O STATUS ONTOLÓGICO DA LÓGICA II

INTRODUÇÃO

Nosso esforço anterior, procurando caracterizar a lógica com maior precisão, levou-nos a adotar uma perspectiva segundo a qual as lógicas representam a manifestação subjetiva de um poder normativo universal mais amplo, presente em toda a natureza1. Chegamos a essa conclusão ao constatarmos que a manifestação ôntica de todos os fenômenos, sem exceção, dá-se delimitada, no tempo, por dois movimentos transcendentais, responsáveis por sua entrada e por sua saída da instância própria na qual o fenômeno pode-se manifestar e, adicionalmente, porque constatamos que tais movimentos constituem operações de um mesmo padrão, tipificado pela Lógica Transcendental. Dado que, a par de fenômenos subjetivos, constata-se, também, a existência de fenômenos objetivos, adotamos a hipótese de reconhecer presente no plano objetivo um poder normativo correlato ao da Lógica Transcendental.

Isso levou-nos a caracterizar a lógica como manifestação subjetiva de um poder normativo universal e implicou conferir-lhe, também, status ontológico e papel normativo, posto que a pluralidade das lógicas revelou-se correlata de múltiplos padrões de inferência, inerentes a padrões típicos e diferenciados de pensamentos correlatos, por sua vez, a aspectos específicos presentes em todos os fenômenos, ou seja, usando a linguagem da física quântica, comprometidos com valores de verdade privativos.

Essa solução, equiparando padrões lógicos subjetivos a princípios universais objetivos, estabelece novo patamar ou alicerce conceitual, a partir do qual se torna possível novo discurso sobre o mundo e nova ordenação do conhecimento, desta vez, contando com instância-síntese que, ao resgatar a unidade, potencializa superar o estágio hodierno de fragmentação do saber e do pensar.

Embora esse patamar potencialize ou descortine amplas possibilidades nos campos da ciência e da filosofia e, consequentemente, nos mais variados campos do saber, aqui vamos permanecer restritos ao campo da Lógica, tentando consolidar esse alicerce que, como tal, não admite peças mal encaixadas, sob pena de comprometer tudo o que sobre ele for edificado.

Na discussão do caráter ontológico da Lógica, tomamos por base a Lógica Transcendental e verificamos que o seu modo de operação tipifica um movimento de padrão transcendental. Configura um surgir a partir do nada: o que não é, de repente, passa a ser. Na equação representativa dos estados de consciência, o valor próprio passa de 0 para 1: (0 => 1), isto é, a consciência passa a estar preenchida com o fenômeno visado, uma característica, verdadeira e legítima operação transcendental, própria da Lógica Transcendental.

Para chegarmos a essa compreensão, utilizamos as notações e as equações adotadas por Sampaio. Recordando: inicialmente, partimos da equação I(x) = x, indicativa da operação mental, na qual a consciência, incidindo ou operando sobre um objeto x, produz apenas e tão somente a percepção de x; depois, constatando que essa percepção do objeto x não constituía um ato pleno de consciência, posto que o sujeito pensante como que se esquecia de si ou da sua presença como poder operativo, multiplicamos os dois termos por I, obtendo a equação I(Ix) = I(x), esta sim representando consciência consciente, tanto de si como do objeto.

A seguir, consideramos o caso especial da operação de autoconsciência, em que a consciência incide recursivamente sobre si mesma. Fazendo x = I, obtivemos I(I(I)) = I(I) e, simplificando essa equação, fazendo I(I) = I, obtivemos a notação I2 = I.

Com essa última equação, cujos valores próprios são 0 e 1 e indicam estados de consciência possíveis, demonstramos que a Lógica Transcendental, cujos valores de verdade são ser e não-ser, é distinta e não pode ser confundida com a Lógica Clássica da mera consequência.

Durante essa demonstração, destacamos que a passagem de 0 para 1 comporta três aspectos essenciais: uma diferença, um movimento e uma operação. Discutimos o movimento e a operação e destacamos que o terceiro aspecto essencial envolvido na passagem consistia na constatação de que entre não-ser e ser há uma diferença, no caso, uma diferença de padrão transcendental. Mencionamos, na ocasião, que esse fato não tinha muita importância para as finalidades daquele trabalho, mas possuía importância capital para a crítica da proposta de Lógica da Diferença D, identificada e formalizada por Sampaio, ao lado da Lógica Transcendental I, como sendo as duas lógicas fundamentais geradoras de todas as demais lógicas.

À primeira vista, a constatação dessa diferença transcendental embutida já na operação de identidade I evidencia que a diferença D não pode ser colocada simplesmente ao lado de I como algo de igual categoria, como o fez Sampaio, pois um tipo radicalmente essencial de diferença já se encontra discreta e veladamente na operação transcendental I. Na ocasião, tivemos o cuidado de observar que esse fato não invalidava a proposição lógica de Sampaio, mas que, provavelmente, ensejaria ajustes.

Assim, o objetivo deste segundo trabalho é examinar em que medida a presença dessa diferença essencial, já no âmbito da operação própria da Lógica Transcendental, pode impactar a definição que Sampaio confere à sua Lógica da Diferença e em que medida isso pode impactar o mapeamento do território das lógicas, definido por ele, e que nós, no trabalho precedente e também neste, seguindo a própria tese de Sampaio, procuramos caracterizar como plataforma ou alicerce para uma nova visão de mundo, merecendo, por isso mesmo, extremo cuidado e precisão.

DELIMITANDO O OBJETO

Sampaio mapeia o território da Lógica identificando cinco padrões lógicos. Considera que “as lógicas formam uma estrutura ordenada e aberta, pré-linguística, e pré-matemática, gerada por duas lógicas fundamentais: a lógica I da Identidade e a lógica D da Diferença”. As demais lógicas são geradas mediante uma única operação designada síntese dialética generalizada entre tais lógicas e ressaltam que essa operação pode ser indefinidamente reiterada.

O autor considera, ainda, que essa solução permite fundamentar cada uma das lógicas, usando em cada caso apenas um princípio constitutivo, “liquidando com a bagunça dos fundamentos”, tornando o conjunto homogêneo e, consequentemente, permitindo que ele ganhe forma operatória unívoca e também homogênea. Define a lógica como “um saber sistemático tanto quanto possível sobre os diferentes modos de pensar” e organiza a razão em uma estrutura hierarquizada de níveis ontológicos: “fenomênico (I), objetivo (I/D) e subjetivo (I/D/D)”.

O resultado é o seguinte mapeamento do território da Lógica:

1. Lógicas fundamentais: I e D (Identidade ou do próprio e Diferença ou do outro, respectivamente).

2. Lógicas derivadas: I/D, D/D e I/D/D (Dialética, Clássica e Hiperdialética Quinquitária, respectivamente). A estrutura permanece aberta, sugerindo serem virtualmente possíveis lógicas mais complexas, reais ou meramente potenciais.

Embora essa construção seja de difícil entendimento, mesmo quando se estuda diretamente o texto de Sampaio, o resultado alcançado é de clareza meridiana quando visto da perspectiva dos padrões de pensamento correlatos, porque tais operações mentais integram nosso cotidiano e, como tais, podem ser facilmente reconhecidas:

I = Pensamento intuitivo – ato de identificar e reconhecer;

D = Pensamento diferenciador – ato de identificar diferenças e classificar;

I/D = Pensamento dialético – ato de pensar a história e a historicidade;

D/D = Pensamento sistêmico – ato de pensar a funcionalidade da matéria;

I/D2 = Pensamento complementar – ato de pensar a totalidade, com amor etc.

A tese, nessa perspectiva, é clara: todos os pensamentos humanos representam operações propiciadas por uma dessas lógicas, não sendo da competência atual dos humanos executar raciocínio de padrão distinto. Considerando que cada um desses cinco padrões lógicos representa um tipo particular de inferência2, ficam caracterizados cinco padrões inconfundíveis de inferência e fica completamente mapeado e delimitado o território da Lógica.

De nossa parte, concordamos com a presença desses cinco padrões lógicos e de pensamentos e aceitamos essa demarcação do território da Lógica, até mesmo porque não conseguimos identificar qualquer pensamento que não se enquadre em algum deles. O leitor que discordar tem aí um caminho claro para refutar ou ampliar a tese. Nosso acordo não decorre, porém, de uma simples leitura de Sampaio. Chegamos aos mesmos cinco padrões de pensamento pelo caminho distinto de admitir um poder normativo universal como tese. Isso permitiu-nos organizar ou dividir o campo existencial do fenômeno em dimensões e identificar os padrões de movimento admitidos nas instâncias resultantes. O resultado, no plano subjetivo, é o mesmo: cinco padrões inconfundíveis de pensamento. Nem mais, nem menos.

Mas, se essa visão dimensional do mundo confirma as percepções de Sampaio quanto ao número de lógicas que compõem o Logos, quanto aos padrões operativos das lógicas, quanto ao caráter aberto da estrutura, quanto à existência de compromissos estruturais entre as lógicas integrantes da estrutura, quanto aos padrões de pensamento potencializados e, ainda, quanto a outros aspectos essenciais, curiosamente gera uma estrutura que se diferencia da estrutura sampaiana em três pontos: 1. não confirma o grau de independência que Sampaio confere à Lógica da Diferença; 2. inverte a ordem das lógicas Clássica e Dialética na estrutura; e 3. conceitua e caracteriza diferentemente a quinta lógica da estrutura, potencializadora do pensamento mais complexo ou elaborado que a natureza faculta ao homem.

Os três aspectos merecem ser estudados e, na perspectiva de estarmos montando uma plataforma conceitual que visa a embasar um novo olhar sobre o mundo, precisam mesmo ser estudados detidamente. A consideração das questões 2 e 3 exigiria, porém, a especificação do modelo dimensional de mundo que adotamos como referência, o que esperamos evitar neste artigo. Acreditamos, entretanto, que a questão 1, referente ao grau de independência desfrutado pela Lógica da Diferença, pode ser analisada nos termos adotados por Sampaio e sem o concurso daquela estrutura. Vejamos se isso se confirma.

Assim, delimitando melhor o nosso objeto, neste segundo trabalho, vamos restringir-nos a examinar a posição da Lógica da Diferença D, na estrutura proposta por Sampaio, e discutir em que medida ela pode ser colocada ao lado da Lógica Transcendental I, como sendo uma das duas lógicas fundamentais.

A LÓGICA DA DIFERENÇA SEGUNDO SAMPAIO

No texto publicado em 20013, Sampaio focaliza a Lógica da Diferença a partir da constatação de que a Lógica Dialética “se define precisamente como um saber acerca do pensar que se faz síntese do pensar da identidade e da diferença”, definição compatível com a descoberta de Proclo que identificou como tese, antítese e síntese os três momentos da Dialética. A partir dessa constatação e da caracterização pacífica da Lógica Transcendental como responsável pelo pensar da identidade, Sampaio aponta a lacuna que exige uma lógica da diferença, stricto sensu.

Pressupondo a operação dialética generalizada como integrante do modelo, Sampaio formula duas hipóteses para solucionar a questão: 1. existe uma lógica da simples diferença ou 2. a lógica formal (ou clássica) identifica-se com a lógica da diferença. Para recusar a segunda hipótese, arrola alguns argumentos, dentre os quais, destaco: “Mesmo que não chegássemos a tais exageros e aceitássemos a existência concomitante destas duas lógicas, continuaríamos impedidos de aderir à segunda hipótese – que subordina a lógica clássica à dialética –, porque isto simplesmente contraria a essência destas lógicas e até, no caso, a ordem de seu desvelamento histórico (primeiro veio a dialética platônica, depois, sim, a lógica formal aristotélica)” p. 18).

O argumento, destacado em negrito, é, efetivamente, definitivo: a Lógica Dialética, responsável pelo movimento histórico e temporal de permanente mutação, não pode fornecer essencialidade constitutiva da Lógica Clássica, responsável pela estabilidade atemporal dos sistemas. Embora essa justificativa seja suficiente, outro texto4 oferece-nos, também, uma demonstração gráfica de que a Lógica Clássica, em razão do princípio do terço excluso, constitui uma lógica da dupla diferença, o que, evidentemente, pressupõe uma diferença singular. Dessa forma, embora existam outras, essas duas razões parecem-me suficientes para requerer e justificar a presença de uma lógica da simples diferença.

Estabelecida a Lógica da Diferença, Sampaio observa que ela surge como lógica do outro, contrapondo-se à lógica da identidade, que se revela, positivamente, como lógica do mesmo. Recorrendo às percepções de Pascal, Kierkegaard, Nietzsche e Freud, demonstra que esse padrão lógico quase somente deixou-se surpreender pelo avesso, meio velado, quando não claramente à sombra de outra lógica tomada positivamente. Somente em Lacan, Sampaio reconhece a Lógica da Diferença, sendo tomada positivamente como lógica do significante.

O significante é, como sabemos, aquilo que se esconde ou se torna transparente para que o significado possa aparecer com toda intensidade e é, nessa perspectiva, que Sampaio entende a Lógica da Diferença. Por isso, fixa-se no psicanalista francês e caracteriza a sua lógica como operação do inconsciente, que é o outro, relativamente ao pensar consciente da Lógica da Identidade. “A lógica da diferença é a lógica do outro, do pensar inconsciente e da espacialidade, assim como a lógica da identidade ou transcendental é a lógica do mesmo, do pensar consciente e da temporalidade” (p. 25).

Observando que não é possível desconhecermos em nós mesmos, tanto uma capacidade operatória lógico-identitária como uma capacidade operatória lógico-diferencial, Sampaio aproxima-se da questão que aqui nos interessa de modo particular, perguntando na página 26 do seu livro: “Como se hierarquizam as lógicas da identidade e da diferença? Seria possível fazer derivar uma da outra?”

Na justificação de sua escolha, observa que, caso adotemos um “ponto de vista subjetivo, aquele de nossa própria e imediata vivência, […], não teríamos dúvida de que a identidade (a própria autoidentidade) tem que ser necessariamente primeira, pois todo ato de diferenciação […] a tem como precondição”. “Mas poderíamos também assumir o ponto de vista oposto, aquele da objetividade, caro aos homens da ciência. Chegaríamos então à conclusão exatamente contrária: a capacidade lógico-identitária é um a posteriori, produzida pelo colapso de uma diferença”. Esclarece, ainda, que “Ela (a diferença) emerge em um momento preciso do desenvolvimento embrionário: trata-se do término do processo de invaginação do ectoderma lombar que determina a essência topológica do sistema nervoso central, e que vai conferir foros de interioridade ao ser vivo em formação” (p. 26).

Diante desse dilema, ou para escapar dele, Sampaio entende conveniente não fazer nenhuma das lógicas derivar da outra, mas sim considerá-las ambas como lógicas fundamentais, até porque “todas as demais lógicas, a começar pela dialética, podem ser expressas como resultado de sínteses reiteradas das lógicas da identidade e da diferença”, mediante a já indicada operação de síntese dialética generalizada, e conclui: “razão pela qual estas, e somente estas, serão por nós consideradas como verdadeiramente fundamentais”.

Não restam dúvidas, portanto, que Sampaio coloca D equiparadamente ao lado de I: ambas são lógicas fundamentais. Observe-se que a adoção dessa solução não ocorreu ao amparo de uma tese positiva que a fundamentasse, mas sim como opção de menor custo, ao evitar o dilema representado pela escolha entre as perspectivas objetiva e subjetiva. Isso transfere a responsabilidade de justificar ao outro argumento arrolado: a síntese dialética generalizada e sua capacidade ordenadora e estruturadora.

O custo dessa opção apresenta-se na necessidade de uma capacidade operatória específica para a Lógica da Diferença, concebida que foi como lógica do outro e, portanto, como contraponto de uma lógica do mesmo, esta reconhecida como lógica da identidade e como operação positiva da consciência. Ora, o que se contrapõe ao consciente é o inconsciente, daí a convocação dos psicanalistas e, em particular, de Lacan: “Ser e pensar são o mesmo, logo, havendo o inconsciente há de haver um pensar que lhe convenha, ainda que, tratando-se de quem se trata, deva ser um pensar por outro, um pensar de desvãos e profundezas, sobretudo um pensar que se desconheça” (p. 121).

A convocação de Lacan tem ainda outras razões tão ou mais importantes. Foi ele quem, ao estudar os paradoxos do inconsciente, propôs uma Lógica do Significante, que apenas é outro nome que se pode dar à Lógica da Diferença, da mesma forma que a expressão Lógica Dialética designa o mesmo que a expressão Lógica da História.

A nota número 13 que Sampaio inclui no capítulo oitavo de seu livro indica de que maneira os trabalhos de ambos integram-se na conquista desse padrão lógico. “A lógica da diferença possui três valores de verdade: verdadeiro, falso e indeterminado. Sendo este último sobredeterminado, concomitantemente verdadeiro e falso, ou seja, paradoxal, sua negação será verdadeira, dando origem assim à variante paraconsistente da lógica da diferença. No caso de uma subdeterminação, isto é, do indeterminado que não é verdadeiro nem falso, sua negação será falsa, o que vai dar origem à variante paracomplexa ou intuicionista da lógica da diferença”. Ambos dividem, portanto, a grande descoberta.

CRÍTICA AO MODELO DE SAMPAIO

A fragilidade mais importante que identificamos no modelo arquitetado por Sampaio, para pôr ordem no território das lógicas, não compromete os seus resultados mais importantes, quais sejam: identificar com precisão e bem caracterizar as lógicas integrantes do pedaço e, sobretudo, a sua proposição inovadora de uma lógica da diferença. Os cinco padrões lógicos estão bem definidos, e a sua consideração metódica nas lides humanas, certamente, seria capaz de propiciar-nos leitura mais fidedigna do mundo e, portanto, seria capaz de ampliar a nossa competência no exercício da vida.

Apesar disso, os dois motivos que alegou para posicionar a lógica da diferença ao lado da lógica da identidade pareceram-me frágeis. Estou-me referindo especificamente à fuga do suposto dilema que os pontos de vista objetivo e subjetivo colocam e, também, à adoção da síntese dialética generalizada, como elemento instituidor das lógicas derivadas.

O argumento da perspectiva objetiva, segundo o qual “a capacidade lógico-identitária seria um a posteriori, produzido pelo colapso de uma diferença” soou-me duvidoso por duas razões. Certamente, as operações patrocinadas pela Lógica Transcendental objetivam o ser em sua inteireza e, portanto, como uma unidade irredutível. Trata-se, entretanto, de um movimento muito específico entre não-ser a ser, isto é, patrocina operações instituidoras ou desinstituidoras ou, ainda, operações transcendentais entre o ser e o nada. A “invaginação do ectoderma lombar”, ainda que tomada apenas como determinante da “essência topológica do sistema nervoso central”, constitui, sem dúvidas, fenômeno natural que ocorre dentro do âmbito da existência objetiva. Isso significa que Sampaio entendeu a invaginação como um processo biológico que, atingindo virtualmente os limites de evolução no plano objetivo, instaura, por transformação, o suporte (também biológico) de algo capaz de transcendê-lo: a mente humana, fato que inaugura um mundo distinto, de feição subjetiva. É certo que o surgimento da mente configura uma “transcendência”, relativamente ao plano objetivo, da mesma forma que é certo que a mente resultante constitui uma unidade, mas não é certo que essa transformação represente um movimento típico da lógica transcendental, do mesmo modo que pode ser que a unidade resultante represente uma unidade de instância superior àquela operada pela lógica transcendental; talvez uma unidade relativa ao todo, reconquistada depois da fragmentação.

A perspectiva objetiva permite-nos compreender como as sensações captadas pelos órgãos periféricos da percepção geram impulsos elétricos que são canalizados para o sistema nervoso central e como tais impulsos elétricos são transformados, no cérebro, em estados de excitação de uma vasta rede neuronial, um percurso amparado tranquilamente pela lógica clássica. Essa perspectiva objetiva não consegue, porém, explicar como esses estados de excitação cerebral são transformados em ideias no âmbito da consciência.

Para tanto, é necessário recorrer à perspectiva subjetiva em que esses movimentos são compreendidos como operações de inferência, amparados por cinco distintos padrões lógicos, e, portanto, não como inferência de padrão exclusivamente transcendental, embora, virtualmente, estas também estejam presentes5.

Assim, entendo que, nesse caso específico, as duas perspectivas não colocam um dilema insolúvel, sendo a perspectiva subjetiva francamente mais habilitada que a objetiva para esclarecer a questão, mesmo porque, em última instância não existe algo como uma perspectiva objetiva. As perspectivas, como as ideias, são sempre subjetivas e o que se chama de perspectiva objetiva não passa de capitulação diante do poder sedutor da lógica clássica que Sampaio tanto combate. Somente podemos falar em ideia objetiva em contextos muito restritos. No geral, trata-se de contradição ou de dogma.

De outro lado, o apelo a um ponto de vista objetivo pareceu-me estranho ao ser adotado por quem definiu a lógica como um saber a respeito de diferentes modos de pensar, o que configura concepção subjetiva da lógica. Pensando melhor, talvez não seja tão estranho assim, afinal Sampaio admitiu mais de uma vez que ser e pensar são o mesmo, e muitos são os trechos em que se percebe certa propensão de estender o campo de atuação das lógicas ao plano natural, o que provavelmente apenas não fez por puro constrangimento, achando que o dito já escandalizaria o suficiente. Pela mesma razão, imagino que omitiu certas fontes não ortodoxas, das quais deixou, entretanto, discretas pistas.

Quanto ao segundo argumento, de adoção da síntese dialética generalizada na constituição das lógicas derivadas, a questão afigura-se igualmente delicada. Consigo compreender pertinente entender que os novos padrões lógicos preservem certa herança essencial legada pelas lógicas fundamentais. Para isso, a dialética presta-se bem, pois a síntese dialética, embora instaure uma instância nova e inconfundível, o faz segundo e dentro de possibilidades estruturais presentes na tese e na antítese que lhe dão origem. A dificuldade maior aqui reside no fato de a lógica dialética ser também uma lógica derivada, o que implica a contradição de ser a lógica dialética responsável pela operação que gera a própria lógica dialética. Nem Sampaio lhe conferiu tal propriedade, reconhecida, entretanto, como própria da Lógica Transcendental.

Existe ainda uma terceira razão para preferir a perspectiva subjetiva e colocar a Lógica da Diferença em linha, à frente da Lógica Transcendental e não lateralmente, ao seu lado, como ocorrência de igual categoria. Trata-se da necessidade, nesse caso, de atribuir ao inconsciente capacidade operativa autônoma. Nas palavras de Sampaio, “um pensar que, sobretudo, se desconhece”.

Parece-me mais plausível entender que o cérebro disponibiliza um centro operativo único, de compleição subjetiva, cujo funcionamento produz o quê? Subjetividades! Em estado de vigília, esse funcionamento dá-se balizado por condicionantes culturais, dentre os quais a linguagem e a ética destacam-se como evidentes. Em estado de sono, ocorre afrouxamento desses condicionantes estruturais, permitindo que o recalcado, o inalcançável pelo consciente ou o irresgatável pela memória adquiram expressão e possam manifestar-se, por vezes, de forma tão contundente que, ao retornar ao estado de vigília, o ocorrido permanece presente à consciência. É preciso levar em conta que, embora os sonhos sejam pródigos no uso de paradoxos, possuem enredos que exigem a participação das demais lógicas.

Nesse caso, tratando-se de um mesmo centro operativo, funcionando segundo permitem os cinco padrões lógicos estruturais, basta fazer variar o grau de consciência, de vigília, e, virtualmente, de atenção, para explicar as variações constatadas na prática, que vão de atos plenos de consciência em um extremo até momentos da mais absoluta inconsciência, no outro. Com essa solução, que instaura graus distintos de consciência, compreende-se melhor inclusive a própria proposição de Sampaio, que distingue entre um estado de consciência meramente I(x) = x e outro de feição I(I(x)) = I(x), conforme já discutido.

Com essa solução, a Lógica da Diferença passa a ocupar a segunda posição na estrutura, patrocinando operações que pressupõem a operação anterior da identidade. Senão, como identificar uma diferença sem referi-la a um referente ou como reconhecer o outro sem ter antes conhecido o mesmo? Ora, o outro somente pode ser reconhecido como tal, isto é, como outro, comparativamente, tomando-se a si mesmo como referência e base. Sampaio mesmo admitiu que assim seria, caso adotássemos a perspectiva subjetiva (p. 26).

CONCLUSÃO

Colocar a Lógica da Diferença como uma lógica mais complexa que a Lógica da Identidade não compromete a descoberta lógica de Sampaio, como já afirmamos, nem mesmo retira da lógica da diferença seu papel gerador das lógicas subsequentes. Ao contrário, amplia esse papel, tornando-a ainda mais determinante do que no modelo de Sampaio, em que, pela síntese dialética generalizada, esse papel era dividido com a Lógica Transcendental.

Nesse modelo, de feição subjetiva, a operação I está sempre presente, porque se trata sempre de operação consciente da consciência, mas a complexificação ou a obtenção das demais lógicas serão alcançadas pela reiterada aplicação da diferença. Caso fosse possível conservar as notações de Sampaio, teríamos: I, I/D, I/D2, I/D3 e I/D4, indicando, respectivamente, a lógica da identidade, a lógica da diferença, a lógica clássica, a lógica dialética e a lógica hiperdialética.

Como se observa, o efeito mais notável dessa solução sobre a proposição original é deslocar a posição da lógica dialética de antes para depois da lógica clássica. Passando I/D a designar a lógica da simples diferença e sendo convincente a demonstração de Sampaio de que a lógica clássica constitui uma lógica da dupla diferença, somente resta colocar a dialética na quarta posição, como I/D3, como tripla diferença. Proclo certamente estaria de acordo e, talvez, Einstein não tenha, afinal, incluído uma quarta dimensão dentro do espaço (p. 167), mas sim envolvido o espaço com uma quarta dimensão de tempo.

Olhando essa questão de uma distância maior, vejo como justo o entendimento de que as cinco lógicas instauram uma estrutura hierarquizada, em que cada lógica ocupa lugar determinado. Percebo também pertinente entender que essa estrutura contempla orientação no sentido da complexidade, na qual a Lógica Transcendental ocupa a posição mais simples, em face do seu padrão operativo, e a lógica hiperdialética, pela mesma razão, ocupa a posição mais complexa. Também compreendo que as lógicas mais complexas contemplam certa herança vinda das lógicas mais simples.

Essa estrutura, ao ser composta por cinco lógicas, comporta quatro intervalos, ainda não especificados, de grandezas, afastamentos ou compleição desconhecidos. Apesar disso, parece evidente que as lógicas guardam entre si relações estruturais de interdependência ou, ao menos, de dependência da lógica derivada para com as lógicas mais simples. Em outros termos, qualquer estrutura contempla condicionantes estruturais, e eu me sentiria mais confortável se o mapeamento do Logos fosse realizado com plena iluminação da estrutura subjacente e, ainda mais, se essa estrutura fosse capaz de justificar os próprios padrões lógicos, mediante argumentos estruturais e não, recursivamente, lançando mão do padrão operativo de qualquer das lógicas.

Gostaria, porém, de protelar uma discussão mais detida dessa estrutura para um terceiro trabalho, pois não somente o reposicionamento da lógica dialética como também a rediscussão das características da lógica hiperdialética exigem o esclarecimento prévio do modelo dimensional de universo, que me fornece a capacidade de ver os limites do modelo proposto por Sampaio.

Conforme projetado inicialmente, aqui nos propomos apenas a responder a primeira das três questões que colocamos ao delimitar o nosso objeto: questão relativa ao grau de independência que Sampaio confere à Lógica da Diferença. Nesse sentido, consideramos a missão cumprida. A adoção da perspectiva subjetiva foi justificada positivamente, e a solução revela-se, no mínimo, igualmente esclarecedora.

Brasília, abril de 2004.

Rubi G. Rodrigues

 1 Opinião compartilhada também no âmbito da Física Quântica há mais de trinta anos. Ver HEISENBERG, Werner. A parte e o todo. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p. 122: “…as mesmas forças organizadoras que moldaram a natureza, em todas as suas formas, também são responsáveis pela estrutura de nossa mente e de nossas faculdades intelectuais”.

2 Sampaio adota um conceito de inferência restrito ao pensamento patrocinado pela Lógica Clássica, indicando a relação consequente entre os termos da operação. Aqui adotamos um conceito mais amplo, indicando a relação consequente entre os termos de qualquer operação lógica.

3 SAMPAIO, Luiz Sergio Coelho de. A Lógica da Diferença. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 2001 – obra referida no texto com a simples indicação da página.

4 BARBOSA, Marcelo Celani. As lógicas ressuscitadas segundo Sampaio. São Paulo: Makron Books, 1998.

5 Esta explicação, embora suficiente para demonstrar a superioridade da perspectiva subjetiva sobre a perspectiva objetiva, no caso particular em pauta, é uma explicação provisória, enquanto não estudarmos o citado modelo dimensional de universo que nos permitirá mergulhar mais um nível de detalhamento e separar o padrão lógico da inferência do salto transcendental que relaciona consequentemente os planos objetivo e subjetivo.

 

 

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