Palestra pública de Platão sobre o Bem: fracasso ou sucesso?

Palestra pública de Platão sobre o Bem: fracasso ou sucesso?

Plato’s public lecture on the Good: failure or success? [1]

Rubi Rodrigues[2]
UniCEUB – Brasília – Brasil

RESUMO

A palestra pública de Platão sobre o Bem, de que nos fala Aristoxeno, inscreve-se entre os fatos históricos da Primeira Academia que suscitam perplexidade. Depois de Platão, nos diálogos, ter-se negado, tantas vezes e tão peremptoriamente, a falar e escrever sobre o Bem e sobre as coisas divinas, repentinamente, contrariando tudo o que já havia defendido sobre ensino e comunicação filosófica, resolve apresentar uma palestra pública sobre o tema. Neste artigo, articulando fatos e testemunhos da tradição, tentamos mostrar que as contradições envolvidas nesse episódio podem ser superadas, caso concordemos em radicalizar a noção de ensino esotérico associado à Academia.

Palavras-chave: Palestra pública de Platão. Primeira Academia. Doutrina não escrita. Ensino esotérico.

ABSTRACT

Plato’s public lecture about the Good, given by Aristoxenus, is included among the historical facts of the First Academy but, on the other hand, gives us a significant matter for concern. After Plato, in his “Dialogs”, had denied many times and formally to speak and write about the Good and about divine matters, suddenly he contradicts everything that he had defended about philosophical education and communication, and decides to present a public lecture about the subject. In this article, debating facts and testimonies of the tradition, we try to show that is possible to overcome the contradictions in this episode, if we agree to radicalize the notion of esoteric teaching associated with the Academy.

Keywords: Public lecture of Plato. First Academy. Not writing teaching. Esoteric teaching.

[1] Artigo publicado originalmente na PHAINE – Revista de Estudos sobre a Antiguidade N. 1, V. 1. Janeiro – julho de 2016, Universidade de Brasília – p. 108 – 118.

[2] Rubi Rodrigues é economista, pesquisador em Metafísica, escritor e membro da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal.

INTRODUÇÃO

As circunstâncias costumam ser fundamentais para se interpretar um fato. Quando se trata, então, de um fato histórico distanciado no tempo, o desconhecimento das circunstâncias pode simplesmente inviabilizar o entendimento. A palestra pública de Platão sobre o Bem inscreve-se entre os fatos da Primeira Academia que suscitam perplexidade. Depois de Platão, nos diálogos, ter-se negado, tantas vezes e tão peremptoriamente, a falar e escrever sobre o Bem e sobre as coisas divinas, repentinamente resolve apresentar uma palestra pública sobre o Bem e determina a convocação para o evento não apenas dos membros regulares da Academia, mas de todos os atenienses interessados. Na apresentação, no entanto, não facilita o entendimento e, ao contrário, opta por explorar as matemáticas na sua capacidade de produzir complexidade, a partir de suas raízes mais simples, e culmina, assimilando o Bem ao Um. Ninguém entendeu nada, e o resultado foi frustração geral e críticas pela fracassada tentativa. Essa historinha suscita perplexidade porque envolve uma série de contradições e inconsistências, a começar pela contradição maior de tratar-se de um tema que exigia, segundo o próprio Platão, uma alma excepcionalmente bem preparada como destinatária, exatamente o oposto do que se pode esperar em uma plateia pública.

Existe, porém, uma chave interpretativa segundo a qual tudo ganha sentido. Essa chave implica uma hipótese sobre o real significado de ensino esotérico associado à Academia, na época de Platão. Neste pequeno trabalho, tentaremos arrolar testemunhos e evidências suficientes para suportar tal hipótese – que não se coloca com pretensões historiográficas, mas apenas visa a oferecer uma maneira de interpretar os fatos, capaz de harmonizar as contradições envolvidas. Isso significa que, além de não se esgotarem os testemunhos e as evidências, tampouco nos preocupamos em levantar todos os trabalhos acadêmicos que já trataram da questão, uma vez que as nossas circunstâncias ensejam apenas apresentar e justificar a hipótese interpretativa, visando a provocar o debate. Para tanto, basta considerar cinco testemunhos históricos, três dos quais, gentilmente, disponibilizados pelo professor Gabriele Cornelli, em seu trabalho recente sobre o jogo de esconde-esconde de Platão (CORNELLI, 2016). Quanto ao valor hermenêutico da chave, convém esperar a palavra de quem domina a obra.

O FATO E AS PERPLEXIDADES QUE DESPERTA

O professor Cornelli traz-nos o registro do fato nos seguintes termos:

Desta lição nos fala Aristoxeno, citando uma história frequentemente narrada por Aristóteles, em seus Elementos Harmônicos (II, 30-31). Aristóteles censurava Platão, na ocasião, por este não haver anunciado antes da lição qual seria o esquema geral (a ementa) e creditava a esta falha de metodologia didática de Platão o insucesso da lição. (CORNELLI, 2016, p. 80).

Acrescentamos, a seguir, a citação de Aristoxeno:

Como o próprio Aristóteles costumava contar, era exatamente isso que aconteceu à maioria das pessoas que ouviu a lição sobre o Bem de Platão. Cada um veio, de fato, com a expectativa de aprender algo sobre as coisas que são geralmente consideradas boas para os seres humanos, como a saúde, a força física e, em geral, algo como uma felicidade maravilhosa. Mas, quando vieram as demonstrações matemáticas, incluindo os números, as figuras geométricas e a astronomia, e, no final, a afirmação de que o Bem é Um, isso deve ter-lhes parecido, posso muito bem imaginar, completamente surpreendente e estranho. Assim, enquanto alguns deram pouca atenção aos argumentos, outros os rejeitaram abertamente. ( MACRAN, 1902, apud CORNELLI, 2016, p. 80-81).

O próprio professor Cornelli é, ainda, insubstituível na descrição da perplexidade decorrente:

Por que razão Platão teria dedicado uma lição tão técnica, se não esotérica, a um público tão vasto e ordinário, que teve compreensíveis dificuldades para compreender os fundamentos ontológicos da ética platônica? Todos os comentadores contemporâneos, sem exceção, a partir de Guthrie (1978, 244), revelam certo desamparo hermenêutico frente a este testemunho de uma única lição e que Platão teria ministrado não “no interior da Academia”, mas para a multidão. (CORNELLI, 2016, p. 81).

A questão central, aqui, é o fato de o tema do Bem constituir, na concepção filosófica de Platão, o alicerce básico da sua teoria dos princípios e o ponto mais elevado da sua dialética, assuntos centrais e decisivos na sua proposta filosófica, mas que, apesar disso, aparentemente não receberam, nos seus textos, registros suficientemente claros para possibilitar a compreensão requerida. A teoria dos princípios e a dialética constituem justamente os conteúdos das doutrinas não escritas, as quais a Escola de Tübingen – Milão demonstra serem indispensáveis para uma correta interpretação da obra platônica. Szlezák (2005, 2009, 2011a), em particular, desponta no trabalho de análise e catalogação das passagens de retenção, nas quais Platão, intencionalmente, desconversa e deixa o interlocutor do diálogo sem os esclarecimentos que deveriam seguir-se, mas também sem deixar de insinuar que algo de mais precioso e fundamental situava-se mais além.

Aristóteles constitui a fonte indireta mais importante a testemunhar a existência de uma teoria platônica dos princípios, distinta da sua teoria das ideias. Esse testemunho revela-se, entretanto, impreciso, confuso e, por vezes, até contraditório com respeito ao conteúdo axiomático da teoria. Aristóteles, em sua Metafísica (BINI, 2006), faz referências à teoria dos princípios de Platão, mas demonstra que tinha mais familiaridade com a teoria das ideias e, nela, concentra a sua crítica. Essa crítica opõe-se à existência das ideias dissociadas dos casos singulares que elas moldam, mas também e sobretudo pelo caráter fixo e imutável das ideias, condição na qual elas resultam logicamente incapazes de gerar movimento e, consequentemente, de responder pelo seu próprio advento. A conhecida passagem 991a 20 não deixa dúvidas: “Dizer que as formas são modelos e que outras coisas delas participam é empregar frases ocas e metáforas poéticas, pois o que é que confecciona coisas no molde das ideias?” (Metaph. 991a 20)[3].

Curiosamente, porém, Filón de Alexandria (10 a.C – 50 d.C), situado, portanto, em torno de 360, 370 anos depois da morte de Platão, entende e informa ser a década pitagórica a solução platônica para a geração dos fenômenos e, portanto, das ideias:

La tétrada: Ésta es la causa por la que primero la tierra broto y se cubrió de verde.  A continuación recibió su orden el cielo en el número perfecto de la tétrada, que no andaria uno errado si dijiera que es el punto de partida y fuente de la década perfecta. En efecto, ló que es la década en acto, ló es la tétrada, asi parece, en potencia. En efecto, si los números que van de la mónada hasta la tétrada se compusieran sucessivamente, generarían la década[4], la cual es limite de la infinitud de los números, limite alrededor del cual, como en el mojón de giro[5], dan vuelta y doblan de regreso. (MARTIN, 2009, p. 119).

[3] Equivalente posição consta da passagem 991b 5: É afirmado, no Phaedo, que as Formas são causa tanto da existência quanto da geração. Entretanto, supondo a existência das Formas, ainda assim, as coisas que delas participam não são geradas, a menos que haja algo para transmitir movimento […]. (Metaph. 991b 5).

[4] Es decir, los números que componem da tétrada (1, 2, 3 y 4) sumados dan 10. (Nota original 33).

[5] Mojón colocado al final de la pista que indicaba el punto donde los corredores o los carros debían emprender el regreso em las Carreras dobles de ida y vuelta. (Nota original 34).

Filón era um judeu cristão, com formação helenista, que, em alguma medida, pensava Platão como um precursor de ideias afins ou úteis ao cristianismo e, virtualmente, nessa condição, teve acesso a esse conhecimento, que,nitidamente, refere-se a princípios. Em particular, a afirmação de que a tétrada – (1 + 2 + 3 + 4) – é em potência o que a década – (10) – é em ato indica uma concepção dotada de sentido gerativo, mesmo quando nos atemos ao caráter quantitativo da equação: se dez é quantidade em ato (o aparente), a soma dos quatro primeiros números constitui a estrutura mais simples que, de modo ontológico e não aparente, pode justificá-lo[6]. Não cabe, neste pequeno artigo, entrar no mérito dessa interpretação porque a questão dos princípios foge ao escopo deste trabalho. Importa, aqui, considerar que, não havendo razão para duvidar do testemunho de Filón, que atribuía essa concepção a Platão, temos de admitir que a Primeira Academia contava com uma solução gerativa plausível, que Aristóteles, ao que tudo indica, desconhecia.

Assim sendo, temos, aí, uma segunda perplexidade: como pode um aluno brilhante como Aristóteles ter participado da Academia por duas décadas sem deter a informação que chegou a Filón tanto tempo depois? Aristóteles sabia que Platão tinha uma teoria dos princípios; conhecia os dois princípios primeiros de Pitágoras – o ilimitado e o limitante –; sabia que as ideias de Platão harmonizavam-se com a tradição pitagórica, possivelmente, tal como Platão teve acesso aos livros pitagóricos de Filolau; passou vinte anos frequentando a Academia; era uma cabeça brilhante; não refutou a teoria das ideias – apenas sua existência independente dos objetos –; procurou, de modo insistente, em toda a extensão da sua Metafísica, uma justificativa que possibilitasse às ideias gerar movimento; e, no entanto, desconhecia a solução gerativa representada pela década. Filón, quando usa a expressão asi parece indica não ter domínio pleno da concepção, mas, de qualquer modo, logrou compreender perfeitamente a função criadora da estrutura, justamente o aspecto que escapou a Aristóteles ou que, então, foi-lhe sonegado.

[6] No mesmo sentido, FERNANDES (2010, p. 100) constata: “Ademais, os quatro níveis da tetraktys contêm os elementos básicos de toda a aritmética”.

AS CIRCUNSTÂNCIAS DA PRIMEIRA ACADEMIA

O desamparo hermenêutico mencionado pelo professor Cornelli, diante da palestra pública, levou-o a buscar informações sobre as circunstâncias que envolviam o ensino de Platão na Academia e à conclusão de que esse ensino, além de ministrado em área pública era também público e acessível a quem estivesse interessado. Ampara essa conclusão em mais dois testemunhos – de Eliano e de Equécrates – que considera esclarecedores “de como se dava a relação entre a casa (privada) de Platão, e o espaço (público) da Academia” (CORNELLI, 2016, p. 77). Transcrevemos ambos, a seguir, tendo em vista que eles suscitam conclusões adicionais.

O primeiro deles é o testemunho de Eliano:

Uma vez, quando Xenócrates havia voltado para sua terra natal, Aristóteles atacou Platão, cercando-o com um grupo de outros como ele. Isso incluía Mnaso da Fócida e outros. Naquele exato momento, Espeusipo, estando doente, não podia estar ao lado de Platão. Platão era na época octogenário e, devido à idade avançada, sofria de problemas de perda da memória. Aristóteles, demonstrando querer claramente agredir Platão, lhe dirigiu uma pergunta extremamente arrogante, com a intenção de querer refutá-lo: isto é, de maneira, portanto, injusta e não correta. Por causa disso, Platão abandonou o passeio (περιπάτος) e se fechou em casa com seus companheiros. Depois de três meses, ao voltar para Atenas, Xenócrates encontrou Aristóteles passeando com os seus no mesmo lugar onde havia anteriormente deixado Platão. Havendo compreendido que eles não estavam indo encontrar Platão e que este havia se retirado voluntariamente da cidade, Xenócrates perguntou a uma das pessoas que estava passeando onde estava Platão. Suspeitava que Platão pudesse não passar bem; mas a resposta foi: não está doente, mas Aristóteles o deixou irritado, fazendo assim com que ele desistisse dos passeios. Se retirou para seu próprio jardim (κήπος) e está se dedicando à filosofia nele. Ao ouvir isso, Xenócrates foi imediatamente à casa de Platão e o encontrou conversando com seus discípulos. Eles eram bastante numerosos e célebres, jovens destinados a serem excelentes. Quando Platão parou de falar e deu a Xenócrates as esperadas cordiais boas-vindas, Xenócrates respondeu a elas da mesma forma. Quando o grupo dos companheiros havia finalmente se dispersado, e sem que Platão percebesse isso, Xenócrates criticou duramente Espeusipo por ter cedido o passeio a Aristóteles, e ele atacou pessoalmente o Estagirita com grande violência e determinação ao ponto de afastá-lo e conseguir reintegrar Platão em seu costumeiro lugar (χωρίον). (Eliano Varia História 3. 19, apud CORNELLI, 2016, p. 77-78).

Desse testemunho de Eliano, parece possível retirar três conclusões relevantes ao nosso propósito:

  • A desavença entre Aristóteles e Platão não pode ser reduzida à mera divergência conceitual;
  • A casa de Platão também era usada para preleções filosóficas;
  • Aristóteles não compartilhava da intimidade da casa.

O segundo testemunho é o de Equécrates, segundo Cornelli, citado por Ateneu.

– Sei muito bem o que dizer deles: vi de fato nas Panateneias o grupo daqueles jovens […] nos parques da Academia, prestando atenção a discursos indizíveis, de tão absurdos que eram. Dando definições sobre a natureza, separavam os animais das plantas, e as espécies, dos vegetais. Entre estes últimos, examinaram a abóbora, perguntando-se de que gênero esta seria.

– E qual foi a definição à qual chegaram do gênero desta planta? Se você sabe, pode me dizer?

– No início, estando completamente em silêncio, ficaram todos concentrados e curvados e refletiram por muito tempo. Em seguida, improvisamente, um deles disse que seria um vegetal redondo, outro uma verdura, outro, ainda, uma árvore. Ouvindo isso, um médico siciliano se revoltou contra eles, dizendo que estavam delirando […]. (Athenaeum, Deipnosoph. II, 54, 3-40, apud CORNELLI, 2016, p. 79).

Esse segundo testemunho não deixa dúvidas quanto ao caráter público das aulas e discussões que ocorriam no espaço público da Academia. Cornelli, apoiando-se, ainda, no Filebo, conclui nos seguintes termos:

Tomo as citações do Filebo (15a-16b) como sinais de que os temas que eram debatidos no jardim de Akademos eram provavelmente os mesmos que Platão decidiu representar literariamente em seus diálogos. Os diálogos escritos de Platão e os diálogos orais na Academia, quando lá estava Platão, portanto, parecem revelar inéditas consistências. Uma delas, quiçá a mais importante, é a ausência de Platão[7]. (CORNELLI, 2016, p. 84).

[7] Ausência que Cornelli – corretamente no nosso entender – considera exigência estrutural do método dialético adotado por Platão.

Diante das circunstâncias relatadas, impõe-se uma conclusão adicional que Cornelli certamente percebeu, mas que deixou de mencionar virtualmente para não sair do seu tema: as discussões públicas na Academia também envolviam momentos de retenção, tal como os diálogos contemplam passagens de retenção, posto que, também, ali, o público não atendesse às condições que Platão considerava indispensáveis para tratar das questões mais elevadas. Assim sendo, a resultante parece evidente: ou tais questões mais elevadas não eram tratadas em momento algum ou, então, eram tratadas em ocasiões distintas daquelas em que se davam os diálogos orais públicos da Academia.

Dado que a primeira alternativa implica o fracasso do filósofo em preservar o seu saber mais importante, resta a alternativa da existência de preleções privadas, reservadas para poucos, selecionados pelas aptidões mentais e pela nobreza de espírito, conduzidas em recinto fechado e livre da intervenção de estranhos. Preleções possivelmente conduzidas mediante liturgia e ritualística próprias, por meio das quais poderia ser criado o clima propício e ajustado o ensino ao progresso pessoal dos educandos; ou seja, mediante um método tipicamente iniciático e progressivo de ensino, virtualmente nos moldes do praticado na escola de Pitágoras.

Edson Bini (2006) que traduziu a versão da Metafísica de que nos valemos, ao comentar o uso do conceito de ensino esotérico, no Liceu – por ocasião da apresentação dos dados biográficos de Aristóteles – fornece-nos interessante testemunho que, ao mesmo tempo em que indica a presença desse conceito na época da Primeira Academia, também atesta o afastamento de Aristóteles do sentido iniciático historicamente vinculado, o que, sintomaticamente, sugere que ele não seria um iniciado.

A distinção entre cursos esotéricos e exotéricos e a consequente separação dos discípulos não eram motivadas por qualquer diferença entre um ensino secreto místico reservado apenas a iniciados e um ensino meramente religioso ministrado a profanos, nos moldes, por exemplo, das instituições dos pitagóricos. Essa distinção era puramente pragmática, no sentido de organizar os cursos por nível de dificuldade (didática) e, sobretudo, restringir os cursos exotéricos àquilo que despertava o interesse da grande maioria dos atenienses, a saber, a dialética e a retórica. (BINI, 2006, p. 18).

Adicionalmente, cumpre observar que Platão, nos diálogos, faz algumas menções que sugerem a prática de ritos de iniciação[8] e que a sua propriedade particular no Jardim de Akademos configura-se particularmente bem posicionada para recepcionar encontros privados sob um manto de discrição, oferecendo, além disso, privacidade que não podia ser contestada.

[8] A passagem mais explícita consta da Carta VII: “Quanto a mim, tu, com outros, fizeste-me, quase à força, sentar-me à mesa de Dionísio e participar com ele do fogo sagrado e dos rituais […] eu não estou mais em idade de combater com quem quer que seja […]”. (350a).

UM PLATÃO PRESSIONADO A FALAR DO BEM

Na hipótese de que ocorressem tais reuniões privadas na casa de Platão, o ensino dito esotérico, na Primeira Academia, corresponderia ao que, atualmente, está sendo designado de doutrinas não escritas, e o mistério começa a se dissipar. Alunos mais distraídos poderiam não perceber, mas uma mente brilhante como Aristóteles, com o tempo, certamente, dar-se-ia conta de que certos temas eram sempre protelados, e a ocasião de tratá-los não chegava nunca. Aristóteles participou dezenove anos das atividades da Academia e, juntando fragmentos, sussurros e indiscrições, virtualmente, acabou percebendo que Platão tinha uma teoria dos princípios e que existiam certos temas dos quais ele sempre fugia. Que ele teve sua curiosidade aguçada para a questão constata-se claramente na sua Metafísica, e, provavelmente, tentou obter respostas junto ao círculo mais íntimo de Platão.

Do ponto de vista de um círculo iniciático, a curiosidade de Aristóteles ainda, hoje, seria interpretada como “presença de um profano, forçando a porta do templo”, e não seria despropositado imaginar que até mesmo informações intencionalmente distorcidas tenham-lhe sido “confidenciadas”, para evitar que ele mesmo, por si próprio, descobrisse o Demiurgo, tal como Platão admitira ser possível – na passagem 28a 6 do Timeu. No entanto, também não é difícil imaginar que a retenção de conhecimento começasse a ser interpretada como sonegação de conhecimento ou, pior, como discriminação de um mestre para com alguns dos seus alunos e, desse modo, configurar situação delicada que não poderia ser ignorada pela Academia.

Dessa situação de constrangimento, havia um precedente na história que, virtualmente, era também do conhecimento de Platão: a escola de Pitágoras acabou destruída porque ele se recusou a admitir, na irmandade, um sujeito violento que não tinha o menor pendão para a filosofia. Quem nos relata isso é Jámblico, na obra Vida pitagórica:

Cilón, un varón de Crotona, se distinguia entre sus conciudadanos por su linaje, por su fama y por su riqueza pero, por outra parte, era cruel, violento, alborotador y despótico de carácter y, trás haber puesto todo su entusiasmo por integrarse el na comunidad de vida pitagórica, se había presentado al propio Pitágoras, cuando ya era persona mayor, y había sido rechazado por los motivos ya dichos.

Cuando ocurrió esto, el próprio Cilón y sus amigos promovieron um levantamiento contra Pitágoras y sus discípulos, y la animadversión personal de Cilón y sus partidários resultó tan violenta e incontrolada, que se hizo extensiva a los pitagóricos recientes. Em consecuencia, Pitágoras por este motivo se translado a Metaponto, y allí, según se dice, terminó su vida. (LORENTE, 2008, p. 155).

Por outro lado, Konrad Gaiser (1980), no artigo Plato’s enigmatic lecture ‘On the Good’, também conclui pela presença de um ensino esotérico restrito no interior da Academia e defende terem sido principalmente políticas as motivações da palestra pública. Esta visaria a afastar o temor de que as reuniões secretas pudessem oferecer risco para a democracia ateniense, já que Platão esteve convivendo com o déspota Dionísio. Esse fator político pode realmente ter influenciado a decisão de Platão, não apenas para desarmar preocupações de lideranças democráticas, mas, virtualmente, também para afastar o risco de Platão ser denunciado por impiedade, tal como aconteceu com Sócrates. Ocorre que, sendo o caso de tratar-se de uma escola iniciática, os procedimentos de ensino contemplariam pedagogia própria, liturgia determinada, linguagem simbólica, alegorias, histórias e contos mitológicos. Dado que o Bem constituía tema central desse ensino esotérico, caso esse Bem, na ocasião, já tivesse o sentido de princípio necessário próprio da Metafísica, resulta provável que a liturgia adotada na escola envolvesse elementos da mitologia egípcia, uma vez que ela preconiza um deus único (GADALLA, 2003) e seria mais adequada do que a mitologia grega de constituição politeísta. Nesse caso, a seleção de iniciados envolveria, além de inteligência apurada e espírito sensível, também elevada confiabilidade e discrição, pois, nessa situação, o segredo seria também questão de segurança. Enfim, motivos para pressionar Platão não faltavam.

De qualquer modo, Platão encaminhou uma solução inteligente: “Está certo, vou proferir uma palestra pública sobre o Bem e que toda Atenas seja convidada para o evento”. O resto é conhecido: não mentiu, falou realmente sobre o Bem, mas, em lugar de facilitar o entendimento, usando metáforas, alegorias e exemplos, valeu-se da matemática mais árida e culminou, assimilando o Bem ao Um. Depois, ficou saboreando a perplexidade e o desconcerto geral. Aristóteles possivelmente pensou que Platão cometeu um erro metodológico imperdoável.

PALAVRAS CONCLUSIVAS

Cumpre reiterar que não temos aqui pretensões historiográficas. Move-nos apenas a percepção de que, ao se interpretar os acontecimentos sob a hipótese da presença de um ensino realmente esotérico, na Primeira Academia, as contradições desaparecem, a coerência volta a prevalecer, e o enigma que Cherniss (1993) percebeu – sem realmente entender – dilui-se.

Na expectativa de superar essas perplexidades, talvez essa chave interpretativa possa, ainda, ser útil aos estudiosos das doutrinas não escritas que, desde o colóquio organizado por Gadamer para discutir as teses da Escola de Tübingen, em 1996, defrontam-se com a questão agendada por Szlezák, inquirindo sobre a confiabilidade e o valor do testemunho de Aristóteles a respeito da teoria dos princípios de Platão (PERINE, 2014, p. 183). Segundo essa chave, fica comprometido o testemunho de Aristóteles, no que diz respeito ao conteúdo axiomático da teoria dos princípios.

Outras questões platônicas também se iluminam. Por exemplo, por que Aristóteles não sucedeu Platão na direção da Academia; ou por que, com a morte de Platão, Espeusipo e Xenócrates reorientaram os estudos na Academia para o pitagorismo; ou, ainda, por que Espeusipo vai, pela primeira vez, na Academia mencionar a década pitagórica – que Cherniss vai chamar de década matemática e o levar a entender que Espeusipo discordava de Platão e teria refutado completamente a sua teoria das ideias (CHERNISS, 1993, p. 41).

Finalmente, vale observar que, caso seja possível confirmar proximidade mais estreita entre a Academia Antiga – considerada berço da filosofia ocidental – e uma escola iniciática típica de orientação pitagórica, talvez ganhem sentido certas reivindicações quanto à origem egípcia de alguns conhecimentos (JAMES, 2009; RAMOS JURADO, 1997), e a própria aventura do pensar filosófico de orientação metafísica ganhe uma pitada de mistério, e possa tornar-se, digamos, mais emocionante.

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