Fé, razão e política: analisando em detalhe as anotações do Papa

Sent: Tuesday, September 19, 2006 6:10 PM

Subject: [Spam] Stratfor Geopolitical Intelligence Report

Trad. Livre: Demo, P.

Por G. Friedman

A 12 de setembro, Bento XVI proferiu uma aula sobre “Fé, Razão e a Universidade” na Universidade de Regensburg. Em sua discussão (texto completo disponível no site do Vaticano) o Papa pareceu estar tentando definir uma rota entre fé dogmática e relativismo cultural – fazendo sua contribuição pessoal para o velho debate sobre fé e razão. No andamento da aula, fez referência a uma “parte do diálogo promovido – talvez em 1391 nas casernas de inverno próximo a Ankara – pelo erudito bizantino, o imperador Manuel II Paleologus e um persa educado no assunto da cristandade e islã, e a verdade de ambos”.

Bento prosseguiu dizendo – e é importante ler uma passagem longa para entender este ponto – que:

“Na sétima conversação editada pelo professor Khoury, o imperador toca no tema da guerra santa. O imperador deve ter conhecido que a Sura 2.256 assim reza: ‘Não há compulsão em religião’. Conforme os expertos, esta é uma das suras do período inicial, quando Maomé ainda estava destituído de poder e sob ameaça. Mas naturalmente o imperador também conhecia as instruções desenvolvidas mais tarde e registradas no Quran, relativas à guerra santa. Sem descer a detalhes, tais como a diferença no tratamento reservado para aqueles que têm o ‘Livro’ e os ‘infiéis’, ele dirige-se a seu interlocutor com rispidez surpreendente, uma rispidez que nos deixa pasmos, sobre a questão central a respeito da relação entre religião e violência em geral, dizendo: ‘Mostre-me exatamente o que Maomé trouxe que era novo, e aí encontrará coisas somente ruins e desumanas, tais como seu comando para espalhar pela espada a fé que ele pregava”. O imperador, depois de ter expressado a si mesmo tão vigorosamente, continua a explicar em detalhe as razões por que espalhar a fé através da violência é algo não racional. Violência é incompatível com a natureza de Deus e a natureza da alma. ‘Deus’, diz ele, ‘não é agradado por sangue – e agir de modo não racional é contrário à natureza de Deus. Fé nasce da alma, não do corpo. Quem quiser levar alguém à fé necessita da habilidade de falar bem e raciocinar apropriadamente, sem violência ou ameaças… Para convencer uma alma racional, não é mister um braço forte, ou armas de qualquer tipo, ou quaisquer outros meios de ameaçar uma pessoa com a morte’.

“A afirmação decisiva neste argumento contra conversão violenta é esta: não agir de acordo com a razão é contrário à natureza de Deus. O editor, Theodore Khoury, observa: ‘Para o imperador, como bizantino formado pela filosofia grega, esta afirmação é auto-evidente. Mas para um ensino muçulmano, Deus é absolutamente transcendente’”. A reação do mundo islâmico – ultraje –  caiu rápida e afiada sobre a passagem citando Manuel II: “Mostre-me exatamente o que Maomé trouxe que era novo, e aí encontrará coisas somente ruins e desumanas, tais como seu comando para espalhar pela espada a fé que ele pregava”. Obviamente, esta passagem é uma citação de um texto prévio – mas igualmente obviamente, o papa estava fazendo uma consideração crítica de que tem pouco a ver com esta passagem.

A essência desta passagem é acerca da conversão forçada. Começa apontando que Maomé falou da fé sem compulsão, quando não tinha poder político, mas que quando se tornou forte, sua perspectiva mudou. Bento continua a construir o argumento de que conversão violenta – do ponto de vista de um bizantino formado pela filosofia grega e, portanto, formado pela prioridade da razão – é inaceitável. Para alguém que crê que Deus é absolutamente transcendente e está além da razão, assim prossegue o argumento, é aceitável. Claramente, Bento sabe que os cristãos também praticaram conversão forçada em sua história. Ele também sabe que a tendência aristotélica não é exclusiva da cristandade. De fato, que certa tendência exista na tradição islâmica, através de pensadores como Al-Farabi ou Avicena. Estes permanecem em relação com o Islã como Tomás de Aquino o faz com a cristandade ou Maomé com o judaísmo. E todas as três religiões lutam não só com o problema de Deus versus ciência, mas com a relação mais complexa e interessante tripolar da religião como revelação, razão e dogmatismo. Há sempre este acadêmico bíblico, o filósofo preocupado com a fé e o clérigo que pretende falar por Deus pessoalmente.

A discussão ponderada de Bento deste problema precisa ser considerada. Também a ser considerado é por que o papa escolheu atirar uma granada de mão num barril de pólvora, e por que escolheu esta questão – que fez Bento e porque o fez – é de interesse mais imediato, pois ele não poderia duvidar que resposta, neste ambiente politicamente carregado de hoje, viria a ser.

Um movimento deliberado

Comecemos com o óbvio: As palavras de Bento foram propositadamente escolhidas. A citação de Manuel II não foi algo espirituoso, que acidentalmente teria escapado. O papa estava proferindo uma aula preparada que possivelmente escreveu com a própria mão – e se foi escrita para ele, foi uma que ele cuidadosamente leu. Ademais, cada uma das afirmações públicas do papa são cuidadosamente revistas por seu estafe, e não há dúvida de que todo mundo que leu seu discurso antes que tivesse sido divulgado reconheceria a natureza explosiva de discutir qualquer coisa sobre o Islã no clima atual. Não há uma guerra em andamento no mundo hoje, mas uma série de guerras, algumas das quais colocando os católicos em risco.

É verdade que Bento estava fazendo referência a um texto obscuro, mas isto torna o comentário tanto mais espantoso; mesmo o papa teria que trabalhar duro para aparecer com este diálogo. Há muitos outros exemplos excelentes do problema da razão e fé que ele poderia ter apresentado, dos quais não seriam comprometidos os islâmicos, quanto menos um envolvendo uma citação tão incendiária. Mas ele escolheu esta citação e, ao contrário de algumas reportagens da mídia, não foi uma passagem pequena no discurso. Foi por volta de 15% do texto inteiro e foi o ponto de partida para o resto da aula. Assim, esta foi uma escolha delicada, não um lapso.

Como escolha deliberada, o efeito desses comentários poderiam ser antecipados. Mesmo fora da frase particular, o texto deste discurso é uma crítica da prática da conversão por violência, com uma ênfase especial no Islã. Claramente, o papa pretendia tratar o argumento de que o Islã está no momento engajado em violência a título de religião, e que está sendo levado por uma visão de Deus que gera tal crença. Dados os protestos islâmicos (incluindo algumas reações violentas) em desenhos animados que foram impressos num jornal danes, o papa e seus assessores certamente devem ter estado cônscios de que o mundo islâmico iria reagir com fúria. Bento disse o que ele dissera intencionalmente, e ele estava cônscio das conseqüências. Subsequentemente, não se desculpou pelo que disse – somente por alguma ofensa que teria causado. Não se retratou de sua afirmação. Assim, por que isso, e por que agora?

Leituras políticas

Considere o fato de que o papa não é apenas um acadêmico, mas um político – e um dos bons, ou não teria se tornado papa. Não é apenas um chefe de Estado, mas o chefe de uma igreja global com um bilhão de membros. A igreja não é estranha à geopolítica. Os muçulmanos afirmam que derrubaram o comunismo no Afeganistão. Isto pode ser verdadeiro, mas certamente há algo a ser dito também pelos esforços da igreja católica, que ajudou a minar o comunismo na Polônia e a quebrar o poder soviético na Europa Oriental. Os papas sabem como jogar o poder político. Assim, há pelo menos dois modos de ver politicamente o discurso de Bento.

Uma visão deriva do fato de que o papa está observando a guerra americana-jihadista. Ele pode ver que está indo mal para os Estados Unidos tanto no Afeganistão, quanto no Iraque. Testemunhou o êxito recente do Hezbolá no Líbano e a vitória política do Hamas entre os palestinos. Os islamitas podem não ter a força fundamental de ameaçar o Ocidente neste ponto, mas estão certamente ocupando a cena cada vez mais. Também, dever-se-ia lembrar que o antecessor de Bento, João Paulo II, não ficaria claramente feliz com a decisão americana de invadir o Iraque, mas não segue que seu sucessor esteja gostando de ver uma derrota americana lá.

A afirmação que Bento fez certamente não feriu Bush na política americana. Bush tem tentado pintar a guerra contra os militantes islâmicos como uma embate de civilizações, que deverá durar por gerações e determinará o futuro da humanidade. Bento, quer aceite ou não a visão de Bush, ofereceu um fundamento intelectual para a posição de Bush. Traçou uma distinção aguda entre o Islã e a Cristandade e, então, ligou a cristandade à racionalidade – um movimento para superar a tensão entre religião e ciência no Ocidente. Mas não incluiu o Islã nesta matriz. Dado que há uma guerra em andamento e que o papa reconhece que Bush está na defensiva, não só na política da guerra mas na política doméstica também, Bento com grande certeza sopesou o impacto de suas palavras na escala da política da guerra e dos Estados Unidos. O que ele disse certamente poderia ser lido como palavra de conforto para Bush. Ele não pode ler a mente de Bento sobre isso, é claro, mas pareceu oferecer alguma sustentação para a posição de Bush.

Não totalmente claro que o papa Bento pretendia uma intervenção intelectual na guerra. A igreja obviamente não defende a invasão do Iraque, tendo-a criticado quando ocorreu. Por outro lado, não está nos interesses da igreja ver os Estados Unidos simplesmente erradicados. A igreja católica possui membros substanciais na região, e uma onda de autoconfiança islâmica poderia colocar em risco os membros e a igreja. Da perspectiva do Vaticano, o resultado ideal da guerra poderia ser a vitória dos Estados Unidos – ou pelo menos não a derrota – mas para a igreja é fundamental permanecer livre para critica as políticas de Washington e servir como conciliadora e construtora da paz. Dados os eventos dos últimos meses, Bento pode ter sentido a necessidade de uma intervenção relativamente gentil – num modo que admoestou o mundo islâmico de que a vontade da igreja de suportar o vilipêndio como um cruzado tem seus limites, e que está preparada, pelo menos retoricamente, a reagir. Ainda, não podemos ler sua mente, mas não podemos crer que ele estava despreocupado com respeito aos eventos na região e que, ao fazer tais comentários, estava simplesmente engajado em exercício acadêmico.

Esta perspective explicaria o momento da afirmação do papa, mas o ímpeto geral de seus comentário tem mais a ver com a Europa. Há uma tensão interessante na Europa em torno da onda poderosa de imigração islâmica. Fricções estão altas de ambos os lados. Os europeus temem que os imigrantes islâmicos irão predominar sobre a cultura nativa ou formar um massa não assimilada e desestabilizadora. Os muçulmanos sentem-se não bem-vindos, e alguns grupos extremos ameaçaram trabalhar para a conversão da Europa. Em geral, a posição do Vaticano andou desde quieta até invectivas à tolerância. Como resultado, o Vaticano estava tornando-se crescentemente isolado do corpo da igreja – particularmente católicos trabalhadores e da classe média – e de seus temores.

Como foi estabelecido, o papa sabia que seus comentários em Regensburg viriam a cair sobe crítica pesada dos muçulmanos. Também sabia que sua crítica iria continuar a despeito de quaisquer gestos de contrição. Assim, com seus comentários, ele moveu-se na direção de um alinhamento mais estreito com aqueles que se sentem incômodos sobre a comunidade muçulmana da Europa – sem adotar seus sentimentos próprios, mais extremos. Este movimento aumenta sua força política entre esses grupos e poderia levá-los a reagrupar-se em torno da igreja. Ao mesmo tempo, o papa não se fechou em nenhuma posição particular. E proferiu sua própria recomendação aos muçulmanos da Europa sobre os limites da tolerância.

É óbvio que Bento proferiu um posicionamento bem pensado. É também óbvio que o Vaticano não tem ilusões de como o mundo islâmico iria responder. O pronunciamento continha uma rajada verbal, construída de tal modo que permitisse a Bento manter uma negação plausível. De fato, o papa já tomou a saída, anotando que esses não eram seus pensamento, mas de outros acadêmico. O papa e seu estafe estavam certamente cônscios de que isto não faria diferença no grande esquema das coisas, a não ser dar a Bento os meios para distanciar-se do pronunciamento quando viesse a ocorrer o contragolpe inevitável. De fato, a ira no mundo islâmico permaneceu intensa, e tem havido também bolsões emergentes de ira entre católicos sobre a reação do mundo islâmico contra o papa, considerando a história dos ataques islâmicos contra a cristandade. Porque ele lê os jornais – sem mencionar o fato de o Vaticano mantém um centro próprio muito capaz de serviço de inteligência – Bento também teria que ter sabido como a guerra estava continuando, e que seu pronunciamento provavelmente ajudaria a Bush politicamente, pelo menos indiretamente. Finalmente, estaria cônscio da dinâmica política na Europa e que o pronunciamento reforçaria sua posição com a base da igreja.

A questão é até que ponto Bento se dispõe a ir com isso. Seu antecessor atacou a União Soviética e, então, depois do colapso do comunismo, começou a espicaçar os Estados Unidos com seu materialismo e política externa. Bento pode ter decidido que o tempo chegou para pôr o peso da igreja contra os muçulmanos radicais. De fato, há uma lógica aqui: se os muçulmanos rejeitam o pronunciamento de Bento, têm de reconhecer os aspectos racionalistas do Islã. O ônus está na Ummah para retirar a religião das mãos dos acadêmicos radicais e extremistas, demonstrando que o islamismo pode aderir à razão.

De um ponto de vista intelectual e político, portanto, o pronunciamento de Bento foi um movimento elegante. Reforçou sua base política e talvez tenha legitimado uma resposta mais forte contra a retórica anticatólica no mundo islâmico. E o fez com soberba má direção(pontaria?). Suas opções estão abertas: agora ele pode mover-se para fora do pronunciamento e deixar a natureza tomar seu curso, repudiá-lo e desafiar os líderes islâmicos a fazer o mesmo em relação com os pronunciamentos anticatólicos ou estender e expandir a crítica do Islã que estava implícita no diálogo.

O papa jogou uma granada de mão e agora está observando a resposta. Estamos assumindo que ele sabia o que estava fazendo; de fato, achamos impossível imaginar que não. É cuidadoso demais para não ter sabido. Portanto, deve ter antecipado a resposta e planejado sua retirada parcial.

Será interessante ver se vai ter um novo movimento. A resposta a isso pode ser algo que ele mesmo ainda não sabe.