UM NOVO ESPÍRITO DO TEMPO

 

O rei justo é, necessariamente, dialético e dialético, é quem vislumbra o todo.

Platão

Somente interpretação correta da realidade permite atitudes adequadas no mundo. Sem isso, está-se, liminarmente, fora de jogo. A saída do Reino Unido da União Europeia, as reações às invasões migratórias na Europa, a crescente fragilidade da euro-social-democracia bem como as eleições de Trump, nos Estados Unidos, e de Bolsonaro, no Brasil, entre outras, estão sendo interpretadas como guinada ideológica planetária da esquerda para a direita. Embora essa seja a aparência, penso que há razões mais profundas. O que parece emergir é um novo espírito do tempo, o qual desperta, em toda parte – turbinado pelas redes sociais, no embalo de uma capilar comunicação planetária sem intermediários, mostrando ser universal e compartilhado –, certo sentido consciente de dignidade humana, certo desejo natural de civilidade e certa percepção de compartilhamento de um mesmo destino que, antes, afiguravam idiossincrasias pessoais e mantinham o homem comum à margem do processo histórico. No Brasil, o despertar dessa consciência mobilizou a população a ponto de realizar uma campanha política sem comando e sem custo, praticamente dispensando a participação do candidato – fisicamente impedido –, em clara manifestação de espírito coletivo bem caracterizado que repudia e já não aceita mais nem os desmandos da política tradicional nem as concepções ideologizadas da realidade. Estamos, certamente, diante de um fenômeno de escala planetária que coloca em xeque estruturas históricas de controle social e enseja nova e encarniçada disputa de poder. Esta, seguindo o formato de poder vigente, materializa-se no confronto de duas concepções econômicas: a concepção rentista do Sistema Financeiro Internacional, capitaneada por Londres, e a concepção realista, que valoriza a economia real e a produção de bens e serviços, politicamente liderada pelo Presidente dos Estados Unidos da América, mas, tacitamente apoiada por Pequim, Moscou e outros países. Homem da indústria, Trump, segundo o Instituto LaRouche, estaria acumulando forças para reimplantar a lei Glass Steagall, com a qual Kennedy retirou do Federal Reserve a missão de emitir moeda, transferindo-a para o Tesouro Americano e acabando, então, com o mais rentável dos negócios da banca. A ousadia de Kennedy custou-lhe a vida, e o seu vice, Lyndon Johnson, meses depois de assumir, acabou revogando a medida. Agora, percebe-se que as circunstâncias são outras, embora os escrúpulos da banca continuem os mesmos. A banca enfrenta graves problemas estruturais, com os ativos nominais superando, em mais de dez vezes, o valor da economia real, exigindo remuneração. O negócio rentável das dívidas públicas consolidadas – que exaure a vitalidade das nações – e a farra dos derivativos – que se combinaram na geração da gigantesca pirâmide financeira – prenunciam dias difíceis para o setor. Moedas digitais, instituições financeiras digitais, registros públicos invioláveis de transações, crescentes e aperfeiçoadas legislações antifraude, mundo afora, configuram reações que tentam sitiar o Sistema Financeiro. Londres e Wall Street reagem principalmente em duas frentes: de um lado, fomentando discórdias, com uma guerra comercial com a China e um russiagate com Moscou, na tentativa de impedir que Donald Trump, Vladimir Putin e Xi Jinping ajustem seus ponteiros e se unam em projetos de economia real, tal como a proposta chinesa de uma nova Rota da Seda, que visa à criação de pontes terrestres mundiais como infraestrutura para a promoção do crescimento geral; de outro, a banca reage financiando movimentos mundiais de esquerda que atuam contra a economia real e geram os desequilíbrios financeiros dos estados, os quais a banca depois, gentilmente, financia. Não há, pois, mistério algum no fato de o maior financiador de ONGs e de movimentos sociais mundo afora ser um banqueiro – George Soros – e, tampouco, no fato de o pagamento dos juros da dívida ser feito com recursos subtraídos de serviços públicos deixados de ser prestados à população. O ataque diário e persistente que a mídia mundial efetua contra Trump, com argumentos cada vez mais torpes, evidencia que a intelectualidade predominante enfrenta dificuldades para compreender a realidade dos fatos e o resultado prático de seus posicionamentos. Bolsonaro que se prepare, uma vez que vai enfrentar a mesma indisposição da imprensa e o mesmo patrulhamento dos intelectuais que aparelharam as universidades brasileiras, desviadas de sua função institucional de ser o carro-chefe do progresso intelectual e tecnológico do País. Em um mundo de crescente dependência de inteligência criativa, a persistência dessa situação não pode ser admitida, sob pena de condenar a nação brasileira à inutilidade. Como enfrentar isso? Trump, diretamente, ataca a globalização, que considera o eufemismo moderno indicativo do controle imperialista mundial almejado pelo Sistema Financeiro. As eleições de novembro poderão fornecer-lhe força suficiente para convocar um novo Bretton Woods, capaz de corrigir as distorções existentes e liquidar de vez com as pretensões imperialistas. Bolsonaro, com muito menos cacife, terá de usar inteligência para unir a nação em torno de um projeto para o Brasil, mas poderá, em certo sentido, complementar o trabalho de Trump. O americano, essencialmente, visa a superar o rentismo e restabelecer a precedência da produção real de bens e de serviços que constitui a verdadeira riqueza. A Bolsonaro se oferece a oportunidade de promover superação cognitiva que resgate as mentes para a verdade conceitual e interpretativa, indispensável a uma humanidade que tenha superado as suas guerras internas. Esse upgrade cognitivo terá de ser gerado dentro das próprias universidades financiadas pelo Estado, mediante programa-desafio lógico, destinado não a vencer ou a convencer alguém, mas a oportunizar a emersão de racionalidade superior em capacidade explicativa. Trata-se de discutir e de entender, formal e metodicamente, a lógica da totalidade, em essência, uma tese do filósofo brasileiro Luiz Sérgio Coelho de Sampaio, que defendeu a ideia de que a evolução humana se dá pelo desvelamento e pelo domínio de lógicas e inferências crescentemente complexas. A totalidade tem sido negligenciada, porque a ciência atual é analítica, voltada para as partes, as quais são priorizadas na expectativa de que o domínio das partes proporcione entendimento do todo, quando, na verdade, o todo transcende a soma das partes e instaura realidade superior. A superioridade do todo pode ser facilmente demonstrada no fato de ser o todo que confere sentido à parte. Falar em roda, por exemplo, não esclarece muito, mas, ao se falar em roda de automóvel, ela fica mais determinada. Falando de roda de trator, a situação já é outra. Assim será, também, para roda-gigante de parque de diversões ou roda de moinho. Será sempre em face de um todo que a parte ganha sentido. O próprio Bolsonaro, ao declarar que pretende governar para todos e não para uma facção, intui que a Presidência da República requer um pensamento totalizante. O que se oportuniza a Bolsonaro realizar não é apenas um governo de transição da esquerda para a direita, mas realizar uma transição mental da parte para o todo e, assim, promover a superação definitiva das ideologias que, invariavelmente, pretendem impor ao todo a lógica da parte. Enfrentar esse desafio e conquistar uma racionalidade globalizante constituem responsabilidade inalienável da elite intelectual brasileira que não pode continuar a fomentar discórdias, quando o presidente tenta unir a nação em torno de um projeto que visa a conferir harmonia e funcionalidade ao todo brasileiro, de sorte a, o mais rapidamente possível, superar os desequilíbrios de toda espécie que tornam o Brasil ineficiente na universalização de bem-estar. É sabido por todos que a perna direita brasileira, representativa da dimensão econômica, resulta ser muito mais forte do que a perna esquerda, representativa da dimensão social. A solução não é amputar a perna sadia e reduzi-la ao tamanho da perna atrofiada para conquistar um equilíbrio na miséria. A solução inteligente é administrar com visão do todo e promover a recuperação e o incremento da parte mais fraca, com transferência adequada de recursos, de sorte a conquistar equilíbrio em condição de maior potencialidade geral. Os rumos da indústria e da tecnologia apontam para uma demanda crescente de capacidade cognitiva da nação como fator de produção, e o próprio setor produtivo já compreende que não podemos continuar perdendo nossos jovens mais promissores para o exterior, sob pena de estagnação da própria economia. Precisamos, ao contrário, potencializar a inteligência da nossa juventude e ampliar o potencial criativo brasileiro, capitalizando a nossa flexibilidade adaptativa natural – o aspecto positivo do jeitinho brasileiro. Como Sampaio já indicou em seu último livro, nosso destino não é luxo, mas originalidade. Superar a disputa das partes e passar da parte para o todo significam, sobretudo, evolução cognitiva: ampliar o uso competente da razão – uma obrigação de todo intelectual privilegiado com formação superior.

Brasília, 30 de outubro de 2018.

Rubi Rodrigues