004) destaca, como ponto de inflexão, Immanuel Kant (1724-1804), que oferece uma crítica contundente à Metafísica, ao ponto de responder, em boa parte, pelo desprestígio da Metafísica, em toda a Modernidade. Molinaro esclarece, porém, que Kant, ao desenvolver a sua crítica, tinha em vista uma metafísica muito particular: a de Christian Wolff (1679-1754), que não é reconhecida como legítima Metafísica. De fato, Wolff divide a Metafísica em geral e em especial. A sua Metafísica geral, designada de ontologia, segue Aristóteles ao privilegiar o ente, mas, ao influxo da precedência da consciência, contempla não o ente em seu ser, como a tradição, mas o ente enquanto possibilidade do pensar. Focaliza não o ente, mas o conceito de ente. Trata-se, portanto, em última instância, de uma teoria do conhecimento ou de uma ciência da subjetividade. Mas Kant irá refutar em particular a sua Metafísica especial subdividida em cosmologia (ciência do mundo), psicologia (ciência da alma) e teologia (ciência de Deus). Com essa estrutura, a concepção metafísica de Wolff desvia-se da fundamentação ôntica do ser pelos caminhos da subjetividade e priva a Metafísica de sua pedra fundamental representada pelo ser, daí o efeito devastador da crítica quando a acusa de racionalista, dogmática e analítica, vale dizer, tautológica.
Embora a crítica de Kant recebesse logo uma refutação poderosa com os trabalhos de Hegel (1770-1831), o prestígio da Metafísica não foi restabelecido; a Filosofia manteve-se, dali em diante, tratando de teoria do conhecimento, de lógica, de ética, de linguagem e de filosofia da ciência; e os estudos de metafísica ficaram, de um modo geral, marginalizados. De certo modo, os estudos de Filosofia foram capturados pelo espírito do tempo: esqueceram-se as questões magnas e foram tratar de questões úteis à indústria, aos governos e à economia. Hegel mostrou claramente que o abismo que Kant criou entre ser e pensar não tinha justificativa aceitável e, além disso, colocava sua própria tese liminarmente em contradição, posto que o seu fenômeno da consciência, incapaz de transpor os limites da mente, estranhamente pressupunha um objeto inatingível situado mais além. Apesar disso, Hegel também se insurge contra os antigos, não por se colocar de acordo com Kant, na separação de ser e pensar, mas por entender que a simples equiparação de ser e pensar constituía ingenuidade, indicando virtualmente uma interpretação dos antigos em termos de igualdade entre ser e pensar e não de copertinência. Hegel ainda vai tentar tratar, dialeticamente, as questões ontológicas, mas, nesse caso, as nossas concepções de ontologia e dialética se distanciam a ponto de desistirmos de seguir seus argumentos.
Molinaro (2004) encerra seu pequeno histórico da Metafísica, mencionando Heidegger, para quem a história da Metafísica é a história do esquecimento do ser. Heidegger (1889-1976) repõe a questão do ser dos entes e se vale de um método de padrão fenomenológico que, diferindo do método de Husserl, não vai em busca das essencialidades conceituais do ser, mas procura iluminação ou revelação do ser mesmo, advogando que ele apenas se mostra de forma emotiva e pré-racional. Segundo Heidegger, na leitura de Molinaro (2004, p. 54), “a metafísica, ligada a um pensamento e a uma linguagem racionais e conceituais, deve ser superada, e torna-se necessário encetar a via de um pensamento e de uma linguagem vocativos, rememorativos, poéticos”.
Quando Heidegger adota o método de padrão fenomenológico, adota também um modo específico de olhar e percebe que a busca do ser precisa ser realizada, introspectivamente, nas camadas mais profundas da consciência, virtualmente, avançando por regiões abismais, pouco acessíveis, superando o âmbito das lembranças e adentrando no âmbito de virtuais registros físico-químicos inconscientes, relativos aos comportamentos instintivos, que presidem os comportamentos orgânicos que independem da consciência e que, em linhas gerais, são responsáveis pelo que chamamos de instintos. Dado, porém, que não dá crédito à lógica transcendental discutida por Husserl, não percebe que ela determina um padrão de inferência que integra a racionalidade e conclui que a Metafísica somente se torna possível à margem da racionalidade, como pura emotividade que somente admite expressão como sentimento ou mediante uma linguagem poética. Esse equívoco, já o encontramos em trabalhos científicos, como o de Bergson (2009), que também separava razão e intuição. Deve-se isso, basicamente, à crença na existência de apenas uma única lógica, a lógica do terço excluso de Aristóteles, e, mesmo quando se menciona um modo dialético de olhar, em suas diferentes concepções e formulações, nas quais os casos de Platão e de Hegel são exemplares, entende-se isso apenas como método e não se percebe, de um modo geral, que método e lógica possuem interdependência estrutural. A pluralidade lógica, apesar dos muitos precedentes, começa a tomar forma definitiva apenas com Sampaio (2001).
Kant, em sua crítica, reconhece a Metafísica como impulso natural do homem em propor as questões fundamentais sobre o mundo, a vida, Deus e o Universo. Enquanto ciência capaz de oferecer respostas a tais questões, defende que a Metafísica, historicamente, perde-se em contradições inevitáveis. Por isso, sustenta que uma metafísica futura que pretenda apresentar-se como ciência precisa, antes de tudo, responder a duas perguntas: se é possível, em geral, tal ciência e como é possível.
Molinaro (2004) entende que Kant tinha em mente, na ocasião, a Metafísica de Christian Wolff e, nessa linha subjetiva, como foi visto, a crítica não atinge a Metafísica que fundamenta o ente no ser, que trata do ser dos entes. Apesar disso, é forçoso reconhecer que as questões colocadas por Kant, sobre a possibilidade da Metafísica como ciência e sobre as condições nas quais tal ciência seja possível, são também pertinentes e aplicáveis à Metafísica Clássica de Parmênides e de Platão, como são aplicáveis a qualquer ciência. Por outro lado, como testemunha o legado da tradição filosófica, a pesquisa metafísica resulta de um mergulho racional introspectivo em busca do ser, dado que a Metafísica parte da hipótese de que é o ser que fundamenta o ente. Afinal, ninguém pode ignorar a presença de um ser na origem de seus pensamentos e, tampouco, deixar de identificar-se nele e, assim, perceber que toda a extensão do seu ente está contida e abarcada nesse ser, daí, também, subjetivamente, afigurar-se perfeitamente razoável considerá-lo fundamento.
Hoje, dispõe-se de quase cinco mil anos de esforços, tentando comprovar essa hipótese e conferir-lhe termos irrefutáveis; ao examinar tais registros, constata-se, no entanto, que os grandes pensadores mergulharam fundo nessa busca e revelaram que esse “oceano do ser” comporta não apenas amplitude oceânica, mas também profundidade abismal. Em razão dessas circunstâncias, constata-se que cada um desses pensadores conseguiu atingir certa profundidade em seu mergulho, conseguiu vislumbrar certas coisas e preocupou-se em registrar para a posteridade aquilo que viu. Enfrentou, naturalmente, dificuldades para proceder a esse registro, não apenas em face do inusitado das suas percepções, mas também pelas limitações da linguagem em disponibilizar conceitos correspondentes, capazes de expressar devidamente o percebido. De um modo geral, todos tentaram superar esses problemas, formulando e reformulando definições, estabelecendo analogias e mesmo usando metáforas. Apesar disso, as diferenças que até hoje encontramos entre seus comentadores e o fato de continuar surgindo novas interpretações dos clássicos gregos, no mínimo, indicam que, por mais consistentes que sejam as diferentes contribuições históricas para uma ciência metafísica, de fato, ainda não foram estabelecidas coordenadas capazes de possibilitar a verificação metódica, por terceiros, das afirmações que tais pensadores fizeram. Compreende-se que o labor metafísico implica mergulho introspectivo a partir da consciência mais superficial do ente em direção ao ser que o fundamenta; no entanto, esse mergulho carece de referências orientativas que balizem o percurso, tornem possível a repetição das experiências e assegurem aos pesquisadores que todos estão contemplando o mesmo objeto ou, ao menos, referindo-se ao mesmo nível ou à mesma instância de manifestação. Sem isso, fica desatendida uma condição essencial do modo científico de proceder que consiste na possibilidade de se repetirem as mesmas experiências, de sorte a se confirmar ou refutar as proposições.
Naturalmente, certos esforços foram realizados no sentido de mapear o virtual campo de estudos de uma metafísica, não só em tentativas de caracterizar e definir as ciências implicadas, correlatas ou adjacentes – a Filosofia, a própria Metafísica, a Ontologia, a Teologia e a Cosmologia –, mas também em termos de ordenamento dos conteúdos, tais como as duas navegações de Platão, a sua distinção entre mundo sensível e mundo inteligível, os conceitos de noético e eidético, a separação de espírito e matéria, (…). Apesar disso, de concreto mesmo, temos apenas a admissão geral de que fazem parte da realidade, além dos aspectos materiais, aspectos espirituais ou não materiais, os quais demandam uma ciência metafísica específica, distinta daquela que se concentra na materialidade. Porém, nenhum metafísico dispõe ainda de um sistema de ordenadas capaz de conferir foro científico ao trabalho de prospecção dessa instância. A Metafísica fornece orientação básica ao indicar que o mergulho, nesse oceano, seja efetuado no sentido do ser fundamento, mas isso revela-se insuficiente para caracterizar um labor científico dotado de segurança mínima. Na verdade, as próprias definições de Filosofia e de Metafísica são ainda hoje objeto de disputa, o que, por si só, evidencia que Kant tinha razão nesse aspecto. Permanecem, portanto, atuais e pertinentes, as duas questões kantianas. Afinal, é possível tal ciência e, em caso positivo, como é possível?
Uma primeira contribuição no sentido de oferecer respostas positivas para essas questões, admitindo-se que Parmênides tenha razão ao identificar o ser como fundamento, constitui legado de Platão, ao tratar da questão do um e do múltiplo. Platão, no diálogo Parmênides, externa sua perplexidade diante da unidade indivisível do ser e da também unitária compleição da totalidade dos fenômenos, esta sabidamente constituída de partes. Platão percebe que o ser constitui uma unidade irredutível e indivisível, constituindo, portanto, a unidade da mais extrema simplicidade. Por outro lado, percebe que os fenômenos todos comportam uma instância de totalidade que lhes confere, também, o status de unidade, agora, porém, com a característica de ser composta de partes que são determinantes de sua complexidade. Esses dois “um” de Platão, referindo-se o primeiro, ao ser, e o segundo, à totalidade do ente, configuram e delimitam, entre si, um espaço de possibilidades dentro do qual tudo está, necessariamente, contido (RODRIGUES, 2012).
Representando esse espaço de possibilidades por um vetor e transpondo esse vetor para a figura do mergulho mental introspectivo em busca do ser que acima adotamos para indicar o labor metafísico, logramos estabelecer com precisão a ordenada “vertical” de mergulho, tendo a totalidade da consciência ou a sua superfície unitária como ponto de partida, e o ser unitário e indivisível, o ser fundamento, como meta última a ser atingida. Com isso, esse vasto oceano da mente recebe um primeiro balizamento consistente, de vez que esse vetor indica não apenas os dois extremos mentais envolvidos, mas também o sentido no qual se desdobra a complexidade, dado que, em um extremo, temos a simplicidade radical do ser e, no outro, a extrema complexidade expressa como totalidade da consciência. Ora, dado que esse vetor indica o caminho da complexidade, temos, então, um segundo elemento de orientação para o mergulho. Partindo-se da totalidade da consciência, a busca do ser configura, assim, uma rota no sentido da simplicidade extrema e, inversamente, partindo-se do ser, o vetor configura uma rota de crescente complexidade.
A Geometria ensina, por sua vez, que complexidade crescente exige amplitude lógica também crescente para poder manifestar-se. Em particular, a geometria dimensional disponibiliza conceitos que permitem a mais elementar e a mais minuciosa distinção de amplitudes ou de grau de complexidade que a mente humana consegue perceber e operar. Por exemplo, caso o âmbito lógico ou a amplitude disponível para a manifestação existencial seja de apenas uma dimensão, torna-se inviável, nesse âmbito, a manifestação ou a presença de retas paralelas. Conforme lição que remonta a Euclides (300 a.C.), retas paralelas demandam amplitude bidimensional para poderem existir, ser representadas ou mesmo ser concebidas. Na amplitude de uma só dimensão – âmbito que se pode imaginar como resultado do deslocamento de um ponto (um lugar no espaço desprovido de dimensão), em um mesmo sentido –, o máximo que logicamente se admite é uma reta ideal, nada mais. Da mesma forma e pelas mesmas razões, uma amplitude de duas dimensões não comporta um poliedro que demanda amplitude de três dimensões para existir ou ser concebido. Estando disponível um âmbito lógico de três dimensões, fica facultado o surgimento da matéria, tal como a conhecemos, e o poliedro idealizado pode ser até materializado, como, por exemplo, no monumento conhecido por Pirâmide de Quéops. Isso porque, em um âmbito composto de três dimensões lógicas, está disponível amplitude lógica suficiente para comportar tanto o espaço como esse fenômeno material. Já para explicar a sua construção pelo homem ou para explicar a sua longevidade, impõe-se contemplar o tempo, e isso, desde as lições de Einstein, exige uma quarta dimensão.
Ora, combinando as propriedades da geometria dimensional com o vetor indicativo do sentido do mergulho introspectivo, temos o campo de trabalho do labor metafísico plenamente organizado e balizado com ordenadas claras que permitem a precisa localização das percepções de hoje e de todos os tempos, de sorte que o vislumbrado por um pensador possa ser verificado por outros e as diversas percepções possam ser confirmadas ou não. Com isso, atendem-se as objeções de Kant, e o labor metafísico assume foros de ciência verificável, como ele, com toda razão, exige em sua crítica.
Não cabe, obviamente, neste trabalho, entrar em detalhes sobre o modelo organizativo da racionalidade, possibilitado pela junção do vetor indicativo do caminho da complexidade, com a organização da complexidade facultada pela geometria dimensional. Esse modelo que designamos de logos normativo está amplamente discutido e disponível para todos em publicações próprias (RODRIGUES, 1999; 2011). Parece útil, entretanto, mencionar dois aspectos desse modelo, de sorte que se torne possível estabelecer comparações mais ajustadas dessa Metafísica com foros de ciência que o modelo viabiliza e com a doutrina adotada pela Maçonaria.
Em primeiro lugar, o modelo do logos normativo sanciona a fundamental percepção dos pensadores clássicos que identificavam ser e pensar, dado que viam, no pensamento, a manifestação própria e inequívoca do ser. Independentemente do sentido exato que Platão atribuía à relação entre ser e pensar, que, para alguns seria de copertinência e para outros de igualdade, o modelo do logos normativo, na verdade, define tanto a estrutura da mente humana, ao organizar o âmbito que permeia a totalidade da consciência e o ser que a fundamenta, como também define a estrutura ontológica do ente em geral, ao explicar como a complexidade objetiva da natureza desdobra-se e, dimensionalmente, constitui-se. Isso se deve ao fato de as amplitudes presentes nas diferentes instâncias dimensionais do logos, em razão das amplitudes específicas de cada instância, determinarem, cada uma delas, um padrão de movimento privativo. Dado que, para o logos normativo, a existência relativa caracteriza-se pelo movimento – em oposição ao absoluto que se caracteriza pela imobilidade –, cada uma das suas cinco instâncias, em razão de seu padrão privativo de movimento, comporta um modo próprio de manifestação existencial. Assim, no plano objetivo, os cinco padrões de movimento configuram leis determinantes de modos de manifestação existencial e, no plano subjetivo, esses padrões de movimento configuram as cinco lógicas determinantes dos cinco padrões de inferência facultados ao homem. Dessa forma, o modelo do logos explicita que a relação de igualdade entre ser e pensar que os antigos defendiam encontra perfeito respaldo, não porque ser seja, literalmente, igual a pensar e nem pelo fato de o pensamento denunciar a presença do ser, mas sim porque o padrão de movimento existencial do ente vislumbrado em uma inferência corresponde exatamente ao padrão de inferência capaz de contemplar aquele movimento existencial. Ser e pensar são iguais, portanto, enquanto padrões de movimento existencial, um é objetivo e o outro é subjetivo. Naturalmente, quando a existência abrange tanto o relativo como o absoluto, ficam superadas todas e quaisquer tentativas de liberar a subjetividade da obediência às leis que regulam o restante da natureza. Repita-se: ser e pensar existem e, portanto, obedecem ambos às mesmas leis que regulam a existência.
Decorrem dessa solução muitas implicações que não cabe discutir neste trabalho, mas apenas como evidência do poder esclarecedor do modelo, menciona-se que essa solução também explica em que se situa a correspondência que a Teoria do Conhecimento tem procurado identificar, permeando sujeito e objeto: a explicação de um fato natural corresponde ao fato natural, na medida em que o movimento inferencial reproduza, com fidelidade, o movimento existencial do fato. O relato resulta fiel quando a lógica dele corresponde ao movimento ou à manifestação do fato e não porque a palavra usada para relatar tenha alguma relação estrutural com o relatado. Como é sabido, o caráter representativo da linguagem é, meramente, convencional.
Em segundo lugar, cumpre especificar com precisão as ciências envolvidas, de tal sorte a organizar e disciplinar o terreno do conhecimento dentro do qual essas operações e pesquisas mentais podem ter curso em moldes científicos. Sem isso, não apenas a compreensão fica dificultada, como também se pode prever grande desperdício de tempo, levantando e propondo questões a uma disciplina que não lhe dizem respeito porque não se propõe e nem lhe compete tratar disso.
Nesse sentido, Platão deixou uma primeira contribuição com a sua metáfora náutica das duas navegações. Para Platão, primeira navegação é aquela que se faz com o auxílio de velas, e velas, segundo Platão, são os nossos sentidos orgânicos, sendo o vento os estímulos que recebemos do mundo por meio deles. Portanto, para Platão a primeira navegação contempla apenas o conhecimento do mundo realizado dentro do qual estamos emersos. Concordando com Platão, designemos com o título de Cosmologia, o conjunto das ciências que tratam do caso concreto de Universo que nos abriga como seres vivos, sensitivos e pensantes. A Física moderna tem aventado a arrojada hipótese de existirem outros universos distintos deste, e, embora isso continue apenas no plano das hipóteses, ajuda-nos a colocar a questão sobre as condições segundo as quais este e qualquer universo podem, virtualmente, tornar-se real e existir. Essa questão, posta em termos das condições que permitiram ao nosso Universo passar de potencial para real bem como desdobrar-se e ocupar um campo existencial próprio, coloca de forma irrecusável a necessidade de um conhecimento de plano superior que se distingue, antecede e não se confunde com os conhecimentos relativos ao caso particular de universo que conhecemos e que acima, em conjunto, propomos objetivar com um saber designado por Cosmologia.
A esse conhecimento, de nível superior ao nível das ciências que tratam do nosso Universo particular, designamos por Filosofia e, acolhendo a genial figura mitológica grega da “morada dos deuses”, designamos o conhecimento contemplado nesse plano por “Filosofia Olímpica”. De fato, tratando-se de um saber que se situa fora da Cosmologia, a metáfora de um papo que se desenvolve entre moradores do Olimpo possui a propriedade de situar devidamente esse plano de considerações e evitar qualquer confusão com as ciências do plano objetivo do Universo realizado. Temos, então, nessa “Filosofia Olímpica” a segunda navegação de Platão, aquela que ocorre quando o vento desapareceu por completo e o único meio de seguir viagem é recorrendo aos remos – imaginação/lógica – e à força muscular – vontade de compreender.
Uma vez situada a “Filosofia Olímpica” nesse patamar, a perspectiva metafísica torna-se iniludível, e a Metafísica fica estabelecida como disciplina inaugural dessa filosofia, dado tratar-se da ciência cujo objeto é o ser e dado tratar-se da única disciplina que consegue aportar um fundamento racional para o advento do Universo realizado. Essa Metafísica lança mão da hipótese da existência de um ser absoluto como requisito necessário para justificar o advento e a existência do ser relativo, e seu escopo deve limitar-se ao ser, nessas duas formas básicas de manifestação. Essa Metafísica deve restringir-se a fornecer a pedra fundamental do edifício do conhecimento. Para esse propósito, basta que essa Metafísica seja considerada, definida e tomada como ciência meramente noética– de nous, mente –, de sorte que não caiba questioná-la sobre a existência extraconsciência do ser absoluto. Tomada a Metafísica como ciência noética, ficam superadas as divergências históricas sobre a existência objetiva de Deus, e a demonstração da existência do ser absoluto na linha de argumentação de Santo Anselmo pode ser admitida por todos como saber solidamente assentado.
Em face dessa definição de Metafísica, como ciência do ser, de caráter noético, torna-se indispensável completar a “Filosofia Olímpica” com duas disciplinas derivadas da Metafísica: a Teologia e a Ontologia, estas sim de caráter eidético – de eidos, realidade objetiva, indicando um conhecimento que, de algum modo, integra a realidade. Com isso, passa a ser problema da Teologia demonstrar a existência factual, extraconsciência, do ser absoluto e passa a ser problema da Ontologia demonstrar a existência factual, extraconsciência, do ser relativo.
Observe-se que essa Ontologia fica situada na fronteira entre a Metafísica e a Cosmologia, o que ressalta seu papel necessário: o de definir as condições segundo as quais o ser relativo pode se estabelecer como existente e evoluir, na existência relativa, até adquirir a complexidade universal que a ciência já conseguiu detectar e comprovar.
Ora, o modelo geométrico dimensional do logos normativo, acima mencionado, tomado no sentido do ser para a totalidade do ente, visa, justamente, a explicar, em perspectiva metafísica, com fundamento e origem no ser, de que maneira esse processo de complexificação do ente se realiza: desdobrando as amplitudes/dimensões necessárias ao advento da complexidade. Seguindo as determinações da Metafísica, faz isso alicerçando o advento do ser relativo em um ser absoluto que transcende o mundo relativo. Essa Ontologia não precisa, porém, entrar no mérito do ser absoluto, dado que seu objeto é o ente relativo. Caso o modelo assim construído explique, lógica, racional e adequadamente o percurso evolutivo que permeia da singularidade quântica mais elementar detectada à maior complexidade fenomênica conhecida, estará o homem instrumentalizado com um paradigma radicalmente universal que o habilita a olhar o mundo de forma adequada e competente. E note-se que isso independe da resposta que a Teologia venha a dar ao seu problema.
Portanto, embora a “Filosofia Olímpica”, a Metafísica e a Ontologia, assim conceituadas, não tenham ainda recebido a sanção da Academia e seja previsível que em muitas faculdades de Filosofia a eventual retomada da Metafísica possa causar embaraços, em face dos rumos tomados pela Filosofia na Modernidade, há um bom número de pensadores que nunca abandonaram a perspectiva metafísica e que acolherão de bom grado uma concepção ontológica que resgate o papel central do ser na vida e que confira a essa disciplina o caráter de ciência verificável que ela merece e comporta.
METAFÍSICA X DOUTRINA DO VERBO SOLAR
Como foi visto, a perspectiva metafísica que privilegia o ser não encontra muita ressonância no mundo de hoje, particularmente no meio acadêmico. Com isso, a Maçonaria, ao cultivar e preservar essa perspectiva, coloca-se como cidadela de resistência secular, insistindo na formação de mentes capazes de lançar o olhar metafísico sobre o mundo e esperando, pacientemente, que os desvios de perspectiva, surgidos com o Iluminismo no sentido da materialidade – boa parte em represália aos desvios espiritualistas que emergiram a partir do Concílio de Niceia, caracterizando ambos momentos de afastamento e de esquecimento do ser – sejam superados e o ser reassuma a posição que lhe cabe, no centro do mundo racional.
Mas, se a vida da Metafísica, no meio acadêmico, não anda fácil, em razão dos rumos lógicos, epistemológicos e linguísticos adotados pela Filosofia moderna, também, na Maçonaria, a cultura materialista, utilitarista e pragmática destes tempos deixa marcas indeléveis. Poucos sabem ou se dão conta de que a perspectiva maçônica é metafísica e que, no fundo, o REAA trata de Filosofia. Há quem designe o ensino ministrado de Filosofismo, possivelmente, sem perceber que, com isso, está depreciando, injustamente, o ensino e a doutrina. É obvio que a Maçonaria não ensina Filosofia, usando o mesmo método adotado nas faculdades de Filosofia, mas, para defender que não se trata de Filosofia, seria necessário mostrar conteúdos discrepantes ou, então, o afastamento da Maçonaria do rigor lógico e metodológico das ciências. Ao contrário disso, a Maçonaria não aceita dogmas, exige sempre fundamentos racionais e defende, inclusive, que não pode haver discrepância entre ciência e espiritualidade, a não ser em razão de equívocos referenciais.
Não só não existe afastamento significativo entre a perspectiva metafísica acadêmica e o modo de ver o mundo da Maçonaria, como ambos perseguem a mesma estrutura ontológica do Universo. A evidência disso está no Grau 29 do Rito Escocês que trata de uma futura cidade ideal: uma cidade designada por Jerusalém Celeste. Essa metáfora descreve uma cidade circular com doze bairros e uma praça central que o manual retrata, detalhando inclusive a planta baixa da cidade com seus equipamentos.
No centro da praça, existe um cordeiro – representando a divindade – do qual fluem cinco “rios de amor” que vão abastecer um lago da filantropia. Este vai regar a “Árvore da Vida” que produz doze frutos que abastecem os bairros. Decodificando o simbolismo, verifica-se que não se trata de construir uma cidade concreta dentro da qual os homens pudessem viver em harmonia, mas sim de construir e organizar uma sólida e inexpugnável “cidadela da razão” com a qual o homem torna-se senhor consciente de si, porque conhece o mundo dentro do qual vive e reconhece as condições estruturais que condicionam esse viver. Trata-se, portanto, de desenvolver a maturidade cognitiva do homem e, nesse momento, vem o mais espantoso: os cinco rios do amor são especificados como sendo: 1. amor paternal, 2. amor conjugal, 3. amor filial, 4. amor fraternal e 5. amor social, expressando, no conjunto, o caudal de amor que flui do Criador e se manifesta no homem.
Ora, segundo a Ontologia Olímpica que é a proposta disponível de Metafísica com foro de ciência, as cinco instâncias do logos normativo configuram cinco padrões lógicos bem definidos: 1 lógica transcendental, 2 lógica da diferença, 3 lógica funcional, 4 lógica temporal e 5 lógica holística ou da totalidade. Observe-se que o amor paternal nos vincula com a precedência e, em última instância, com a origem transcendental, o que corresponde ao movimento e à lógica presente na 1a dimensão do logos, em que a lógica transcendental explica a emersão do ser no mundo relativo: a relação pai criador-filho criado. O amor conjugal, na sequência, busca o complemento estrutural inescapável e nos vincula ao gênero perdido na divisão celular construtora do organismo e que nos deixou incompletos e corresponde à lógica da diferença e à simetria estrutural presente na 2a dimensão. O amor fraternal, por seu turno, nos vincula aos amigos e contemporâneos que são companheiros na jornada da vida e corresponde à lógica funcional e à lei de ação e reação que preside a instância de três dimensões, dentro da qual são viabilizados matéria e espaço. O amor filial vincula o homem à sua descendência biológica e corresponde, precisamente, à 4a dimensão que disponibiliza a lógica dialética que preside a temporalidade e a história. Finalmente, o amor social corresponde àquele sentimento de amor à humanidade como um todo, tão evidente em muitos grandes homens, como, por exemplo, em Jesus e em Gandhi, e que corresponde à instância de totalidade do logos, em que a lei é integrativa, e a meta é de reconstrução e de preservação da unidade-totalidade.
Diante dessa evidência, não há como deixar de constatar que, em ambas as concepções, fluem do absoluto, na construção do mundo relativo, cinco leis universais que comandam e regulam tudo o que acontece no mundo. Sampaio (2001) percebeu essas leis na forma de lógicas, o logos normativo, com seu modelo de geometria dimensional as percebe como leis determinantes dos padrões de existência e a Maçonaria as percebe como modos de manifestação do amor e, com isso, mostra que nem mesmo os sentimentos escapam das leis universas.
Há, portanto, coincidência de perspectiva entre uma Metafísica de foro científico, possível no meio acadêmico, e a doutrina de caráter espiritualista da Maçonaria. A coincidência é tão precisa que a estrutura ontológica do ente, capaz de tornar a Filosofia definitivamente integrada e útil ao homem, fornecendo o alicerce conceitual de toda a Cosmologia – o logos normativo – corresponde, fiel e exatamente, à Palavra Perdida perseguida pela Maçonaria, simbolizada pelo “Verbo, aquele que era no princípio”, que é responsável também pela identificação das Lojas Maçônicas como sendo Lojas de São João.
CONCLUSÃO
Estamos, hoje, tanto a Maçonaria como a Academia e a Humanidade, enfrentando a exaustão de um modelo civilizatório que prioriza o ter e esquece-se do ser. A crise financeira internacional representa apenas a fratura exposta mais evidente, mas é possível identificar inúmeros sistemas de preservação da vida comprometidos e muitas opções funcionais, acusando crescente ineficiência e estreito horizonte de sobrevivência. Nessas condições, os esforços no sentido de soerguer a Metafísica e fornecer ao homem um paradigma efetivamente dotado de universalidade, além de uma base segura para o desenvolvimento dos demais ramos do saber, tanto quanto a ação educativa da Maçonaria, constituem nobres esforços intelectuais, que visam à preservação da espécie e ao bem-estar da humanidade. Como foi visto, ambos vislumbram a mesma solução: a reposição de um paradigma centrado no ser que tem como consequência evidente impor correção profunda ao modelo civilizatório vigente, daí a resistência constatada.
As diferenças de método e de estratégia pedagógica, porém, implicam resultados e potencialidades significativamente distintos. A Maçonaria, ao trabalhar com símbolos e alegorias, convive melhor que a Academia com o conceito de serabsoluto e com a presença de religiões que oferecem soluções particulares de acomodação e harmonização do espírito humano limitado e relativo, frente à fonte criadora absoluta e eterna. De outro lado, o símbolo, ao indicar a possibilidade de muitas versões sobre ele, cada uma delas válida no seu grau de precisão e requinte, habilita melhor o homem a conviver com a diversidade de opiniões e vincula essa diversidade, não a uma avaliação mordaz tipo certo-errado, mas a graus distintos de discernimento dos interlocutores. Pela mesma razão, a Maçonaria convive melhor com o caráter misterioso de tudo aquilo que se situa para além do atual campo humano de percepção e admite, com mais naturalidade, o fato de o mundo e a existência comportarem maravilhas organizativas e certa magia imponderável que tanto encanta como desconcerta ao manter sempre um véu de mistério. A Academia, ao contrário, em face dos rumos assumidos pelas coisas na Modernidade, encontra dificuldade até para admitir a pluralidade lógica que seus próprios estudos demonstram, não porque lhes falte fundamento, mas porque ela insinua realidades situadas para além da matéria, e isso compromete a demarcação científica vigente alicerçada na imanência. Compreende-se a dificuldade, pensando no ajuste que será exigido das ciências para incluir em seus objetos aspectos não materiais. Em contrapartida, a Academia opera com muito mais rigor lógico e metodológico, e a Maçonaria, em função das características dos símbolos, opera uma racionalidade impregnada de emoções e sentimentos que, por vezes, ofuscam a lógica e lhe conferem certa coloração mística. É nesse sentido que se situa a diferença relevante que conseguimos identificar entre as duas escolas.
A Maçonaria, ao compreender que o ser relativo tem origem no ser absoluto, a quem designa de Grande Arquiteto do Universo, reconhece que o ser relativo possui descendência divina e, por causa disso, faz distinção entre ser humano e personalidade humana. Entende que a personalidade humana representa a consciência forjada na experiência de vida cumprida no âmbito do tempo e do espaço e que, em consequência, espelha valores e crenças determinadas pelas circunstâncias particulares que molduraram essa experiência no tempo e no espaço. Entende, porém, que lá no fundo dessa consciência situa-se o ser de linhagem divina que, não estando sujeito às limitações do tempo e do espaço, é capaz de conferir ao homem um olhar e um discernimento efetivamente universal, habilitando-o a realizar a segunda navegação de Platão e contemplar as leis do Universo.
Uma metáfora bastante usada na Maçonaria é a da pedra a ser trabalhada pelo obreiro. Essa metáfora serve para indicar que, quando o obreiro entra na Ordem, é uma pedra bruta irregular, recém-saída da pedreira. O trabalho do aprendiz realiza-se na pedra bruta e objetiva transformá-la em pedra polida de formato retangular que possa ser usada de forma útil na construção do edifício social. Embora essa pedra polida seja o produto natural da Loja Maçônica, não representa o limite evolutivo. Essa pedra pode, ainda, em certas circunstâncias, sofrer metamorfose molecular e transformar-se em cristal, transparente e passivo, que se limita a refletir a luz emanada do Criador. Assim, o ápice da carreira maçônica dá-se quando esse ser consegue recordar-se de si e da estrutura ontológica que molda a existência do Universo e a personalidade humana, compreendendo seu papel de treinar e habilitar a mente para operar de modo competente, tendo-o cumprido, se retrai, silencia e, assim, permite que o ser assuma o comando da consciência. Dessa forma, finalmente, o ser humano pleno emerge e se pronuncia.
Observe-se que, nessa perspectiva, não é a personalidade humana, mas é o ser que tem acesso ao Olimpo e que pode operar a filosofia correspondente, pois esta situa-se além do alcance da personalidade humana. Observe-se, também, que o ser munido da tal filosofia, sendo essa provedora dos pressupostos orientadores das ciências regionais, conhece e domina a totalidade e, tendo em vista essa totalidade, pode exercer com justiça e propriedade a sua ciência regional. Nesse caso, terá atingido a condição de dialético que Platão, na República, exige como característica do verdadeiro filósofo.
Entenda-se, portanto, que a Academia, em face de sua estratégia didática, tem como alvo e horizonte esclarecer o ser e torná-lo apto a lançar um olhar competente sobre o mundo, enquanto a Maçonaria revela-se um pouco mais ambiciosa: quer tornar o ser humano uma realidade concreta, quer realizá-lo na prática, quer viabilizá-lo como superior que, em potência, faz parte do projeto da espécie: virtualmente, despertar o übermensch de que nos falou Zaratustra.
REFERÊNCIAS
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Tradução de Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: UNESP, 2009.
MOLINARO, Aniceto. Metafísica: curso sistemático. Tradução de João Paixão Netto e Roque Frangiotti. São Paulo: Paulus, 2004.
REALE, Giovanni. Pré-socráticos e Orfismo. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo, Loyola, 2009.
RODRIGUES, Rubi Germano. A doutrina do verbo solar. Brasília. 2009. Disponível em: <http://amldf.org/?page_id=180>. Acesso em: 29 out. 2012.
______. A razão holística: método para o exercício da razão. Brasília: Thesaurus. 1999.
______. Filosofia: a arte de pensar. São Paulo: Madras, 2011.
______. Inteligência organizativa: uma discussão entre a parte e o todo. Vitória, ES: Revista Rede, 2o Sem/ 2012.
SAMPAIO, Luiz Sérgio Coelho de. A lógica da diferença. Rio de Janeiro: UERJ, 2001.
[1] Filósofo, pesquisador em Teoria do Conhecimento e escritor. Presidente da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal (AMLDF). Idealizador e mantenedor do fórum de debates “Segundas Filosóficas” e do site: http://segundasfilosoficas.org.
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