O zelo de Deus – Resenha crítica de um metafísico

A obra O zelo de Deus, do filósofo alemão Peter Sloterdijk, sobre a disputa histórica dos três monoteísmos – São Paulo: Unesp, 2016, 207 p., tradução de Nélio Schneider –, coloca ao alcance dos brasileiros interessante trabalho analítico sobre a evolução da cultura humana, que toma por referência o fenômeno religioso. A tese básica de Sloterdijk é que uma ciência geral da cultura, na condição de ciência da coexistência, representa o caminho que resta para o processo civilizatório e, como tal, precisa incorporar e tratar das questões as quais, atualmente, são contempladas, privativamente, pelas ciências das religiões, o que indica reconhecimento da importância da religiosidade para o equilíbrio pessoal e coletivo das sociedades.

O percurso analítico cumprido por Sloterdijk parte da caracterização das três grandes religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo –, cuja guerra e diálogo constituem objetos de suas reflexões na obra. Iniciando pela discussão das razões psicossociais que explicam o fenômeno religioso, destaca as interpretações mais antigas focadas nas carências e no desamparo humano frente ao universo e, também, explicações mais modernas que privilegiam o impulso humano natural para a superação das deficiências de talento – que designa excessos – e levam o homem a almejar sempre mais e, enfim, a cura e a salvação. Na caracterização das três religiões, não se dedica à descrição extensiva das doutrinas ou dos respectivos livros da lei, mas se atém ao destaque de pontos relevantes à contenda, para sorte e infortúnio dos contentores. Nos capítulos Formações de combate, Frentes de batalha e Campanhas, destaca também fatos históricos relevantes mas, sobretudo, pontos estruturais de conflito, contradições e fragilidades reveladas, além de adaptações que tiveram de ser feitas nas três doutrinas, no processo de expansão e de conquista da adesão das populações, tendo em vista mudanças que se operaram na cultura geral, sob égide das ciências, ensejando migração de uma doutrina da criação de base transcendental para uma doutrina imanente de um devir que se auto-organiza.

É, porém, no capítulo intitulado Matrix que a crítica e a posição conceitual do autor ganham profundidade. Nesse ponto, Sloterdijk caracteriza os três monoteísmos como movimentos de ascensão à suprema perfeição, facultados a espíritos tensionados pelo desejo de transcender a condição humana. Designa essa orientação comum de suprematismo pessoal, que implica em adeptos submissos e zelosos, afirmando que “O monarca do suprematismo pessoal não só é criador, soberano e preservador do mundo, mas, além disso, também seu arquivista, seu patrocinador, seu redentor, seu juiz e in extremis seu vingador e aniquilador”. Percebe, porém, que o fenômeno religioso possui também, a par das motivações indicadas, razões lógicas estruturais indispensáveis para bem explicar o fenômeno. Em vista dessas razões, identifica e critica variante do suprematismo pessoal que designa suprematismo objetivista ou ontológico, cuja ascensão exige fundamentos racionais e cujo objeto é uma ideia ou um princípio gerador e ordenador do universo. Destaca que “A ascensão ao Supremo objetivista leva ao Deus dos filósofos”, ataque direto às visões metafísicas. Na crítica desse suprematismo ontológico, destaca, ainda, uma variante eidética e outra noética, além de seus extremismos: “O extremismo que marca presença também aqui pela natureza do objeto é cunhado pela busca da fórmula última. Ele não desiste das suas pretensões antes de garantir ao espírito humano a conexão com os intelectos mais elevados, no final das contas até se tornar cossabedor dos procedimentos de Deus na geração do mundo”.

A junção do suprematismo pessoal e do suprematismo noético enseja Sloterdijk concluir que, em termos lógicos, os zelotes universalistas objetivam eliminar o erro, o risco de equívoco – “mesmo que isso implique extinguir quem erra junto com o erro”. Essa conclusão a estende para o iluminismo zeloso bem como para o cientificismo zeloso, todos tentando encontrar linguagem imune a erros que transcenda a fala humana tão cheia de matizes, inflexões, ênfases, simbolismos etc. Em resumo, todos esses suprematismos “estavam sem exceção sob os signos do esforço para fugir da esfera do saber falível para ancorar a existência humana excentricamente no absoluto”. Com isso, conclui exaurida a matrix das metafísicas religiosas e filosofias clássicas, restando apenas o caminho dos pensamentos plurivalentes que, desde sempre, toda criança pratica. Essa conclusão ampara-se em entendimento de que a postura metafísica resultava da vinculação da ontologia clássica com a lógica clássica (p. 123) e no fato de o pensamento cotidiano mostrar que, entre preto e branco, existem inúmeros tons de cinza, que a lógica clássica do terceiro excluído não consegue ver (p. 142-143).

Nessa linha, como era de se esperar, a verdade acaba relativizada e transita de verdade de Deus para verdade dos homens, e as religiões configuram-se partes petrificadas em meio a acontecimentos nos quais “experimento e apocalipse coincidem”. Como resultado notável dessa tendência, Sloterdijk destaca o advento do comunismo e suas qualidades dogmáticas: “o cajado do profetismo teria passado de Moisés para Jesus, de Jesus para Maomé, e de Maomé para Marx”, inaugurando um suprematismo antropológico, nitidamente antirreligioso. Tendo em vista a catástrofe do comunismo no século XX, Sloterdijk detecta certo ressurgimento do interesse pelas religiões, não em razão de mérito de virtuais reposicionamentos, mas pelo fato singelo de serem os códigos religiosos o que está disponível.

Sloterdijk observa, entretanto, que “O desenvolvimento das geometrias não euclidianas, das lógicas não aristotélicas, das éticas não decalógicas, deixa claro de que modo o espaço de aprendizagem do mundo está aberto para cima”. Com isso, no capítulo de encerramento, que intitula, sintomaticamente, de Pós-zelo, resgata, como alternativa, proposta do egiptólogo Jan Assmann – autor de Moisés, o egípcio e de A distinção mosaica –, que, baseado no experimento monoteísta do faraó Aquenáton, do século XIV a.C., “apoia uma mudança de paradigma que leva ao deslocamento de acento de uma Renascença helenocêntrica para uma Renascença egiptocêntrica”, invocando, naturalmente, o renascimento europeu, que teve início no século XIV.

Segundo Sloterdijk, Assmann traça, com maestria, esboço de religiosidade mais suave e convincente que teria sido experimentada antes das concepções mosaicas e a designa por “cosmoteísmo”. Sloterdijk, com razão, entusiasma-se pela ideia, ainda que não se estenda em maiores considerações. O que está em jogo aqui é uma saída para o impasse pós-moderno que hoje atormenta o mundo. A opção teocêntrica religiosa encontrou limitações, na medida em que ficou claro que o universo e todas as suas criaturas possuem compleição limitada, o que apenas lhes possibilita pensar e entender o que seja também limitado. Com isso, restou claro que Deus ou o princípio absoluto e ilimitado do universo encontra-se fora do alcance predicativo dos humanos. Em consequência, qualquer predicação do absoluto que seja tentada somente pode ser aceita em ato de fé, não como resultado inferencial logicamente amparado. Nesse sentido, por exemplo, o Deus privativo da humanidade teve de ser revisto como gerador de todas as criaturas do universo. A opção antropocêntrica do comunismo, por seu turno, exauriu-se, também, em razão de basear-se em lógica dialética que se limita a contemplar o processo histórico de luta pela sobrevivência, no qual sobressaem o egoísmo e os instintos e cujo horizonte apenas descortina instabilidade e transformação, sem qualquer esperança de porto seguro: seu horizonte é a morte garantida pela entropia. Dessa forma, o pensamento dialético serve muito bem para criticar e para destruir, mas não possui capacidade de construir e de estabilizar. Tendo em vista tal experiência, uma terceira opção – cosmocêntrica – afigura-se, realmente, interessante. Sendo o universo também limitado e ordenado, entendê-lo situa-se dentro das possibilidades humanas, e, nesse caso, o desvelamento das leis gerais que presidem o seu ordenamento habilitaria a espécie humana a descortinar o espaço de possibilidades que a sua inserção nessa natureza potencializa. O religamento seria com a natureza. O conhecimento das leis universais permitiria também balizar uma ética que melhor se ajuste para a harmoniosa convivência de livre arbítrio e natureza. Com essa superação do dogmatismo e do egoísmo, não estaria eliminada a possibilidade de culto e de comunhão nem mesmo dispensada a necessidade de princípio gerador de todas as coisas. Apenas o seu reconhecimento seria pautado não em predicação indevida do que, sabidamente, afigura-se indeterminado, mas em admiração e maravilhamento pela genialidade da obra. A religiosidade humana estrutural poderia ainda ter vazão em cultos dominicais nos quais leigos e cientistas comungariam conhecimento e as famílias poderiam exercitar convívio de aprendizado e civilidade superiores. Sloterdijk não se estende a tais detalhes, apenas questiona se a concepção admitiria ser atualizada por uma ciência geral da cultura, de vez que lhe parece impossível revigorar e aproveitar, por exemplo, o politeísmo que vigorava na época.

Pensamos que Sloterdijk acerta na mosca. O que lhe escapa, em virtude da distância que separa Brasília de Karlsruhe, é que também estamos motivados por um renascimento egiptocêntrico, trabalhando, intensamente, para criar a Academia Platônica de Brasília, a qual se propõe resgatar leitura da obra platônica, que toma por referência a matemática que Pitágoras, pessoalmente, recolheu nos templos do Egito. Embora a nossa referência não seja Assmann e, sim, Moustafa Gadalla, tivemos a oportunidade de decodificar parte relevante da mitologia egípcia e elaborar alguns trabalhos que Sloterdijk, certamente, gostaria de ver tratados por uma ciência da cultura e que já estão disponíveis no site das Segundas Filosóficas: http://segundasfilosoficas.org/. Entre esses, destacam-se: A ordem, que apresenta cosmovisão implícita na perspectiva; As origens egípcias das doutrinas não escritas de Platão, que tenta traduzir, racionalmente, o núcleo da mitologia egípcia e estabelecer pontes com os gregos clássicos, e, ainda, Teoria do conhecimento II, na qual tenta-se sistematizar uma teoria metafísica do conhecimento. Com isso, pensamos que o renascimento egiptocêntrico já está em curso e que O zelo de Deus não só deve ser lido como também guardado como relíquia.