O METAFÍSICO

No encontro das Segundas Filosóficas de 19/09/2016, ao discutir a metafísica de Platão, o professor Rodolfo Lopes, arrematou com frase lapidar: não se pode ser metafísico apenas durante o expediente. Referia-se ele, de um lado, ao caráter arrebatador da disciplina platônica, que, quando realmente se impõe, impõe-se com supremacia e não admite ser contemplada apenas como uma perspectiva entre as demais. De outro lado, referia-se ele ao fato de que ser metafísico implica também modo próprio de ser, que impacta todas as dimensões da vida e não se restringe apenas à produção intelectual e acadêmica. Modo de ser que extravasa o expediente e se estende às demais instâncias da vida, em modos de entender e proceder.

Essa digressão, realizada em ambiente amistoso e sob a redoma estimulante de Baco, despertou autocrítica no grupo, que se considera metafísico sem nunca ter-se empenhado em esclarecer formalmente o que é que caracteriza e tipifica o verdadeiro metafísico, embora tenha, vez por outra, com base na intuição, criticado posturas pretensamente metafísicas. Certamente, entre pretender-se metafísico e realmente ser metafísico, cabe distância – caso caracterizar essa distância seja possível.

O caráter arrebatador e exclusivista da metafísica justifica-se facilmente na medida em que essa ciência nos instrumentaliza com cosmovisão capaz de situar-nos e harmonizar-nos no mundo. Na medida em que revela as leis da natureza, nos mostra que fazemos parte dela em condição de absoluta interdependência, ensejando com isso um comportamento natural e um convívio de plena cumplicidade e respeito com tais leis. Saber quem somos, saber o que somos, conhecer a nossa condição existencial, dominar a nossa capacidade de discernir e de entender e conhecer a natureza que nos envolve, configuram condições suficientes para que se desfrute a vida em ambiente confortável e acolhedor. Mas a metafísica faz mais do que nos harmonizar com a natureza, harmoniza-nos também com o contexto cultural, na medida em que possui escopo e amplitude para recepcionar também todas as demais concepções e visões de mundo e lhes reconhece a capacidade de contemplar, cada uma, a sua porção de verdade, e também na medida em que compreende as diferentes posições intelectuais, como aquelas que as circunstâncias de cada um tornaram possível. Com tais atributos, resulta imperativo estrutural dessa metafísica, que desvende de que forma se estabelece a existência em ato no universo e que também contemple a totalidade, esclarecendo o que seja isso.

A única metafisica com tal escopo resulta ser a metafísica de Platão e Pitágoras, cuja década sagrada indica, dimensionalmente, o percurso criativo que a natureza cumpre na edificação do ente em sua totalidade unitária e complexa, a partir de um ser uno, indivisível e determinado. Platão nos ensina com a sua dialética, a necessidade de partir da totalidade do ente manifesto e dirigir-se à unidade última que o constitui, tendo o cuidado de considerar todas as instâncias intermediárias, caso se almeje um entendimento correto da realidade. Platão também teve o cuidado de indicar todas as instâncias intermediárias que permeiam a unidade indivisível do ser e a totalidade do ente, que constitui aquilo que realmente é e pode ser conhecido: o ser, a alma ou inteligência organizativa potencial, a materialidade, a temporalidade e a totalidade ou inteligência organizativa efetivamente realizada. (usando termos modernos)

Com a tese do Logos Normativo[i], que interpreta a década sagrada de Pitágoras como estrutura gerativa dimensionalmente organizada, percebe-se que essas cinco instâncias ontológicas que se somam na edificação e constituição dos entes, contemplam modos próprios e específicos de ser, determinados pela amplitude e pelo padrão de movimento de cada instância. Padrão de movimento esse que viabiliza e normatiza também os cinco modos distintos de pensar facultados ao ser humano: o intuitivo, o diferenciador, o sistêmico, o histórico ou dialético e o holístico. Com essa especificação dos conteúdos objetivos e dos conteúdos subjetivos, as cinco instâncias intermediárias preconizadas na dialética de Platão ficam esclarecidas e o percurso analítico, desde o ente até o ser, fica pavimentado.

Ocorre que nós, homens modernos ocidentais, somos frutos de uma cultura científica que restringiu o seu labor e o seu interesse ao contido no espaço e no tempo – materialidade e temporalidade – e por isso nos formou analíticos, especialistas em pensamento sistêmico e em pensamento dialético, que correspondem apenas à terceira e quarta instâncias – números 3 e 4 – da década de Pitágoras. Com isso as nossas análises operam horizontalmente segundo o âmbito de vigências das duas lógicas correspondentes. Assim, por exemplo, analisamos o mundo físico – da terceira dimensão – com pensamento sistêmico, inquirindo causa e efeito e nos contentando em identificar os casos em que o princípio do terceiro excluído garante a estabilidade das cadeias sistêmicas. Ou então analisamos as relações sociais com o modo dialético de pensar, conscientes de que a síntese dialética é, sempre, apenas provável e provisória. Portanto, quer nos dediquemos à ciência Física ou à ciência Política, ou mesmo à Economia que transita pelos dois âmbitos, realizamos análises horizontais que se esgotam na coerência entre os termos que são próprios de cada ciência, que assim se justifica como tal.

Ora, para um metafísico essa coerência entre os termos não basta como justificativa e se as nossas análises e os nossos trabalhos em qualquer área, ficarem restritos ao âmbito horizontal de cada lógica, não estaremos nos comportando como metafísicos. A lição de Platão é clara: a análise pode partir dos entes e fenômenos tal como eles se nos apresentam, mas deve sempre seguir pelos intermediários até atingir a unidade última que os constitui. Ora, essa unidade última é o ser dos entes e dos fenômenos e no caso da espécie humana o ser intelecto que a cada um de nós nos constitui. Significa isso que o verdadeiro metafísico platônico é aquele que não esgota o seu labor na análise criteriosa de qualquer das dimensões constitutivas da realidade, mas sempre mergulha verticalmente analisando instância por instância todos os intermediários até atingir o ser e assentar, nesse ser, os fundamentos últimos de suas teses e conclusões.

Por que isso? Simplesmente porque somente os interesses e as conveniências do ser – e falamos do ser em geral sem restringi-lo ao ser que constitui o humano – podem justificar algo tanto na natureza como na cultura ou na sociedade. Sendo o ser o edificador do universo, toda a multiplicidade que integrar esse universo apenas encontra justificativa nesse ser uno, que, com toda justiça, constitui índice consistente de valoração e critério apropriado de aferição. Não é à toa – agora entende-se a razão -, porque alhures a Metafísica foi definida como ciência do ser.

Essas reflexões foram inicialmente compartilhadas com amigos que também se esforçam por entender a Metafísica e isso foi feito sem preocupações de ordem formal. Tal condição ainda persiste e estas anotações não passam de registro de uma ideia básica para que no futuro se realize um trabalho mais detido visando bem caracterizar o metafísico, segundo a concepção platônica original. A sua publicação no site, deve-se ao fato de agora não dispormos de tempo para estender-nos nessa questão e também porque, embora se trate de notas preliminares, possuem informações que ajudam a identificar e a tipificar tanto o grupo das Segundas Filosóficas como a perspectiva da qual ele se vale. Além disso, a sua veiculação virtualmente enseje a exploração da ideia por outros pesquisadores, dado que o foco, racionalmente justificado no ser, enseja vastas e extensas consequências interpretativas, mormente em civilização focada no ter e na materialidade, tal como a nossa.

Brasília, out/2016

[i] Rodrigues, Rubi. A Teoria dos Princípios … de Platão? Brasília, Editora Thesaurus, 2016, 319 p.