AS ORIGENS EGÍPCIAS DAS DOUTRINAS NÃO ESCRITAS DE PLATÃO

Rubi Rodrigues[1]

Mergulhamos no passado longínquo em busca das origens, e surpreendentemente, encontramos o futuro.

 RESUMO

 Platão reservou o núcleo verdadeiramente importante de sua doutrina para a oralidade, conforme registro constante da sua Carta VII (341b). Os estudos platônicos que temos desenvolvido confirmam, de modo até mesmo efusivo, a tese, originalmente proposta pela Escola de Tübingen, segundo a qual as doutrinas não escritas de Platão contemplam chave indispensável para correta interpretação do seu pensamento. Neste trabalho, examinamos a história do Neoplatonismo, confirmamos a origem egípcia da concepção de mundo compartilhada por Pitágoras e Platão e, com a ajuda de Jâmblico e de Moustafa Gadalla, mergulhamos na mitologia da civilização imperial que cresceu às margens do Nilo e fomos surpreendidos por evidências e compreensões que extrapolam, em muito, o nosso objetivo inicial de identificar raízes doutrinárias. Descobrimos, lá, pegadas do futuro.

 Termos para indexação: Metafísica. Platão. Neoplatonismo. Doutrinas não escritas. Logos. Jâmblico. Pitágoras. Bento XVI.

 

INTRODUÇÃO

Platão reservou o núcleo verdadeiramente importante de sua doutrina para a oralidade, conforme registro constante da sua Carta VII (341b). Os estudos platônicos que temos desenvolvido confirmam, de modo até mesmo efusivo, a tese originalmente proposta pela Escola de Tübingen, segundo a qual as doutrinas não escritas de Platão contemplam chave indispensável para correta interpretação do seu pensamento. Esses estudos também corroboram a conclusão a que chegou Szlezák, defendendo que os referenciais cognitivos adotados por Platão e por Pitágoras não apenas contemplavam estruturas semelhantes, mas eram, no fundo, uma única e mesma concepção (SZLEZÁK, 2008).

Essa constatação motivou-nos à elaboração do trabalho intitulado A concepção Pitagórico-Platônica da natureza ou a constituição ontológica da natureza (RODRIGUES, 2013a), no qual, além de se demonstrar que Platão e Pitágoras comungavam de uma mesma concepção, também se demonstra que essa concepção corresponde, de forma exata e precisa, ao modelo do logos normativo, que temos adotado como referencial cognitivo (RODRIGUES, 1999).

Com tais descobertas, os esforços interpretativos da obra de Platão ganham nova e promissora ferramenta, na medida em que o logos normativo constitui um modelo geométrico preciso, rigorosamente especificado em termos conceituais, tal como exige a mentalidade científica do nosso tempo. Com essa ferramenta, fica não apenas facultado um virtualmente mais claro entendimento do pensamento filosófico de Platão e das ideias matemáticas de Pitágoras, como também fica explicitado, formalmente, o que consistia esse núcleo doutrinário que Platão, propositadamente, apenas indicou, de modo reticente, tratar-se de princípios primeiros constituintes da realidade e do mundo.

As razões que levaram o filósofo de Atenas a assim proceder já foram, preliminarmente, por nós discutidas, no artigo Carta VII de Platão: as doutrinas não escritas (RODRIGUES, 2013b), e não fica difícil prognosticar que os estudos platônicos vão, ou devem, ganhar novo ímpeto com essa nova plataforma de abordagem inaugurada por H. J. Krämer e Konrad Gaiser, que são os responsáveis pela tese da Escola de Tübingen.

Nesta oportunidade, vamos explorar outra implicação, igualmente importante, decorrente da especificação desse paradigma comum a Platão e a Pitágoras que, em sua versão moderna, estamos designando de logos normativo: o fato de esse logos constituir referencial cuja origem se confunde com a misteriosa origem da mitologia egípcia e, além disso, constituir referencial que, insistentemente, tem ressurgido na história da humanidade, em diferentes épocas e em diferentes formatos, sempre propiciando momentos de esplendor do processo civilizatório.

Na tradição de todos os povos e de todas as culturas, são encontradas versões de princípios explicativos do surgimento do mundo e da constituição do Universo. As diferentes concepções mitológicas, cuja origem se perde no começo dos tempos, testemunham que o espírito humano sempre buscou explicações originárias, capazes de fornecer-lhe, para além do contexto físico da natureza, um contexto conceitual, capaz de recepcioná-lo, enquanto ser dotado de capacidade intelectiva. Nesse esforço, as culturas mais densas produziram concepções dotadas de identidade própria, sujeitas a vigências delimitadas, influências recíprocas, versões diferenciadas, mas também aspectos estruturais comuns, dentre os quais se destaca, sobretudo, a presença de um princípio criador.

Estudos competentes, como os de Joseph Campbell (1988), dispensam-nos de contemplar os mitos em maior profundidade. O que nos interessa aqui, em particular, é destacar que as cosmovisões, propiciadas em cada caso, forneceram, em cada época e para cada povo, o fundo de referência a partir do qual a vida e a natureza eram interpretadas, constituindo, assim, o alicerce conceitual orientador das sociedades e das atitudes humanas individuais. Os estudos dos mitos e das concepções mitológicas mostram clara presença de aspectos comuns, da mesma forma que as religiões modernas também comungam de princípios básicos iguais ou equivalentes.

A Filosofia surge na Grécia antes mesmo das religiões modernas e, também, à jusante das concepções mitológicas, com os mesmos propósitos de contextualizar a capacidade intelectiva, apenas que, nessa ocasião, mediante convicções sustentáveis coerentemente pela razão. Platão foi artífice expoente dessa guinada que é elaborada não como contraponto antagônico à tradição mitológica, mas como continuidade natural de aperfeiçoamento da competência cognitiva. Essa transição do mito para a racionalidade se realiza com tamanha competência que, apesar de Platão valer-se constantemente da tradição mitológica, nem mesmo os exegetas mais cartesianos ousaram acusá-lo de místico.

Há, porém, na atitude de Platão, mais do que respeito à tradição e ao contexto político do seu tempo – cuidado que faltou a Sócrates. Há, em Platão, a percepção de que os mitos continham acervo de preciosas verdades, subjacentes a enredos que transitavam revestidos de ingenuidade e fantasia – quando não se tinha, na devida conta, caráter simbólico e metafórico. Platão percebeu que o mito não se contrapunha à razão, mas apenas a antecedia e, em assim sendo, também precisaria fornecer uma cosmovisão para situar o homem e, dado que o mito tinha cumprido esse papel no seu tempo, também deveria ter buscado justificativas coerentes, afastando-se tanto quanto possível da mera fantasia, segundo permitia o estágio do discernimento. Por isso, quando tomou contato com os pitagóricos e percebeu que a dédaca sagrada fornecia um alicerce matemático e racional para interpretar o mundo, não teve dúvidas em abraçar a concepção, torná-la sua e, a partir do seu domínio, produzir uma obra, até hoje, consistente e, até hoje, insuperável.

Não se sabe exatamente como Platão absorveu o modelo pitagórico. Sabe-se sobre os livros pitagóricos que comprou de Filolao e, ainda, que era amigo de Arquitas de Torento e de Teodoro de Cirene. Além disso, supõe-se que tenha viajado ao Egito depois da morte de Sócrates, e há indicações de que era um iniciado que participava de uma Escola de Mistérios, possivelmente de orientação pitagórica. Sabe-se, porém, com bom grau de segurança, que Pitágoras frequentou os templos egípcios por longos anos e, ali, recolheu os ensinamentos que lhe possibilitaram formular seu modelo matemático de princípios universais. Portanto, parece razoável suspeitar que tanto o modelo do logos normativo que esposamos quanto o modelo dos cinco ordinais de que Platão nos fala na Carta VII e, também, o modelo da dédaca sagrada de Pitágoras tiveram antecedente correspondente na tradição mitológica do Egito Imperial. Caso isso possa ser confirmado, teremos mais uma evidência de que esse logos corresponde ou se aproxima, com muita acuidade, da estrutura central constitutiva da mente humana, ao redor da qual orbitam, contingentemente, as inferências humanas de todos os tempos, independentemente das culturas e das crenças circunstancialmente vigentes. Rorthi denunciou a racionalidade humana em virtude do insucesso do homem em encontrar a linguagem inescapável que a natureza organizada exige para produzir e explicar a ordem universal. Talvez, por fim, tenha deixado contribuição relevante ao reconhecer a inescapabilidade dessa linguagem.

Para este estudo, que se inscreve no propósito do capítulo nove do projeto que se desenvolve no site das Segundas Filosóficas – capítulo que visa a mapear a presença do logos na história da humanidade –, valeremo-nos de duas referências básicas: do testemunho neoplatônico de Jâmblico (245-330), sobre os mistérios egípcios, publicado, pela primeira vez, na Roma Imperial, em fins do século III, e da obra sobre a cosmologia egípcia e a doutrina sufis, do egiptólogo Moustafa Gadalla, publicada, no Brasil, em 2001. Pensamos, de partida, serem essas duas referências suficientes para o nosso propósito.

CONTEXTUALIZAÇÃO DA OBRA DE JÂMBLICO

Jâmblico termina seus dias octogenário, à época do concílio de Niceia, sendo seus dados biográficos precários, como costuma acontecer com autores antigos. Inscreve-se, porém, nitidamente, como pensador neoplatônico e, como tal, não escapa da tensão do seu tempo, resultante do confronto entre um paganismo declinante e um Cristianismo emergente e que se manifesta na própria definição dos cânones da Igreja, ao privilegiar, também por uma questão de identidade, evangelhos que mais se afastavam das interpretações gnósticas, embora razões outras, de caráter político e estratégicos, possam ter predominado.

O neoplatonismo teve, por foco central, a busca de uma verdade lógica e racionalmente amparada e, estrategicamente, posicionou-se com o propósito de restabelecer o verdadeiro sentido do pensamento de Platão, em plena sintonia com o esforço de manter fidelidade doutrinária, deflagrado pelo próprio Platão, ao preterir, após a sua morte, Aristóteles na gestão da Academia. Como se sabe, Platão entregou a direção a Speusipo, que justamente vai dar ênfase ao que, hoje, estamos designando de “doutrinas não escritas”, o que Aristóteles, por razões que merecem ser devidamente investigadas, não comungava. Platão, sabidamente, esquivou-se de escrever sobre certas questões e concepções básicas sobre as quais se assenta o seu edifício filosófico. Tratou-as, segundo hoje se entende (H. J. Krämer e Konrad Gaiser), apenas na oralidade e, possivelmente, em ocasiões de público restrito e previamente selecionado. Independentemente das razões que o levaram a assim proceder, parece evidente que, na ausência do mestre e da sua oralidade, em face da relevância e da centralidade da questão, de algum modo os temas tratados, nessa oralidade, tinham de permanecer na ordem do dia, sob pena da concepção filosófica de Platão desvirtuar-se e, virtualmente, até mesmo ser capturada pela dissonante, mas também sedutora perspectiva oferecida na época por Aristóteles. Nessas circunstâncias, a orientação da Academia pós-Platão, no sentido da matemática e das origens pitagóricas, acentuada pelos primeiros escolarcas, afigura-se compulsória e quer nos parecer que é, nessa perspectiva, que convém contemplar as produções neoplatônicas, particularmente as de Plotino, Jâmblico e Proclo. Quando Jâmblico e, posteriormente, Proclo entram em campo, já o fazem mais pressionados pela presença do Cristianismo, de sorte que, na leitura filosófica da tradição teúrgica egípcia que Jâmblico empreendeu bem como na consideração da história das escolas do Neoplatonismo, impõe-se considerar a presença desse confronto.

A cronologia desses eventos revela-se esclarecedora, motivo pelo qual dedicamos um tempo para organizá-los na escala temporal a seguir apresentada, a cuja análise detalhada não nos dedicaremos, já que temos, por objetivo, apenas contextualizar a obra de Jâmblico. De qualquer forma, o leitor poderá tirar conclusões outras como, por exemplo, perceber o interesse e as ações do Cristianismo contra a perspectiva neoplatônica durante o Império. A migração do acervo da Academia para a Pérsia, em 529 d.C., parece constituir um fato inequívoco.

Cronograma de existência da Academia de Platão e das três escolas neoplatônicas de Alexandria/Roma, Apamea/Dafne e Atenas

Origens01 Quando se plota o período de existência da Academia em gráfico e se localizam os eventos relevantes que marcaram os esforços de preservação do sentido que Platão imprimia a sua doutrina por meio da oralidade, percebe-se que o esforço inicial que se seguiu à morte de Platão, enfraqueceu e perdeu-se com o tempo, chegando ao ponto da Academia ministrar conhecimentos não platônicos com Carneiades (215-129 a.C.).

Curiosamente, foi novamente do Egito que veio o impulso neoplatônico que resgatou com fidelidade o sentido que Platão dava a sua doutrina e que podemos, hoje, graças a Escola de Tübingen, desfrutar com as obras de Plotino, Proclo e Jâmblico. Dado que Platão comungava dos princípios primeiros de Pitágoras e que este os havia recolhido nos seus estudos nos templos egípcios e, ainda, que o próprio Platão, ao que tudo indica, também bebeu pessoalmente dessa fonte, fica configurada uma origem muita clara dessas ideias. Nessas circunstâncias, o trabalho teogônico[2]-teúrgico[3] de Jâmblico sobre os mistérios egípcios inscreve-se como documento fundamental para que, hoje, seja possível se auscultar essa fonte.

CRITÉRIO DE ABORDAGEM

Não se pretende realizar aqui uma sinopse dos livros indicados na introdução, mas apenas contemplar aqueles aspectos diretamente envolvidos na concepção sobre a origem do mundo que Pitágoras e Platão comungavam. Tomaremos o livro de Jâmblico como fonte principal e nos valeremos da obra de Gadalla como apoio sistematizador, já que esta obra tratou da teogonia egípcia com grandes preocupações didáticas. O livro de Jâmblico, ao contrário, sequer tem um plano expositivo próprio, pois se limita a responder, na ordem em que são formuladas, às objeções e aos questionamentos que Porfírio esgrima sobre a teurgia, em carta dirigida a um escriba egípcio chamado Anebo. Tanto assim que o título original do livro foi “Respostas do mestre Abamon à carta de Porfírio à Anebo e soluções das dificuldades que ela formula”, no entanto, apenas recebeu o título “Sobre os mistérios egípcios” a partir de edições do início da idade moderna. Jâmblico, nessas respostas, assume o papel de um sacerdote egípcio de nome Abamon, nitidamente no intuito de indicar que quem respondia entendia das coisas.

De nossa parte, empreendemos esta análise, munidos de uma perspectiva metafísica, tomando a mitologia a sério e tendo principalmente em vista que a mitologia e o simbolismo constituem solução linguística virtualmente inescapável para contextos desprovidos de alfabetização formal, como era o caso da Antiguidade. Isso, porém, não impede que organizemos convenientemente nossa abordagem, tendo em vista nossos propósitos. Assim, em primeiro lugar, vamos identificar a natureza das divindades egípcias, de sorte a estabelecer firmemente do que estamos falando quando esses deuses forem mencionados. Em segundo lugar, vamos identificar e adquirir compreensão dos principais deuses que integram o panteão egípcio. Em terceiro lugar, vamos identificar o papel e a influência desses deuses no funcionamento do universo e na vida dos homens. Por fim, em quarto lugar, esperamos poder, então, estabelecer comparação com as concepções de Pitágoras e de Platão e identificar em que medida a cultura egípcia influenciou a filosofia do ocidente.

A NATUREZA DOS DEUSES EGÍPCIOS

Não há, entre as respostas de Jâmblico, alguma objetivamente voltada para explicar a natureza dos deuses, porque essa questão não foi colocada por Porfírio. Há, porém, em diversas passagens, explicações que revelam aspectos dessa natureza. Do trabalho de garimpagem que realizamos, selecionamos aquelas que nos parecem necessárias para esclarecer suficientemente de quem ou de que estamos falando quando nos referirmos às divindades egípcias.

Assim, convém destacar primeiramente que, segundo Jâmblico, o panteão egípcio contempla quatro gêneros de entidades que compõem uma estrutura hierárquica, a partir do Uno que, imóvel, gera e governa tudo: os deuses, os heróis, os demons[4] e as almas. “El género de los dioses es el más elevado, superior, perfecto, mientras que el del alma es último, deficiente y menos perfecto” (JÂMBLICO, 1997, p. 52).

Os heróis e os demons são os intermediários vizinhos desses dois extremos, e a estrutura, ao distinguir gêneros, serve para indicar, do topo para a base, isto é, da plena perfeição para o menos perfeito, o caminho de determinação segundo o qual o mundo se edifica. Nesse modelo, a alma constitui o gênero que confere organização à matéria, criando e dando vida aos fenômenos singulares.

Essa primeira citação revela-nos que todo o panteão possui natureza não material e é hierarquizado, que o processo de materialização implica progressiva limitação ou perda de perfeição e que apenas o gênero das almas entra em estreito e direto contato com a matéria, sem estar contido nela.

Isso não significa, porém, que os deuses estejam localizados em algum lugar privativo separado dos homens ou da natureza. Ao contrário, Jâmblico, ao responder uma questão de Porfírio, esclarece que os deuses constituem realidades constitutivas do nosso próprio mundo, sem as quais nada poderia nele ser criado: “Yo, por mi parte, no veo además de qué modo las cosas de aqui son creadas y especificadas, si ninguna actividad creadora divina y participación de las ideas divinas se extienden por el mundo entero” (JÂMBLICO, 1997, p. 56).

Essa presença universal dos seres superiores, em todas as instâncias do universo, dá-se sem que eles sejam contidos pelas realizações menos perfeitas criadas. O texto a seguir afirma isso.

Pero nada de ello es sensato, pues ni los dioses son detenidos en partes determinadas del mundo, ni la tierra está privada de ellos. Por el contrario, los seres superiores en el mundo, lo mismo que no están contenidos por nada, contienen todo en sí mismos, mientras que las cosas de la tierra, que tienen su existencia en la totalidad de los dioses, cuando llegan a ser aptas para la participación divina, al punto poseen en sí los dioses preexistentes a su própria esencia. (JÂMBLICO, 1997, p. 57).

Essa afirmação de que os deuses contêm em si todas as coisas, sem estarem ao mesmo tempo contidos pelas coisas, apenas escapa ou deixa de ser paradoxal, caso entendamos os deuses como poder normativo universal. Somente como poder normativo, eles podem ser determinantes e estar presentes nos fenômenos singulares, sem, ao mesmo tempo, serem determinados ou condicionados, de algum modo, por essas singularidades. Daí, a hierarquia do panteão configurar também a linha de determinação que submete tudo o que existe ao índice representado pelo Uno inaugural, do qual tudo brota. Portanto, cumpre reconhecer a natureza normativa dos deuses egípcios na construção do universo.

Essa citação informa-nos adicionalmente que as individualidades fenomênicas possuem existência na totalidade dos deuses. Significa isso que os deuses são múltiplos, em número limitado, e compõem uma totalidade, sendo apenas, nessa totalidade, que as singularidades fenomênicas logram existir; ou seja, há um conjunto de princípios normativos universais, plenamente integrados em uma totalidade, que são, em conjunto, determinantes das condições segundo as quais a existência ocorre em nosso universo. Por isso, o texto afirma que nos fenômenos singulares aptos à participação divina, os deuses preexistem à sua própria essência, isto é, à essência conferida pela alma aos fenômenos singulares, preexistem os deuses que são determinantes de tudo, inclusive da própria alma.

É nesse caráter normativo exercido por um panteão definido e integrado de divindades que repousa o caráter unitário, integrado e harmônico do mundo. É, por isso, que, segundo a teogonia egípcia, o universo constitui um cosmos. O texto seguinte indica essa perfeita integração.

En el caso de los dioses su orden consiste en la unión de todos, sus géneros primarios y secundarios, y los que numerosos nacen en torno a ellos constituyen el todo en la unidad, y la totalidad en ellos es la unidad, y comienzo, medio y fin coexisten de acuerdo com el Uno mismo, de forma que acerca de ellos resulta innecesario indagar de dónde procede la unidad para todos, pues lo que en ellos es el ser, eso constituye su unidad; y los dioses secundarios permanecen del mismo modo en la unidad de los primeros, y los primeros otorgan a los segundos la unidad procedente de ellos, y todos tienen entre sí la comunión de uma ligazón indisoluble. (JÂMBLICO, 1997, p. 77).

Ou seja, a derivação hierárquica a partir do Uno, mediante princípios normativos divinos, harmoniza tudo que desse princípio primeiro decorre, garantindo a harmonia e a unidade do conjunto, independentemente da diversidade factual da criação e da compleição particular dos fenômenos, quer se tratem de fenômenos materializados ou não. A ação universal dos princípios normativos divinos confere a tudo o mesmo modo de ser, sendo a comunhão nesse modo de ser que, justamente, responde pela unidade de cada um dos fenômenos tomado isoladamente e, também, do universo tomado em sua totalidade.

Quanto à citação transcrita da página 57, cabe explicar, ainda, a expressão “quando estão aptas à participação divina”, referida a fenômenos singulares e que, à primeira vista, mostra-se contraditória com o caráter universal da natureza normativa dos deuses. Aqui, sentimos presente o conflito com o Cristianismo emergente, uma vez que a explicação que Jâmblico oferece a partir do caráter impassível dos deuses e da intensidade dos procedimentos teúrgicos da espiritualidade egípcia configura, no nosso entender, o mais contundente ataque ao Cristianismo que o livro contém.

Vejamos esse problema por partes.

De um lado, não podemos deixar de notar que as questões colocadas por Porfírio denunciam um ponto de vista tipicamente cristão, não de um teólogo cristão erudito, mas de um cristão culto que tinha, na cabeça, as objeções gerais compartilhadas pela comunidade cristã. Ora, Porfírio fora aluno de Plotino e comungava de sua filosofia, a ponto de ter sistematizado e publicado a obra do mestre, dando-lhe o formato definitivo. Foi, por outro lado, mestre de Jâmblico, um aluno destacado de grande domínio da teogonia egípcia, de fundamento gnóstico, que o Cristianismo incluía na categoria depreciativa de paganismo. Ramos Jurado indica que Porfírio era um anticristão ainda mais incisivo que Jâmblico. Como, então, podemos interpretar as motivações da carta?

De acordo com Vieira Neto (2010), existem estudos da antiguidade tardia que identificam um afastamento de Jâmblico da doutrina de Plotino, razão pela qual identificam um conflito entre Porfírio e Jâmblico. Quer nos parecer que ocorreu justamente o contrário: um perfeito entrosamento entre os três. Porfírio era um compilador e um sistematizador hábil que de cristão não tinha nada. Jâmblico, por seu turno, não se dedica, na resposta da carta, a confrontar Plotino, mas a resgatar os fundamentos gnósticos da teogonia egípcia que colocavam questões embaraçosas para o Cristianismo, algumas das quais, ainda, hoje, constrangedoras. Por isso, quer nos parecer que Porfírio desempenhou, de modo pensado e intencional, um papel de cristão razoavelmente instruído e ensejou que Jâmblico desempenhasse um papel de sábio e contundente sacerdote egípcio. Nessa interpretação, quando Jâmblico preserva a ordem na qual as perguntas foram formuladas, transcrevendo-as quase literalmente, recepciona Porfírio como coautor da obra. Ainda nessa interpretação, as três principais obras neoplatônicas também se mostram coerentes quanto ao resgate do verdadeiro platonismo, destacando a origem egípcia que tinha sido esquecida pela própria Academia de Atenas e, no rescaldo, ainda colocando uma incômoda pedra nas sandálias do Cristianismo.

Do mesmo modo, Porfírio, ao perguntar sobre a possibilidade de classificar o panteão egípcio, segundo a maior ou a menor incidência de paixões entre os seres superiores, enseja a Jâmblico declarar a impassibilidade e a imutabilidade dos deuses. Atribuir essas características às divindades significa entender que nada proveniente do plano dos homens seja capaz de perturbar a impassibilidade dos deuses e que a via de influência seria de uma só mão: do topo para a base e nunca ao contrário. “…ya que, en general, por naturaleza no les corresponde sufrir, ya que por esencia poseen la firmeza inmutable, por estas razones en todo ello estabelezco la impasibilidad y la inmutabilidad” (JÂMBLICO, 1997, p. 60).

Providencialmente, mais adiante, aparentemente desvinculada desta, Porfírio vai colocar uma questão complementar sobre as razões das pregarias, invocações, festas, homenagens, sacrifícios e procedimentos litúrgicos que compunham a rica teurgia egípcia, de sorte que, diante da resposta da impassibilidade divina, tais procedimentos teúrgicos não teriam sentido ou, então, seria identificada, na concepção, uma contradição insustentável. A resposta de Jâmblico é, porém, desconcertante para um ponto de vista cristão, pois afirma que o modelo, efetivamente, não preconiza alguma divindade disponível para prestar favores aos homens, atender orações e alterar o curso normal de coisas que fluem de acordo com leis sábias e perfeitas, mas que os homens, na medida em que invocavam e reverenciavam os deuses, logravam restabelecer sintonia com os modos de ser das divindades e, automaticamente, passavam a desfrutar do equilíbrio e do bem-estar que é condição estrutural normal de toda criação, necessariamente boa e bela – enquanto o ente criado se mantiver em sintonia e harmonia com os influxos criativos originários dos deuses. Com essa solução, todo o mal que acomete os homens e toda a contravenção humana representam afastamento das determinações divinas, com as quais os deuses encaminham o universo para a sua plena realização. Assim, as angústias e os desconfortos que o homem experimenta denunciam desequilíbrios internos ou com o mundo circundante, resultantes de afastamentos das leis cósmicas que o próprio homem produziu.

Vieira Neto[5] (2010) oferece-nos, na nota 43, um texto de Salustio[6] sobre essa questão, que resulta mais claro do que aqueles que o próprio Jâmblico nos brinda e que vale a pena transcrever.

Si una persona considera la inmutabilidad de los dioses conforme a la razon y verdadera, y se muestra perpleja de cómo se complacen con los buenos y abominan a los malos, con los pecadores se irritan y, al ser servidos, se vuelven favorables, hay que decir que dios no conoce el placer – pues lo que conoce el placer también conoce el dolor –, ni conoce la cólera – pues la cólera es también una pasión –, ni se le concilia con dones – pues por el placer se vería dominado –, ni es lícito que lo divino se vea afectado para bien o para mal por los asuntos humanos. Por el contrario, ellos son buenos eternamente y sólo hacen el bien, no causan el mal nunca, pues están siempre en el mismo estado. Nosotros, si somos buenos, por semejanza con los dioses entramos en comunión com ellos, pero, si somos malos, por desemejanza nos alejamos; y si vivimos de acuerdo con la virtud nos unimos a los dioses, pero, si somos malos, los hacemos enemigos nuestros, no porque ellos se irriten, sino porque nuestros pecados no permiten a los dioses iluminarnos y nos ligan a los démones castigadores. Por el contrario, si por plegarias y sacrifícios hallamos el perdón de nuestros pecados, veneramos a los dioses y nos cambiamos, por lo menos, curando nuestro vicio por médio de estos actos y por la conversión hacia lo divino, de nuevo gozamos de la bondad de los dioses. De forma que es equivalente decir que dios abomina de los malos y que el sol se oculta a los que han perdido la vista. (JÂMBLICO, 1997, p.66-67).

Um último aspecto inerente à natureza dos deuses egípcios que merece ser destacado neste estudo é o caráter inteligível que Jâmblico confere genericamente a todas as divindades. Nesse sentido, a ação criadora dos deuses no mundo realiza-se mediante princípios universais inteligíveis que, em última instância, constituem também princípios que fundamentam as ciências verdadeiras. Essa questão é tratada no livro três que examina a possibilidade de o homem realizar adivinhações e obter compreensão. Uma tarefa tão mais bem-sucedida quanto mais o homem conseguir livrar-se das influências do devir mundano e sintonizar as universalidades divinas.

Una adivinación aún más perfecta que ésta lleva a cabo el alma cuando une a los principios universales, de los que fue separada, las partes de la vida y de la actividad intelectual, pues está llena entonces por los principios universales de toda ciencia, como para alcanzar con sus pensamientos la mayor parte de los que se cumplen en el mundo… Pero si el alma alcanza su parte intelectual y divina con las especies superiores, entonces sus visiones serán más puras, sea respecto a los dioses o las esencias incorpóreas en sí o, en general, respecto a lo que contribuye a la verdad a propósito de los inteligibles. (JÂMBLICO, 1997, p. 108).

É em face dessa comunhão do inteligível que a alma humana desfruta com os deuses, que se compreende a sentença da página 45, que afirma: “…tenemos conocimiento de lo que somos en el conocimiento de los dioses”. Os deuses egípcios são, portanto, também referência para que o homem logre compreender racionalmente o mundo.

Há, certamente, outros aspectos que poderiam ser citados neste esforço de compreender a natureza dos deuses egípcios e que estão disponíveis no texto. Estamos, porém, buscando uma conceituação mínima que seja suficiente. Assim, deixamos de lado, por exemplo, a crença egípcia na reencarnação da alma, que representa peça fundamental na sua teologia, mas que se situa para além da racionalidade logicamente sustentada que conseguimos desenvolver, bem como adentra em plano de conjeturas que queremos evitar. Jâmblico defende que a própria crença nos deuses não constitui produto da razão e que sua presença em nós antecede o ato dedutivo, constituindo uma presença irrecusável. Diríamos, hoje, intuitivamente percebida. De qualquer modo, mesmo pensando que a intuição constitui também uma inferência humana regular, amparada por lógica própria, optamos por deixar a metempsicose de lado, em virtude de ela ser dispensável para os nossos propósitos neste trabalho.

O PANTEÃO DOS DEUSES EGÍCIOS

Quanto ao panteão dos deuses egípcios, Jâmblico, além dos quatro gêneros já citados – deuses, heróis, demons e almas –, no capítulo II, menciona, ainda, anjos, arcanjos e arcontes, em raciocínio difícil de seguir, dando a impressão de que se valia de algum referencial que deixou de ser apresentado. Em face dessas dificuldades, vamo-nos valer, neste tópico do trabalho, do egiptólogo Moustafa Gadalla, que nos oferece uma visão sistematizada tanto da mitologia como dos principais deuses egípcios.

Gadalla inicia a obra, transcrevendo comentário de Heródoto, historiador grego de 500 a.C., sobre os egípcios: “De todas as nações do mundo, os egípcios são os mais felizes, os mais saudáveis e os mais religiosos” (GADALLA, 2001, p. 21).

 Além disso, observa que o uso da palavra religião para indicar a cultura mitológica do Egito Imperial precisa ser feito com muita cautela.

Os egípcios antigos acreditavam em um Único Deus que criou e concebeu a si mesmo, e que era imortal, invisível, eterno, onisciente, todo-poderoso, etc. Este Único Deus nunca era representado, as funções e atributos de seu domínio é que eram representados. Esses atributos eram chamados de neteru… (GADALLA, 2001, ano, p. 22).

Nesse modelo, a palavra neteru era usada para designar as forças cósmicas e os princípios universais manifestos na natureza, cuja ação era determinante e delimitante das condições de manifestação e preservação da vida. Cada neter era divino e venerado como tal por se tratar de uma manifestação divina, por emanar e ter origem no Deus Único, mas era, também, uma lei universal implacável cuja consideração no cotidiano representava requisito indispensável para o sucesso dos empreendimentos. Como veremos adiante, a cosmologia egípcia baseia-se em princípios científicos e filosóficos que compõem um corpo doutrinário coerente.

Precisamos considerar que o significado moderno da palavra religião, implica distinção entre sagrado e profano que, naquele tempo, não existia. Particularmente, para o homem ocidental, existem questões de fé e questões de racionalidade lógica, sendo essas duas coisas inconfundíveis. Tanto assim que conduz a sua vida social e produtiva com base em pensamento de padrão científico, restringindo a aplicação da fé às questões do espírito. Essa separação não existia na cultura egípcia antiga, posto que a consciência cósmica compartilhada na época disponibilizava um modelo organizativo do existente que, contemplando tudo, integrava plenamente céus e terra, vida e morte, macro e microcosmo, o divino e o humano, o visível e o invisível e o homem com o mundo circundante.

Por razões pedagógicas, como ocorreu entre os gregos e os romanos, os neteru eram personalizados, recebiam nomes e constituíam uma família ou hierarquia divina, cujas histórias permitiam fácil identificação, transmissão e fixação do conhecimento. A cosmologia egípcia contempla histórias e narrativas parecidas às encontradas na mitologia grega e, também, algumas histórias curiosamente semelhantes ao que se encontra na Bíblia. Gadalla destaca, ainda, que, muito provavelmente, nem todos os egípcios deveriam dominar a profundidade essencial das tradições e dos cerimoniais, os quais, em sua aparência, poderiam parecer meras celebrações religiosas e tomadas por muitos, simplesmente como tal; no entanto, afirma que isso é contingente em qualquer civilização. Nós mesmos fazemos uso do computador sem entender exatamente como ele funciona, mas isso não transforma o nosso uso em uma atividade supersticiosa ou não científica. “Em qualquer civilização, apenas um pequeno grupo de especialistas compreende o como e o porquê de as coisas funcionarem de determinada maneira” (GADALLA, 2001, p. 22).

Assim, se é possível designar aquela manifestação cultural egípcia de religião, também seria adequado designá-la por metafísica ou por cosmologia egípcia, como preferido por Gadalla. De todas as formas, a frase de Heródoto, devidamente atualizada, poderia ser escrita, atualmente, da seguinte forma: “de todas as nações do mundo, os egípcios são os mais felizes, os mais saudáveis e os dotados de maior religiosidade”.

O modelo teogônico egípcio é apresentado por Gadalla (2001, p. 68) de forma esquemática e simples. Nove neteru principais compõem um conjunto que designa de Grande Enéade, o qual responde pela criação do universo: “Atum, que criou a si mesmo, cuspiu os gêmeos Shu e Tefnut, que, por sua vez, deu à luz Nut (o céu) e Geb (a terra/matéria). A união de Nut e Geb produziu quatro filhos: Ausar (Osíris), Auset (Isis), Set (Seth) e Nebt-Het (Néftis)”.

Origem02Atum é o Ser Objetivo, que surge de Nun (Ser Subjetivo ou oceano cósmico), em um ato que, em termos humanos, equivale a passar do estado de sono para o de vigília. Shu e Tefnut são as polaridades/dualidades primordiais que antecedem Geb e Nut ou terra/matéria e céu/espírito, respectivamente. Ausar é o princípio masculino, o poder fecundador e Auset o princípio feminino da natureza, o recipiente. Set representa o princípio universal da oposição. Os nove neteru juntos viabilizam e compõem a criação, designada por Heru, restabelecendo a unidade em novo plano, situado depois da Enéade.

Gadalla menciona e descreve, ainda, outros neteru secundários, da mesma forma que Jâmblico, para além de deuses, heróis, demons e almas, estende o seu panteão para anjos, arcanjos e arcontes. Não dispomos de informações que permitam estabelecer a relação precisa entre as duas descrições, e menos ainda, indicar as correspondências. Não restam dúvidas, porém, que ambas são estruturas indicativas de princípios universais gerativos da natureza e do mundo. Vejamos se o exame das funções de cada neter ajuda a esclarecer essas dúvidas.

O PAPEL DOS DEUSES NA MITOLOGIA EGÍPCIA

Uma vez definida a Grande Enéade, vejamos como a mitologia descreve as funções dos deuses. Como já destacamos, as histórias de mistério egípcias, constituíam soluções pedagógicas que visavam a facilitar a transmissão e o entendimento. Uma das histórias mais esclarecedoras do modelo egípcio envolve os conceitos personalizados de Ausar (Osiris), Auset (Isis), Heru (Hórus) e Set (Seth).

Antes de tudo, é preciso considerar que a civilização egípcia floresceu na redoma favorável à vida que se estendia ao longo de todo o curso do rio Nilo, desde o Alto Nilo, no atual Sudão, até a sua foz, no Mediterrâneo, ladeada por dois desertos, um na banda oriental e outro na ocidental.

Segundo relato de Plutarco, em Moralia, vol. V, citado por Gadalla (2001, p. 23-24), os egípcios vinculavam essas quatro divindades aos quatro elementos que, segundo a tese da escola Jônica (séc. VI a.C.), eram constitutivos do mundo: água, terra, ar e fogo. Com isso, Ausar era vinculado ao rio Nilo, e suas águas, Auset, era a porção de terra fecundada pelo rio. Dessa união, surge Heru, a redoma de vida ao longo do curso do rio, que tudo conserva e nutre. Para além da redoma, Set é o poder da seca, o deserto e o fogo que se opõe à umidade. Os quatro compõem uma família: Ausar (Osíris) é o pai, Auset (Isis) a mãe, Heru (Hórus) o filho e Set (Seth) o tio, cuja lenda histórica estabelece a estrutura do modelo social egípcio e define a base matriarcal da sociedade.

Gadalla oferece-nos o seguinte relato:

A história conta que Ausar casou-se com Auset, e Set casou-se com Nebt-Het, e que Ausar tornou-se rei da terra (Egito) após o seu casamento com Auset.

  • A história cria a base da sociedade matriarcal/matrilinear. Auset é a herdeira legítima…
  • A história de Ausar (Osíris) e Auset (Isis) é história de amor. Com Ausar e Auset existe uma polaridade harmoniosa: irmão e irmã, almas-gêmeas, marido e mulher…

Tanto Ausar (Osíris) quanto Auset (Isis) eram adorados pelos egípcios, porém seu irmão Set (Seth) odiava Ausar e tinha ciúmes de sua popularidade. Set arranjou uma briga com Ausar, assassinou-o e cortou seu corpo em 14 pedaços (um para cada noite de lua minguante), e espalhou-o por todo Egito.

  • Ausar é associado à lua crescente e à lua minguante e com a natureza cíclica do Universo…

Auset partiu em busca dos pedaços de seu amado Ausar.

  • É preciso relembrar e recolher para curar-se, e para jamais esquecer. Auset queria reunir Ausar, para curar a si mesma, isto é, para levar a união dentro de si.

Depois da morte de Ausar, Set, como marido de Nebt-Het, tornou-se rei do Egito e governou como tirano.

Auset, a esposa fiel de Ausar, encontrou todas as partes do corpo do marido, exceto o falo, que havia sido engolido por um peixe. Ela reconstituiu o corpo, criando a primeira múmia egípcia.

Ausar e Auset não tinham filhos quando ele morreu, porém, por meio de meios místicos, a múmia de Ausar ressuscitou por uma noite e dormiu com Auset (equivalente a ser impregnado pelo Espírito Santo). Como resultado, Auset concebeu um filho, que foi chamado de Heru (Hórus) e que foi criado secretamente às margens do Delta do Nilo.

  • Essa ação simboliza a reencarnação e o renascimento espiritual – um elemento chave para compreensão da crença egípcia na vida após a morte.
  • A concepção sobrenatural e o nascimento virginal de Heru acabaram sendo incorporados pelo Cristianismo.

Quando Set descobriu a respeito da criança (Heru), tentou matar o recém-nascido. Ao saber que Set estava a caminho, Auset escondeu seu filho em Buto.

  • Essa é a origem da história na qual Heródoto mandou dizimar todos os recém-nascidos masculinos ao saber do nascimento do Jesus bíblico.

Quando cresceu, Heru desafiou Set pelo direito ao trono. Heru e Set vivenciaram muitas batalhas e desafios e, por fim, tanto Heru (o Ausar ressuscitado) e seu tio Set foram ao conselho de neteru para determinar quem deveria ser o governante e os dois apresentaram seus casos.

O conselho de neteru decidiu que Ausar/Heru deveria reassumir o trono do Egito, e Set deveria reinar sobre os desertos/áreas baldias.

  • A força física não decidiu o resultado da “Grande Luta”, mas um júri formado por seus semelhantes solucionou o problema.
  • O acordo e o princípio da coexistência puseram um fim no conflito. (GADALLA, 2001, p.25-27).

Gadalla conclui esse relato, observando como são imensas as semelhanças entre as histórias de mistério egípcias e as histórias do Evangelho, porém ressalta que os egípcios antigos sabiam que se tratavam de parábolas, enquanto os que creem na bíblia, pensam tratar-se de fatos históricos(GADALLA, 2001, p. 27).

Essa transcrição quase literal do texto de Gadalla, incluindo suas observações sobre o Cristianismo, demonstra não somente o poder comunicador do mito, evidente em face da vivacidade da historinha, mas, além disso, visa a levar em conta a opinião de Gadalla, segundo a qual também a teologia ocidental andou inspirando-se em fontes egípcias. Trata-se de um dado que pode ser útil a este trabalho, embora não se concorde que os cristãos leiam a Bíblia como relato histórico, salvo, talvez, uma insignificante minoria.

IDENTIFICAÇÃO DO LOGOS EGÍPCIO E COMPARAÇÃO COM O LOGOS DE PITÁGORAS E PLATÃO

A identificação pretendida neste capítulo terá, naturalmente, de ser realizada no sentido inverso, isto é, do presente para o passado, tomando-se como referência o logos normativo, que descreve, em termos geométricos e lógicos, a dédaca sagrada que Pitágoras descreveu matematicamente e que Platão, também, indicava, usando números ordinais. Essa referência pode ser sintetizada economicamente, mediante um esquema, conforme solução que já adotamos em outros trabalhos e que vale a pena repetir aqui.

Esquema 1 Origens03O logos normativo, como se sabe, organiza dimensionalmente o mundo relativo, diferenciando cinco instâncias que se complementam: as quatro primeiras, obtidas por reiterado desdobramento dimensional, a partir da primeira dimensão, que é a instância mais simples possível, e uma instância de totalidade que unifica todas as realizações em unidades fenomênicas.

Gadalla informa-nos que a cosmologia egípcia tinha seu alicerce último na matemática: tudo era número. Para os antigos egípcios, “os números não designavam apenas quantidade, ao contrário, eram considerados definições concretas de princípios energéticos que formavam a natureza” (GADALLA, 2001, p. 29).

Como o mundo para eles era formado de energia em graus distintos de condensação, tratava-se de um mundo animado e em movimento em todas as instâncias e, nessa estrutura, os números representavam princípios que regiam a organização dessa energia na constituição do próprio mundo. “Os egípcios chamavam esses princípios energéticos de neteru (deuses)” (GADALLA, 2001, p. 29).

Consoante a essa equiparação dos números aos neteru, os egípcios também não consideravam o número meramente quantitativo, atribuíam-lhe papel normativo e consideravam-no, adicionalmente, masculino e feminino, do mesmo modo que podia ser par ou ímpar, não podendo possuir, de forma alguma, gênero neutro.

Gadalla oferece-nos, ainda, precioso registro de Plutarco, na obra Moralia, vol. V, em que consta descrição do triângulo retângulo 3:4:5.

Portanto, o lado vertical pode ser considerado masculino, a base, feminina e a hipotenusa, o filho de ambos. Sendo assim, Ausar (Osíris) pode ser reconhecido como a origem, Auset (Isis), o recipiente e Heru (Hórus), o resultado perfeito. Três é o primeiro número ímpar perfeito; quatro é um quadrado cujo lado é o número par dois, porém, de certa forma, o cinco é como seu pai e de outra forma, sua mãe, pois é feito de dois e três. E panta (tudo) é derivado de pente (cinco) e falam em contar numerando de cinco em cinco. O cinco faz de si mesmo um quadrado. (GADALLA, 2001, p. 29-30).

Gadalla acrescenta a figura do triângulo 3:4:5: Origens04

Dessa forma, preocupa-se em demonstrar que essa concepção matemática de Universo integrava o conhecimento dos antigos egípcios desde o princípio. Esse alicerce matemático do modelo consta, segundo Gadalla, de um papiro do Antigo Egito, conhecido como Papiro Rhind[7] ou papiro matemático, datado de 1848-1801 a.C., cujo título reza: “Regras para investigar a natureza e para saber sobre tudo o que existe, todos os mistérios, todos os segredos” (GADALLA, 2001, p. 31).

Providencialmente, transcreve o item no 38 do Papiro Rhind, que contempla a interpretação do triângulo: “Entro três vezes no hekat (um alqueire, unidade de volume), um sétimo de mim é somado a mim e eu retorno completamente satisfeito” (GADALLA, 2001, p. 31).

À luz do logos normativo o significado profundo do triângulo revela-se meridiano:

Entro três vezes no hekat: o princípio gerativo/fecundador, expressão primeira do Deus Único, Ausar/Osiris, precisa descer/ decair três estágios/dimensões para constituir o volume/matéria/ espaço, o hekat, para alcançar a materialização.

Um sétimo de mim é somado a mim: estabelecida a tridimensionalidade, a matéria gera seu tempo. Criada a instância espaço-temporal de quatro dimensões – Auset ou Isis –, impõe-se a criação do tempo, sem o qual a energia não permanece matéria;

E eu retorno completamente satisfeito: a criação perfeita resultante, Heru, evolui no sentido da luz original/perfeição/ princípio, mas este somente pode ser alcançado com a conquista do cinco, do panta, da totalidade.

Mais claro impossível. Aí, está a origem dos dois mais conhecidos feitos de Pitágoras: o teorema de Pitágoras (a2 + b2 = c2) e a dédaca sagrada (1+2+3+4=10). Apenas com base nesse registro egípcio do triângulo de Pitágoras, poderíamos considerar demonstrada a origem egípcia da dédaca sagrada de Pitágoras. Surpreendentemente, existem, porém, evidências ainda mais contundentes.

Na Grande Enéade que Gadalla apresenta-nos, os neteru mais próximos compõem também uma pentarquia: Origens06 Osíris é o princípio fecundador, assimilado na mitologia ao rio Nilo, gerador da vida; papel desempenhado, no logos normativo, pelo ser determinado, o intelecto capaz de conferir inteligência e engendrar toda complexidade. Ísis representa o receptáculo, na mitologia, é o vale do Nilo, a terra fecundada pelo rio. No logos normativo, Ísis corresponde à inteligência organizativa potencial – geométrica, matemática e lógica – que, fecundada pelo intelecto, confere forma às realizações. Seth é o princípio universal da oposição ao ser e ao úmido, que, na mitologia, reina sobre os desertos secos e áridos. Seth equivale, no logos normativo, à terceira dimensão, a dimensão da materialidade que, por vezes, aprisiona o espírito na matéria. Néftis é apenas a esposa de Seth, completando-o como tal, e, nesse aspecto, Gadalla não especifica outro papel desempenhado por ela, na mitologia, além desse de esposa. No esquema do logos normativo, Néftis corresponde à quarta dimensão que viabiliza o tempo e, assim, permite que a matéria subsista. É no tempo que a organização alcançada pela energia, configurando matéria, mantém-se enquanto tal. Também, aqui, o tempo (Néftis) é indispensável para a matéria (Seth). Finalmente, tem-se Horus, que representa a criação e, na mitologia, é filho de Osíris e de Ísis e que, no logos normativo, corresponde à totalidade, que é panta, que é pente, que é cinco.

Com isso, parece-nos suficientemente evidenciado não apenas de onde Pitágoras retirou as ideias básicas do seu modelo referencial, da dédaca sagrada, como também demonstrado que o modelo interpretativo formalizado pelo logos normativo já estava presente, instrumentalizando as mentes cultas do Egito Imperial, notadamente da elite dirigente e dos sacerdotes.

Com esse resultado, podemos incrementar o nosso esquema referencial, acrescentando as referências correspondentes na mitologia egípcia e, imediatamente, concluir que esse paradigma é recorrente na história da humanidade, reforçando a hipótese de estarmos virtualmente diante de um paradigma inescapável.

Esquema 2 Origens05

CONCLUSÃO

Confessamo-nos surpresos com os resultados alcançados neste trabalho. Partimos da tese da Escola de Tübingen sobre a importância das doutrinas não escritas de Platão e do caráter pitagórico dessas doutrinas, identificado por Szlezák. Examinamos a história da Academia de Atenas e constatamos que o Neoplatonismo inscreve-se como esforço de preservação do verdadeiro sentido do pensamento de Platão; sentido que, em vida, Platão transmitira exclusivamente pela oralidade. Percebemos, no Neoplatonismo, não apenas um esforço filosófico de preservação da verdade, mas também um feroz embate doutrinário com o Cristianismo emergente, com episódios e atitudes violentas, próprias de disputas de vida ou de morte pelo poder. Adquirimos, assim, nova compreensão do papel do Neoplatonismo na história da Filosofia. Nessa disputa, seguimos Jâmblico, que invoca os mesmos poderosos argumentos egípcios que instrumentalizaram Pitágoras e Platão e proporcionaram as respectivas obras. Dessa forma, não restam dúvidas sobre a origem egípcia das concepções pitagóricas. Não apenas a dédaca sagrada de Pitágoras reproduz fiel e matematicamente um modelo que, no Egito, era geometricamente representado, como também as ideias de números normativos, de reencarnação da alma, de Deus Único, além de certas concepções geométricas, tidas como criações pitagóricas, constituíram, de fato, adaptações ocidentalizadas de saberes egípcios que, de tão antigos, ninguém lhes conhece a origem.

Nada disso ofusca o brilho do milagre grego clássico que teve, em Pitágoras e em Platão, os principais artífices, na medida em que souberam utilizar-se desse conhecimento para fazer o discernimento humano evoluir e, assim, conquistar a posição que ocupam na história da Filosofia. Hoje, passados dois mil e quinhentos anos, surpreendemo-nos ao constatar que essa origem pode, virtualmente, até mesmo, ter sido propositadamente levada ao esquecimento. Até o século III, pelo menos, essas raízes eram de conhecimento geral, e tanto Pitágoras quanto Platão certamente a declaravam abertamente. Jâmblico menciona saber disso, até de modo ocasional e displicente, em mais de uma passagem de seu livro. “Y si propones alguna cuestión filosófica, también ésta te la interpretaremos de acuerdo con las antiguas estelas de Hermes, que Platón, ya antes, y Pitágoras, trás leerlas en su totalidad, utilizaron para crear su filosofia,…” (JÂMBLICO, 1997, p. 43).

Ambos usavam exclusivamente a oralidade para tratar, particularmente, dos princípios primeiros. Entre as razões desse comportamento, certamente conta o fato político delicado de introduzir, na pujante mitologia grega, valores provenientes de outra cultura e de outra mitologia igualmente vigorosa que, certamente, apresentava-se concorrente a olhos gregos. A ideia de um Deus Único, lembremo-nos, custou a vida de Sócrates e, além disso, a escola de Pitágoras foi queimada por um levante popular, provavelmente insuflado, também, por razões “religiosas”. No entanto, parece-nos que o impedimento principal era de ordem conceitual, ou melhor, de carência de conceitos logicamente estruturados, aptos a expressarem aquilo que a mitologia comunicava com tanta simplicidade e tanto poder de convencimento.

Pode, inclusive, ser o caso de que Platão se utilizasse principalmente de elementos mitológicos de origem egípcia nos encontros privados e reservados dedicados à consideração dos princípios primeiros ou daquilo que, atualmente, conhece-se por doutrinas não escritas. Em diferentes passagens da obra de Platão, encontramos menção a processos iniciáticos indicativos de uma Escola de Mistérios ativa na ocasião e que muito bem poderia constituir a solução encontrada para que esses assuntos fossem tratados livremente, sem que isso configurasse agressão à religiosidade grega tradicional.

Com a morte de Platão, impunha-se necessário dar continuidade ao estudo dessas questões essenciais, de sorte que a orientação pitagórica conferida à Academia pelos primeiros escolarcas fica plenamente justificada. Dado que, com o tempo, essa orientação perdeu-se, ficam também justificados o surgimento e a orientação do movimento neoplatônico, visando a resgatar o verdadeiro sentido do pensamento de Platão. Novamente, a brisa refrescante, o novo alento, vem do Egito, onde residem as raízes mais profundas da concepção. O Neoplatonismo realiza uma obra fundamental para que, hoje, possamos estar aqui, discutindo essas coisas. A chama platônica reacende, e Proclo em 452 d.C. faz a Academia brilhar novamente, como nos tempos de Platão. Apesar disso, o Neoplatonismo enfrentou a oposição ferrenha do Cristianismo e da Igreja Imperial, a qual se empenhou e conseguiu silenciar o movimento e até mesmo, fechar a Academia de Atenas, que, por mais de oitocentos anos, havia cultivado o discernimento humano.

A sua vitória somente não foi completa porque o imperador Justiniano, instado a fechar a Academia, permitiu que o acervo fosse trasladado para a Pérsia, onde os textos gregos foram preservados. Sem isso, as obras gregas clássicas, virtualmente, teriam se perdido. O resto da história é conhecido: as obras gregas foram traduzidas para o árabe na Escola de Sabedoria de Bagdá (Sec. IX) e chegaram à Europa, em boa parte, pelo Califado de Córdoba, vertidas para o latim etc.

Não há, portanto, como desconhecer o papel da Igreja Imperial nessa história.

Em termos acadêmicos, porém, cumpre reconhecer que este trabalho tem por escopo estabelecer as origens egípcias da filosofia grega e das concepções platônicas, na expectativa de, assim, aportar mais uma evidência de que estamos diante de um paradigma que, insistentemente, tem ressurgido na história da humanidade, sugerindo, com essa recorrência, a hipótese de estarmos frente à estrutura constitutiva da mente humana, à qual, contingentemente, estamos presos. Nesse sentido, a emersão do papel da Igreja, no caso, configura um efeito colateral, um resultado não previsto, porém, impossível de ser ignorado.

Mas essa não foi a única surpresa. Mergulhamos no passado longínquo, em busca das origens e, surpreendentemente, encontramos o futuro. O que a mitologia egípcia relata? Relata que houve um tempo em que Osíris e Ísis governavam o Egito e o povo era feliz. Conta que Seth, o irmão invejoso, mata Osíris e assume o trono, governando como déspota. Conta que, depois, Horus, filho de Ísis, cresce e, ao se tornar adulto, reclama o trono e o consegue depois de lutas, não por ser mais forte, mas porque uma assembleia de neteru decidiu que assim deveria ser. Ora, Osíris representa o ser (primeira dimensão do logos) e Seth representa o ter, a materialidade (terceira dimensão do logos). Isso significa que houve, no passado do Egito, um período em que a materialidade prevaleceu, que foi um período terrível, mas que foi superado quando Horus cresceu e se tornou adulto. Ora, nós, homens modernos, cidadãos da civilização ocidental, estamos vivendo hoje uma época de plena, completa e avassaladora materialidade. Sem dúvidas é Seth que está no comando do mundo ocidental. O que significa isso?

Não pode significar que a mitologia egípcia estivesse fazendo futurologia e se referindo aos tempos que estamos hoje vivendo. Portanto, logicamente, temos de admitir que a mitologia retratava uma experiência que o povo egípcio tivera no passado. Significa isso que a humanidade já experimentou um período de predominância da materialidade e significa, também, que essa predominância pode ser superada, não pelo uso da força, mas porque uma assembleia de neteru, isto é, de sábios conhecedores das forças cósmicas, assim consideram justo, não justo por mera opção, mas por exigência estrutural do logos que preside a edificação do universo, das leis divinas que tudo regem.

No entanto, essa historinha adverte-nos, também, que, por alguma razão, Seth retomou o poder, e a nossa situação atual testemunha isso. A partir do logos normativo fica evidente qual foi o erro cometido pelo povo egípcio: eles não respeitaram a lei da totalidade. A civilização egípcia era localizada e não tinha como congregar todos os homens da Terra e, com isso, nem mesmo incluiu todo o povo egípcio no domínio dos mistérios. Apenas a elite era educada. Dado que, como sempre, também naquela ocasião era a elite que governava, o Império subsistiu por milhares de anos, mas acabou sendo vencido pela “horda bárbara” que, excluída, evoluía às margens do Mediterrâneo.

Com isso, temos um segundo efeito colateral não previsto neste trabalho. Descobrimos que o império da materialidade pode ser vencido, porque é isso que as leis universais preconizam, mas também descobrimos que o império do ser precisa necessariamente congregar toda a humanidade, sem exceções, para, assim, realizar-se plena e seguramente. Tampouco, esta percepção poderia deixar de ser mencionada.

O que talvez possa justificar os descaminhos acadêmicos desta conclusão é o fato de estarmos tratando dos princípios primeiros, das leis básicas gerativas do universo, do logos normativo da nossa racionalidade e, nessa instância essencial, qualquer mexida, por menor que seja, impacta tudo. Chegamos, também, à conclusão que buscávamos: constatamos que o logos normativo já estava presente na cultura humana da Antiguidade egípcia e, virtualmente, em outros locais, perfeitamente formalizado em versão ajustada à cultura local. Chegamos a um entendimento que reforça a hipótese de que esse logos aproxima-nos da estrutura constitutiva da racionalidade que a natureza concedeu-nos. No entanto, chegamos, também, à conclusão de que a crise civilizatória que estamos vivenciando admite solução, de que a solução exige recolocar o ser no centro do mundo e deslocar o ter para a instância secundária que lhe corresponde, de que essa mudança não pode ser conseguida pelo uso da força, mas apenas por decisão de uma assembleia de sábios que comunguem da sabedoria dos deuses. Essa sabedoria já está, hoje, plenamente formalizada e disponível para divulgação e para uso na construção de processos de ensino e formação de nossa juventude, objetivando produzir uma humanidade sintonizada com as forças cósmicas.

O que falta?

Falta talvez que os emissários de Deus livrem a Igreja dos penduricalhos que ela teve de assumir para associar-se ao Império, façam as pazes com a gnose, resgatem o caráter inefável do Princípio Criador, retirem esse fardo medonho das costas de Jesus e responsabilizem cada um dos homens pela sua própria salvação, enfim, cumpram o seu propósito, ensinando os homens a pensar metodicamente e assumirem a responsabilidade pelas suas vidas. A humanidade pagou um ônus significativo para a Igreja Católica ser a potência que, hoje, é, com púlpitos espalhados em toda a superfície da Terra. Esses púlpitos precisam ser movimentados para ensinar os homens a pensar metódica e formalmente, com autonomia e independência. Torná-los aptos a pensar a totalidade, tendo como índice e referência um Princípio Criador que é absoluta bondade e beleza e que apenas produz o bem, mas que, para isso, precisa usar leis inflexíveis e invariantes, sob pena de comprometer a obra. Não dá mais para esperar que os Estados modernos o façam, simplesmente porque os Estados estão moribundos e sequer conseguem esconder sua crescente incapacidade de produzir o prometido bem-estar dos povos. É preciso que essa transformação dê-se transversalmente aos Estados e para além dos feudos políticos. É preciso cultivar e gerar a assembleia capaz de decidir que Seth deve recolher-se para “os terrenos secos e baldios” e deixar que a criação se dedique à promoção da vida e à realização do ser.

Cumpre destacar que não se trata de julgar, com olhos modernos, a decisão de os bispos do século III associarem-se ao Império e, menos ainda, de cobrar da igreja moderna essa decisão, mas de contemplar devidamente a história e as circunstâncias, visando a nos capacitar, agora, para decisões lúcidas. Naquela ocasião, tratava-se de salvar um Império e, agora, trata-se de salvar a humanidade. O que aconteceu pertence à história, e nada disso pode ser mudado. É inútil chorar o passado quando se tem a construção do futuro como possibilidade. E não se diga também que a Igreja não tenha consciência disso. Bento XVI tentou encaminhar essa mudança. Na aula magna que proferiu na Universidade de Regensburg, em 12/9/2006, sob o pretexto de debater “Fé, Razão e Universidade”, o papa desafiou o mundo científico da Baviera a desenvolver uma razão mais ampla, capaz de recepcionar tanto a ciência quanto a fé e viabilizar um diálogo racional entre Oriente e Ocidente. Nenhum instituto de ciências do planeta dignou-se a responder e, na grande mídia, apenas o Stratfor Geopolitical Intelligence Report tangenciou o problema em editorial, desconfiando que a menção ao Islã contida no texto não representava uma gafe papal, mas um movimento político muito bem pensado. Joseph Ratzinger não obteve resposta alguma, e desconfiamos que a sua renúncia deve-se, em boa parte, a esse fato. O tempo de se corrigir o rumo da civilização está-se esgotando e, se ele não conseguia fazê-lo, melhor deixar que outro tivesse a oportunidade. Esse logos amplo que Bento XVI reclamava para superar os sectarismos está, agora, disponível. Já estava naquela época, mas a ortodoxia da Igreja encarregou-se de impedir que ele tomasse conhecimento. Pensamos que a direção da Igreja precisa considerar que certas mudanças não podem ser objeto de plebiscito. Do mesmo modo que os bispos do século III não perguntaram aos fiéis que rumo a Igreja deveria naquela época tomar, também agora não cabe perguntar à ortodoxia o que deve ser feito.

Os devotos das normas técnicas de redação que me perdoem pelos rumos seguidos nesta conclusão, mas precisamos levar em conta que não estamos vivendo uma época de normalidade. A mitologia egípcia sugere que a história da humanidade contemplou um período materialista que não consta dos nossos manuais. O modelo do logos normativo – que pretende oferecer solução para a teoria unificada do campo da Física moderna –, ao se revelar presente na mitologia egípcia, descarta a hipótese simplista de essa mitologia ter surgido, acidentalmente, à beira das fogueiras, por obra de trogloditas imaginativos. A presença desse paradigma que estabelece os axiomas da existência, no início da história escrita, inscreve um fato desconcertante em toda a história conhecida. Alguém, naquela época, já sabia das coisas e era suficientemente lúcido e criativo para registrá-las em uma linguagem mitológica, capaz de sobreviver apesar da rudeza e do primitivismo vigente. Só isso, um feito comunicativo de exuberante genialidade. O que dizer, então, da concepção? E mais: como se explica que isso não conste dos manuais de história? Será que ninguém sabia disso? Ou será que isso foi escondido, do mesmo modo que o rótulo geral “paganismo” escondeu, na época do enfrentamento do neoplatonismo, a presença gnóstica do Deus Único na mitologia egípcia? É tempo de superar as mentiras e as enganações. O tempo da verdade chegou. Horus cresceu, tornou-se adulto e, pelas ruas do mundo, reclama estridente seu trono. Chega de fogo (Seth), Osíris (que é rio, é água) acordou. É preciso convocar a assembleia de neteru, ou será um Concílio de Cardeais? Até está escrito nas estrelas: a Era de Peixes findou, estamos entrando na Era de Aquário. Você vem ou vai ficar?

 Brasília, março/2014.

Rubi Rodrigues

 

REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Manaus: Log On Editora Multimidia, 1988. DVD.

 GADALLA, Moustafa. Cosmologia egípcia: o Universo animado. Tradução de Fernanda Rossi, 2003. São Paulo: Madras Editora Ltda., 2001.

 JÂMBLICO. Sobre los misterios egipcios. Biblioteca clásica Gredos, 242. Introdução, tradução e notas de Enrique Ángel Ramos Jurado. Madrid: Editora Grados, 1997.

 IRWIN, Terence H. Platão Carta VII: introdução. Texto montado por John Burnet. Tradução do grego de José Trindade Santos e Juvino Maia Jr. São Paulo: Biblioteca Antiqua PUC Rio, Edições Loyola, 2008.

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[1] Filósofo, pesquisador em Metafísica e escritor. Idealizador e mantenedor do fórum de debates “Segundas Filosóficas” e do site: <http://segundasfilosoficas.org>.

[2] Teogonia, como estudo sobre a origem dos deuses e do mundo.

[3] Teurgia, como estudo dos procedimentos invocatórios das divindades.

[4] Usamos a expressão demons em lugar de demônios para evitar o sentido pejorativo que, modernamente, o termo possui e que não estavam presentes na ocasião.

[5] Tradutor e comentador da obra de Jâmblico que utilizamos como referência neste trabalho.

[6] Sobre los dioses y el mundo XIV, inspirado por Jâmblico.

[7] Este papiro integra o acervo do Museu Britânico de Londres.

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