Cosmovisão metafísica

                                  Dedicamos este estudo a César Dias Ribeiro, arguto debatedor, a quem devemos sempre novas intuições.

O exercício formalizado da razão, isto é, o pensamento passível de ser compartilhado e entendido por outra pessoa, somente pode-se dar em presença de um referencial também compartilhável. As inferências humanas, invariavelmente, expressam pontos de vista: expressam o que é visto a partir de um ponto. Caso o interlocutor consiga assumir esse ponto, certamente, entenderá o que for dito, e a comunicação será viabilizada. O ponto de vista a partir do qual nos pronunciamos sobre o mundo pode não ser um referencial formal, pode ser apenas um conjunto de pressupostos que colecionamos e usamos no curso da vida, mesmo sem nos dar conta disso. Nesses casos, podemos ter dificuldade em justificar, racionalmente, nossas posições. Os referenciais que usamos para interpretar as coisas, sejam formais ou acidentais, podem ser restritos e servir para algo específico, como, por exemplo, o sistema decimal, para a ação de contar, ou podem ser abrangentes, como a língua-mãe, virtualmente comum a todos os diálogos de um grupamento humano. Cada ciência desenvolve ou adota um ou mais referenciais específicos, constituídos de valores e de conceitos-chave. São os referenciais de uma ciência que permitem que o conhecimento dela possa ser transmitido na formação de novos cientistas. Nesse sentido, em diálogos racionais, as divergências podem ser atribuídas ao uso de referenciais distintos pelos interlocutores. À vista disso, a superação das divergências pode ser alcançada discutindo-se a consistência e a adequação dos referenciais, ao caso em questão. O referencial mais amplo que condiciona todos os aspectos da vida humana é designado de cosmovisão. Por cosmovisão, entende-se o quadro interpretativo mais amplo, por meio do qual nos posicionamos diante do mundo e da vida. Quadro que molda nossas interpretações do universo.

Embora, historicamente, tenham prevalecido cosmovisões com escassa base científica – de orientação religiosa, humanista ou marxista –, o fato de o homem conduzir-se na vida, segundo as suas interpretações, da realidade e das circunstâncias, indica ser desejável que a humanidade comungue cosmovisão realista, de tal sorte que não apenas o entendimento parta de uma base comum e não se inviabilize de partida, mas também o desempenho de cada indivíduo na vida não se assente em leitura equivocada do mundo. Com leitura equivocada, não se chega, íntegro, ao outro lado da rua. Em termos ideais, esses aspectos colocam exigências estruturais a toda a cosmovisão. Primeiramente, ela precisa ser aderente à realidade, de modo a não contradizer o conhecimento mais estável disponível. Em segundo lugar, ela precisa harmonizar-se com os sentidos essenciais mais caros ao espírito humano, para que atenda à intuição básica da maior parte ou de grande parte da população, condição sem a qual não poderá ser compartilhada.

Em nossa busca por cosmovisão confiável, verificamos que a ciência atual, ao restringir a sua localidade-objeto, ao contínuo espaço-tempo de Einstein, consegue apenas teorizar sobre o universo, a partir do Big Bang, quando, supostamente, espaço e tempo foram criados. A partir dessa grande explosão – tese amplamente aceita no meio científico –, as concepções variam entre universo que se expande continuamente, universo que se expande e estaciona e universo que se expande e se contrai ciclicamente. Embora essas perspectivas consigam justificar o advento das estrelas e das galáxias, a formação da matéria e a orientação geral da natureza no sentido de crescente complexidade organizativa, elas não atendem aos requisitos do espírito, que não aceita reduzir o seu ser à materialidade do seu organismo. Isso vai contra as intuições humanas mais estáveis. De mais a mais, a busca da Física pela partícula elementar edificadora da matéria levou-a ao mundo quântico, onde a melhor aposta consiste, atualmente, em um bóson de Higgs, que se insinua mais campo do que partícula e coloca a ciência na fronteira do mundo material, sugestionando que o princípio talvez se situe além. No entanto, a ciência contemporânea, ao utilizar-se das lógicas vigentes no espaço e no tempo – lógica clássica e lógica dialética –, não possui recursos metodológicos para aventurar-se fora do contínuo de Einstein, razão pela qual também não consegue retroceder para além do Big Bang. Apesar da consistência da percepção científica sobre a organização crescentemente complexa da natureza – evidenciada, de modo insofismável, pela tabela periódica de elementos –, e da sua justificada busca pelo elemento ou tijolo primordial, a partir do qual o universo se edifica, o fato é que a autoimposta limitação da Física, ao contínuo espaço-tempo, está aprisionando-a no mundo material, onde esse princípio elementar, como já se sabe desde a Grécia Clássica, não pode ser encontrado.

Nessas condições, apenas a Metafísica possui escopo e profundidade para superar o âmbito do mundo visível, onde a ciência opera, e formular solução que preserve a racionalidade, que permite aos humanos compartilhar entendimento. A Metafísica é uma ciência sofisticada, quando entendida no sentido da filosofia de Platão, tendo por objeto o ser e a existência do universo, dentro do qual existimos como espécie dotada de racionalidade. A Metafísica adota um único axioma: a crença de que o universo não seja eterno, mas, ao contrário, veio a existir e a se formar, em alguma ocasião e de algum modo. O restante das suas conclusões devem ser amparadas e demonstradas lógica e/ou ontologicamente. A Metafísica também adota a perspectiva da ciência atual, segundo a qual a matéria organiza-se do simples para o complexo, em camadas de crescente complexidade, tal como demonstra a tabela periódica de elementos, no entanto, compreende que essa organização do simples para o complexo estende-se a tudo o que existe e não apenas à matéria visível. Por essa razão, a sua busca por entendimento do mundo e da existência também parte de uma unidade indivisível de máxima simplicidade e estende-se até justificar a presença dos fenômenos complexos e igualmente unitários que compõem a diversidade fenomênica do mundo.

A combinação da crença de que o universo veio à existência, com a percepção de que tudo teve origem em uma singularidade de máxima simplicidade, configura desafio que não apenas motiva os modernos físicos quânticos, mas também movia os criadores da filosofia ocidental. Entre estes, destacam-se Pitágoras e Platão, que formularam a resposta racional que a questão admite. Pitágoras defendeu que tudo tem origem em um ilimitado absolutamente indeterminado e se faz existente em ato, plenamente determinado, pela ação de um limitante. O que Pitágoras afirma pode ser demonstrado com a situação a seguir: o espaço de possibilidades dos números naturais resulta ser infinito e, como tal, indeterminado, de sorte que apenas quando a esse ilimitado impõe-se um limite, afirmando, por exemplo, que é um ou cinco, é que o quantitativo se determina e se torna útil e compreensível. Pitágoras entende que toda a existência em nosso universo tem origem em um ilimitado e resulta limitado e determinado pela ação de um poder limitante. Essa tese de Pitágoras implica conceber a existência em dois âmbitos, um ilimitado e absoluto e outro limitado e relativo. Na mitologia da época, esses dois âmbitos correspondiam, respectiva e simbolicamente, ao mundo dos deuses imortais que criaram o universo e ao mundo dos homens e dos seres mortais.

Platão contribui especificando o ilimitado, ao observar que ele não pode ter nem limites internos nem limites externos. O que o espírito matemático da Grécia Clássica está afirmando aqui é a amplitude do ilimitado. Tomando-se um círculo qualquer como referência, o que se constata é que o seu limite interno é dado pelo raio e o seu limite externo, pela circunferência. Quando se reduz o raio, o limite externo decresce na mesma proporção, de sorte que, quando o raio torna-se nulo, o limite externo também desaparece e o que resta é a figura geométrica do ponto. Ora, o ponto já é conceituado em geometria como lugar no espaço desprovido de dimensão. Logo, embora o ilimitado de Pitágoras continue indeterminado – a nossa mente não consegue compreender o que seja algo desprovido de dimensão –, resta evidente que ao ilimitado cabe, na existência, um âmbito adimensional. Essa a-dimensionalidade, a par de justificar a sua absoluta indeterminação, revela, ainda, que ele precisa ter absoluta imobilidade, uma vez que qualquer movimento o determinaria. Sendo absoluta imobilidade e sendo origem do mundo, caracteriza a existência limitada derivada, necessariamente, como movimento. No entanto, sendo adimensional, não pode ter sido criado, uma vez que, no universo criado, apenas existem totalidades complexas feitas de partes. Com isso, justifica-se, pelo menos, a preexistência da possibilidade de o universo vir a existir. Por último, sendo adimensional, também não possui partes e, assim, resulta ser indivisível. Essa caracterização do ilimitado como sendo adimensional evidencia que apenas um âmbito adimensional consegue comportar atributos absolutos, quaisquer que sejam. Daí as religiões assimilarem esse princípio transcendente à sua divindade criadora.

Com isso, a Metafísica oferece solução geométrica para o princípio origem de tudo, sem precisar avançar pela qualificação desse princípio, como as religiões o fazem, e, ao mesmo tempo, oferece solução consistente para o tijolo básico – perseguido pela ciência –, com o qual o universo se edifica, identificando por ser a energia primordial que transcende do adimensional para compor o mundo. Por essa razão, diz-se que tudo o que existe possui um ser e a Metafísica resulta identificada como ciência do ser. O ser humano possui o privilégio de constatar em si, nos atos mentais de introspecção, a presença do ser que o constitui. Percebe esse ser como intelecto operador e gerador de seus pensamentos e, em razão disso, com ele se identifica. Esse ser corresponde ao nosso eu e é apontado pelo nome que nos identifica em sociedade. Platão designava o adimensional, que também é antecedente dos números, por uno, conceito de indivisível/unidade, necessário para o advento da unidade inaugural dos números naturais: o número um. Sendo matemático, o espírito grego clássico entendia que o universo edificava-se pelo número, uma das causas pelas quais Platão generalizou o uno como origem necessária, não apenas dos números, mas de todas as coisas. Possuindo esse uno amplitude adimensional, o ser-energia que inaugura o mundo relativo apenas pode emanar dele por transcendência, que é um padrão de movimento que explica o surgir na existência, sem prever ação por parte da fonte. Esse padrão de movimento revela presença manifesta, mas nada diz a respeito da sua origem. Nos experimentos de física, em laboratório, quando um elétron muda de órbita, constata-se que ele não transita de uma órbita a outra, mas desaparece em uma e surge na outra, fato interpretado pelos cientistas como comércio de energia com um vácuo cósmico desconhecido, que, em nosso entender, resulta ser apenas um outro nome para designar o adimensional. Esse fato, comprovado em laboratório, demonstra que transcender constitui um movimento comum, segundo o qual todas as presenças emergem e passam a integrar o universo.

Uma vez estabelecido um princípio metafísico capaz de atender a gregos e troianos, voltemos os olhos para a natureza que nos cerca e percebamos que o mundo se caracteriza pela multiplicidade. Embora o universo possa configurar totalidade fechada em unidade, o que se oferece à nossa percepção, compondo e integrando essa totalidade, é uma infinita variedade de fenômenos limitados, que se distinguem uns dos outros. Diversidade essa que, para existir, exige que tais fenômenos sejam determinados e limitados. Quando, em face dessa diversidade, busca-se o que eles possuem em comum, constata-se que todos eles existem, isto é, possuem presença no mundo. Constituem individualidades limitadas, dotadas de identidade própria e, enquanto tal, podem ser percebidas e distinguidas por capacidade de percepção habilitada. Possuem, ainda, outras características comuns, mas, focando o que em particular nos interessa, invariavelmente, constituem totalidades complexas feitas de partes. Embora nossa ciência atual seja analítica e voltada para as partes, na verdade, não existe, na natureza, um fenômeno que corresponda ao conceito analítico de parte. Na existência, apenas ganham assento fenômenos unitários fechados na forma de totalidade. O bóson é um todo, a partícula atômica é uma totalidade, assim, o átomo, a célula, a molécula, o organismo, o planeta. Em nosso universo, a complexidade edifica-se, não juntando partes, mas articulando, de modo inteligente, totalidades bem constituídas. Observe-se que o conceito “parte” não diz respeito a um objeto, mas fala da relação de um objeto com outro, de sorte que o olhar voltado para as partes pode revelar uma composição, mas não fala do ser próprio, daquilo que se está examinando. De mais a mais, a totalidade transcende a mera soma das partes e apresenta propriedades que não se encontram nas partes, mas resultam da sua organização na forma de totalidade bem determinada. Um exemplo conhecido é o da molécula de água em cuja composição encontramos átomos de hidrogênio e de oxigênio, e cujas propriedades diferem totalmente das propriedades dos átomos integrantes, fato que, no sentido que damos ao conceito de transcendência, demonstra que a totalidade transcende a mera soma das partes e está presente no processo de complexificação universal, viabilizando a passagem de um nível de complexidade para o imediatamente seguinte ou anterior.

Ora, se cada fenômeno é delimitado e configurado na forma de totalidade, entende-se por que Platão destacava tanto a sua teoria das ideias ou teoria das formas, nos seus diálogos, e defendia ser a forma que moldava os fenômenos e os determinava naquilo que eram e não em algo distinto do que eram. Em nossos dias, a palavra forma resulta comprometida com significados que dizem respeito aos contornos dos fenômenos materiais, razão pela qual preferimos indicar essa totalidade que molda os fenômenos por inteligência organizativa. Dessa maneira, entendemos por inteligência organizativa o conjunto de nexos lógicos e ontológicos que articulam os componentes de um dado fenômeno, configurando-o naquilo que é e, simultaneamente, evitando que seja algo distinto do que é. Quer nos parecer que, atualmente, inteligência organizativa exprime melhor a força organizadora que molda os fenômenos precisamente naquilo que são e pode ser melhor aceita como conceito universal aplicável a tudo o que existe.

Quando se examina a tabela periódica de elementos, constata-se que ela indica o caminho de complexidade crescente segundo o qual a matéria pode manifestar-se no plano atômico. As partículas constituintes são sempre as mesmas: simplificadamente, elétrons, prótons e nêutrons. O que varia de um átomo para outro é apenas quantidade de partículas e organização do conjunto, ou seja, quantidade e inteligência organizativa. No entanto, cada átomo possui propriedades próprias e inconfundíveis, ainda que, quantitativamente, a sua diferença para com o átomo vizinho seja apenas de um elétron ou de um próton. Os cientistas modernos têm-se perguntado por que um átomo não se transmuta em outro, já que as diferenças podem ser tão pequenas, e a melhor hipótese que emerge aponta para um “campo informativo” muito forte, determinando aquela compleição e evitando que a organização se altere. Familiarizada com o conceito de campo de força, campo elétrico e campo magnético, adotar o conceito de campo informativo revela auspiciosa aproximação da ciência para com o conceito metafísico de inteligência organizativa.

Uma vez caracterizados todos os fenômenos que existem como inteligência organizativa, que molda na forma de totalidade, podemos retomar o princípio necessário da metafísica e perguntar como uma unidade de máxima simplicidade pode ser convertida em uma totalidade complexa feita de partes. Metaforicamente, assimilamos o uno indivisível ao ponto e, agora, podemos assimilar a totalidade feita de partes à esfera e, desse modo, adquirir um referente geométrico de fácil visualização, que nos permita colocar o problema de forma mais amigável: como um ponto pode ser convertido em uma esfera? Colocamos essa questão para diversas pessoas, e a resposta mais instigante foi a do padeiro: coloca fermento no ponto e deixa-o crescer. Naturalmente, não se pode colocar fermento em algo adimensional, mas a ideia de fazer o ponto crescer, tornar-se mais amplo, parece indicar o rumo adequado. Usando a perspectiva matemática dos gregos clássicos, verifica-se que ponto e esfera constituem os dois extremos do espaço de possibilidades evolutivas das formas geométricas. Segundo Euclides, a geometria inicia-se com o deslocamento de um ponto para formar uma reta, desdobra-se, então, em triângulo equilátero, em razão da simetria e, depois, em poliedro regular de quatro faces – o tetraedro. Os poliedros regulares seguintes vão aumentando o número de faces, até formar a esfera, também definida como um poliedro regular de infinitas faces. Nesse sentido, em geometria – que é a ciência da forma –, a esfera representa a evolução máxima da forma, isto é, a perfeição da forma. Desse modo, constata-se que, geometricamente, a conversão do ponto em esfera resulta esclarecida. Ocorre que a realidade não pode ser reduzida à forma. A forma é sempre forma de algo, e esse algo precisa, igualmente, passar de ponto à esfera, precisa passar de simplicidade indivisível para totalidade complexa feita de partes.

Embora ainda não tenhamos ideia de como isso ocorre, observamos que o desdobramento das formas geométricas não revelou só formas crescentemente complexas, mas revelou, também, amplitudes existenciais crescentes, demandadas pelas formas. Quando a figura da reta resulta construída pelo deslocamento de um ponto adimensional, em dado sentido, resulta adequado entender que a reta configura um âmbito de uma dimensão: a dimensão do sentido de deslocamento do ponto, já que este não possui espessura. Quando, a seguir, em segmento de reta demarcado por dois pontos, A e B, por exemplo, procura-se pelo ponto de maior simetria, situado fora da reta, encontra-se o ponto C, cuja união com A e B define o triângulo equilátero, que possui três ângulos e três lados iguais, fato que, justamente, expressa a simetria do ponto C. Para tornar o triângulo possível, foi necessário ampliar a realidade de uma dimensão de reta para a bidimensionalidade de plano, dado que apenas este é capaz de comportá-lo. Quando, na sequência natural de complexificação da forma, coloca-se um quarto ponto D, na posição de maior simetria situada fora do plano, obtém-se a forma do tetraedro regular, e o âmbito teve de ser ampliado para três dimensões, a fim de lograr comportá-lo. As demais formas regulares podem evoluir até a esfera, contando apenas com amplitude de três dimensões. Esse percurso não esclarece como ponto converte-se em esfera, mas esclarece que, tomando-se a dimensão como medida de amplitude existencial, resta configurado preciso referencial geométrico que organiza o percurso que vai do ponto à esfera, ressaltando as três diferentes amplitudes que precisam ser sequencialmente preenchidas na edificação da esfera. Um ganho conceitual substancial.

 Caso estivéssemos em busca de compreensão de como, partindo da maior simplicidade, edifica-se uma esfera tridimensional, o esquema estaria completo, mas a esfera em questão, no presente caso, representa uma totalidade existente em ato, em nosso universo, e, como tal, demanda amplitude existencial superior àquela disponibilizada com o concurso de três dimensões. Desde Einstein, sabe-se que, para viabilizar o deslocamento da matéria no espaço, a localidade da ciência precisa considerar uma dimensão adicional correspondente ao tempo. Sem a presença do tempo, nem mesmo a ontogênese e as funcionalidades de nossos organismos poderiam ocorrer. Esse fato coloca a necessidade de uma quarta dimensão. Além disso, dado que concordamos que todo fenômeno existente precisa ser delimitado na forma de totalidade e que essa totalidade resulta configurada por uma inteligência organizativa, que se sobrepõe e envolve matéria e tempo, dado que molda todo o fenômeno, configurando-o naquilo que é, e, além disso, também preservando-o tal e qual é, cumpre acrescentar, ao nosso modelo, uma instância de totalidade, indicativa da inteligência organizativa com a qual o modelo passa a representar o que, realmente, existe e manifesta presença no mundo.

Observe-se que esse modelo geométrico dimensional não esclarece como uma unidade da maior simplicidade resulta convertida em uma totalidade complexa feita de partes, tida como forma universal de manifestação dos fenômenos na existência. Esse modelo supre a nossa racionalidade com um referencial interpretativo que possui a propriedade de organizar o percurso e destacar as diferentes amplitudes que precisam ser desdobradas/preenchidas para que a existência evolua de uma singularidade de máxima simplicidade para uma existência complexa na forma de totalidade. Dado que a existência em ato apenas se realiza na condição de totalidade, resulta necessário que o percurso que vai do um ao todo constitua um percurso ontológico e não um percurso temporal. Trata-se de um percurso que antecede a existência do fenômeno, percurso no qual, de algum modo, a sua inteligência organizativa, paulatinamente, edifica-se.

Deixando de lado, ao menos por ora, o que a Metafísica permite afirmar sobre os conteúdos e os modos de ser próprios de cada uma das cinco amplitudes que se somam na constituição das totalidades, do já exposto, resulta evidente que o modelo dimensional visa a esclarecer de que forma os fenômenos adquirem existência em nosso universo. Igualmente, parece justificado que toda existência presente em nosso universo resulta determinada por uma inteligência organizativa. Portanto, mesmo sem esclarecer todos os detalhes do processo, parece lícito entender que ele acusa a presença, no âmbito da existência relativa, de inteligência criativa geradora de inteligência organizativa, na forma de totalidade. Isto é, podemos indicar, adequadamente, o processo de geração de existência, em nosso universo, por inteligência criativa. Dado que esse processo explica não apenas a geração da primeira partícula atômica, mas também a transição de partícula para átomo, de átomo para molécula, de molécula para organismo e assim por diante, trata-se não apenas de solução inteligente, mas de solução verdadeiramente genial. Além de inteligente, é econômica: uma mesma solução para todo o processo de complexificação universal.

Posto o processo de criação em termos de inteligência criativa, parece útil reconsiderar certos detalhes do ser-energia que, segundo a Metafísica, transcende do uno, visto que é ele que energiza e deflagra a inteligência criativa. O ser, ao transcender de um adimensional, carrega a amplitude da origem, com a diferença de estar em movimento. O traçado da reta, já discutido, evidencia isso: trata-se de um adimensional em movimento e, por isso, demanda, para a sua manifestação, âmbito de uma dimensão. O âmbito relativo no qual o ser emerge, ainda que meramente ontológico, constitui um âmbito caracterizado pelo movimento e, como tal, não oferece impedimento ao movimento do ser, uma vez que este é adimensional. Logo, o ser que fornece a energia com a qual a complexidade se edifica resulta portador de um impulso para a complexidade que não pode ser contido. Dessa forma, assim como na tabela periódica de elementos, existem posições de estabilidade, nas quais inteligência organizativa determina átomos estáveis, assim, em toda a natureza relativa, existem posições nas quais a complexidade pode ser estabilizada por alguma inteligência organizativa. Em face disso e apesar disso, percebe-se presente, na natureza, um ímpeto de ser, atestando que a ação complexificadora do ser e da inteligência criativa pode ser retida temporariamente, mas sempre procurará um modo de produzir complexidade superior. Isso lembra o insistente desejo de progresso presente nos humanos.

Reunindo, agora, o ser com o seu impulso para a complexidade, a inteligência criativa e a inteligência organizativa, delineamos a estrutura básica da cosmovisão metafísica de um universo cuja matéria-prima é constituída de energia e de inteligência e configura-se como local de manifestação da organização. Tratando-se de um universo tensionado por evolução organizativa, que propósito pode ter esse universo, composto de ser-energia e de inteligência, além de gerar consciência e capacidade de entender e operar, virtual e conscientemente, essa maravilhosa engenharia? Mesmo sem pretender conferir um princípio teleológico ao universo, centrado na geração de consciência, a conjugação dos conceitos de ser, inteligência criativa e inteligência organizativa implica, praticamente, a geração de consciência e compromete a natureza com esse propósito. A possibilidade da consciência parece estar, desde sempre, inscrita no ser.

As implicações da adoção dessa cosmovisão metafísica são imponderáveis, mas, de imediato, evidencia-se que a espécie humana resulta ser um fenômeno cósmico privilegiado e promissor, posto ser munida de consciência capaz de pensar a inteligência que cria e ordena o universo. Possivelmente, não o único, dado que natureza com tal compleição tende a desenvolver consciência em todo lugar e em qualquer contexto favorável. Promissor, porque nada está garantido. A natureza concedeu livre arbítrio aos homens, virtualmente, para testá-los e saber se, uma vez conquistados, plenamente, a razão e o discernimento, serão também responsáveis o suficiente para usar, adequadamente, esse poder. O fato de o universo ser constituído de inteligência evidencia que a construção do entendimento, sobre a sua origem e o sobre o seu funcionamento, implica a criação de inteligência interpretativa que seja correspondente tanto a essa inteligência criativa e como a essa inteligência organizativa, tal como, aqui, tentamos explicar. Com isso, pela primeira vez, potencialmente, ficam estabelecidas bases coerentes para uma teoria metafísica do conhecimento transmissível, que ensine a pensar metodicamente e, assim, abra novo horizonte evolutivo para a humanidade.

Sem nos estender em especulações temerárias, parece útil observar que essa concepção cosmológica tanto abre nova perspectiva para a ciência como abre perspectiva revigorante para a religião, uma vez que se incorporam à realidade instâncias fenomênicas complementares ao mundo visível do espaço tridimensional. A Física, com certeza, ganha a possibilidade de dispensar esse esdrúxulo conceito de não localidade para explicar fenômenos de emaranhamento quântico, e a religião pode dispensar seus dogmas e redefinir-se, de modo harmônico, com o restante da racionalidade. Tudo o que estava em potência no adimensional tende a tornar-se existência em ato, à medida que a organização cósmica avança. Qual o limite da evolução, ninguém sabe, mas, certamente, a espécie humana está habilitada para ocupar papel relevante nesse processo, naturalmente, caso aprenda a pensar corretamente.

Para encerrar, pensamos que, em largos traços, fica cumprido o prometido no título. Evidentemente, restam inúmeras questões a serem esclarecidas, particularmente, no que diz respeito aos detalhes da edificação das coisas no percurso ontológico, mas isso apenas vai interessar a alguns poucos, que poderão encontrar mais explicações no site das Segundas Filosóficas.

Brasília, nov./2020